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O saneamento básico deve ser prioridade para haver justiça climática – Entrevista com Waleska Queiroz

Falar em saneamento básico é, sem exagero, colocar uma lupa sobre o panorama das desigualdades socioespaciais e raciais no Brasil. Duvida? Vamos lá: segundo a edição 2024 do Ranking do Saneamento, do Instituto Trata Brasil, quase 32 milhões de pessoas não têm acesso à água potável – o equivalente a 15% da população nacional. Outro dado aterrador: aproximadamente 90 milhões de cidadãs e cidadãos não contam com acesso à coleta de esgoto. Ou seja: estamos falando de 42,3% da população nesse contexto.

 

Ainda, segundo dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS), houve, em 2021, quase 130 mil internações resultantes de doenças de veiculação hídrica – ou seja, por falta de acesso a serviços de saneamento. A título de curiosidade, estima-se que R$ 55 milhões foram destinados para tratar as pessoas acometidas por tais doenças no mesmo ano.

 

Para falar sobre esse cenário, a urgência de haver políticas públicas efetivas para de fato universalizar o acesso ao saneamento básico e a mobilização da sociedade civil com esse propósito, a Fundação Tide Setubal entrevista Waleska Queiroz. Waleska é engenheira sanitarista e ambiental, presidente da Rede Jandyras, integrante da coordenação da Coalizão COP das Baixadas, de Belém (PA), e consultora no Programa Climate Skills do British Council.

 

Confira o diálogo a seguir.

 

Segundo dados da PNAD, cerca de metade da população do país convive com algum nível de privação referente ao saneamento básico. O que esse fato mostra quando se fala em reflexos de escolhas políticas feitas historicamente e no aprofundamento das desigualdades territoriais e raciais?

Waleska Queiroz: Embora o Brasil tenha avançado no sistema de cobertura de saneamento básico, essas desigualdades ainda persistem, especialmente nas áreas periféricas e urbanas. Esses espaços têm os maiores índices de concentração da população negra. Além disso, muitas pessoas indígenas que vêm para as cidades estudar estão nessas áreas, assim como quilombolas. Quando se fala dessas políticas direcionadas, é necessário abordar a garantia do básico. Isso vale também para investimentos que sejam adequados à implementação de soluções de acordo com a realidade da população e que promovam justiça climática, sobre a qual se tem falado muito, e para a justiça social e ambiental.

 

O fato de metade da população enfrentar algum nível de privação em saneamento básico expõe as consequências dessas escolhas políticas. Há negligência para essas comunidades periféricas receberem o mínimo de infraestrutura adequada para a garantia do saneamento básico. Ao longo de décadas, vê-se que interesses econômicos e estruturais guiam essas escolhas. Tais interesses privilegiam as áreas centrais, que já têm infraestrutura, recebem maior investimento e têm maior valor econômico. Com isso, as comunidades marginalizadas sofrem com a falta desse serviço básico de infraestrutura. Esse padrão gera segregação estrutural, ao reforçar desigualdades. Isso impede essas populações que vivem em contexto vulnerável de ter acesso ao direito básico – que é o saneamento.

 

Não se trata apenas de ignorar as demandas de uma legislação existente. Isso reflete também a priorização de investimento em áreas centrais, que costumam perpetuar ciclos de pobreza e vulnerabilidade encontrados em áreas periféricas. Como resultado, são essas comunidades as que mais precisam de apoio, mas permanecem em condições precárias. Isso agrava ainda mais a situação socioeconômica em que elas vivem. Esse cenário demonstra que a infraestrutura básica de saneamento não se desenvolve de maneira equitativa e isso intensifica ainda mais as diferenças territoriais e raciais existentes no nosso território. A privação do saneamento nessas áreas é, portanto, um reflexo desse direito negado. Isso exige uma reposição e reparação urgentes, quem aborde essa infraestrutura de forma justa e igualitária. Mas, para isso, é necessário haver um longo caminho para seguir no que diz respeito a decisões que sejam repensadas a partir desses lugares e com o envolvimento dessa população.

 

Você trouxe a dimensão econômica na sua resposta. O que explica o saneamento não ser considerado como um direito inalienável na formulação de políticas públicas?

Waleska Queiroz: É importante falar que as escolhas relacionadas ao saneamento básico têm papel crucial na qualidade de vida da população brasileira, principalmente na saúde. Muitas vezes isso não se vê o saneamento como um direito. Percebe-se que essas diferenças, a falta de infraestrutura e o modo de pensar saneamento básico no Brasil ainda seguem um padrão econômico. Segundo essa visão, o saneamento historicamente foi um serviço adicional no planejamento da cidade ou não ser essencial para a população. Mas na verdade é essencial. Por isso ele é tão destinado a lugares muito específicos, mas não a toda a população.

 

Esse tratamento parte de concepção política de que é necessário priorizar o atendimento, mas as demandas ainda são muito invisíveis. Elas são mais externas, sempre atendidas por meio das demandas do centro em vez das áreas periféricas, onde essa população enfrenta essas privações e, muitas vezes, se coloca no lugar de não merecimento desses serviços básicos. Ainda que se veja o saneamento como uma questão de infraestrutura e de desenvolvimento, a sua abordagem deve ser transversal – além de que ele afetará a saúde e a qualidade de vida da população. Não se vê o saneamento básico como um direito. Consequentemente, ele não é garantido na formulação das políticas públicas e não chega igualmente para todas as pessoas. Com isso, o orçamento para o saneamento básico acaba por ser muito limitado. Como resultado, pode-se encontrar também muitas ações descontínuas para atender a universalização.

 

 

Um ponto que vem à tona, quando se fala na área da Saúde, é a questão da transversalidade na formulação de políticas públicas. Por meio da transversalidade dentro da esfera pública, qual é a importância de integrar ações relativas ao saneamento básico com áreas como a da Saúde?

Waleska Queiroz: Há muitas pesquisas que reforçam a importância de investir em saneamento, pois isso será investimento em saúde. Quando se pensa em uma nova perspectiva da aplicação e construção de políticas públicas, é necessário partir da integração na qual o saneamento básico e a saúde pública são fundamentais para haver uma abordagem mais completa e eficiente dessas políticas. Deve-se considerar o saneamento como parte essencial e vinculada à saúde pública. Isso é importante para registrar e entender que se trata de um dos pilares também para reduzir a incidência de várias doenças, como as de veiculação hídrica, que são muito comuns em áreas periféricas e as afetam de maneira desproporcional.

 

Quando saneamento integra  saúde e gestão pública, criam-se políticas que atendem melhor a essas necessidades da população, em especial nas periferias. Permite-se também pensar os recursos de forma mais de acordo com a realidade, assim como a aplicação em todos os setores com maior eficiência. Uma vez que o desenvolvimento desses investimentos ocorre de forma integrada com a Saúde, consegue-se reduzir a demanda por tratamento de doenças. Essa nova abordagem precisa considerar que os impactos do saneamento vão além da infraestrutura básica. Esses impactos têm papel superimportante na construção de regiões e cidades mais justas, saudáveis e resilientes.

 

Como o acesso deficitário ao saneamento básico se conecta com o racismo ambiental? E como esse aspecto intensifica os efeitos de eventos climáticos extremos para quem está submetido a essas mesmas condições?

Waleska Queiroz: As áreas marginalizadas costumam receber, ao longo da história, menos investimento e infraestrutura e são as mais impactadas por riscos ambientais. Falar sobre racismo ambiental abrange as populações expostas a esses riscos, que precisam lidar, muitas vezes, com a ineficiência dessas políticas públicas.

 

Mas esses espaços também são atravessados pelo cenário das mudanças climáticas e precisarão lidar cada vez mais com eventos climáticos extremos, como enchentes e inundações, que já acontecem nas periferias, com o passar do tempo, os impactos serão ainda mais agravados. Com um saneamento precário, identifica-se que essa população sofrerá com mais risco. Isso se irá intensificar e expor ainda mais essa população a esses riscos, que não são somente físicos e mentais, ao ir além de perdas materiais e resultar em mortes em virtude de inundações.

 

 

Pensando na participação popular da sociedade civil, como o terceiro setor pode se envolver no debate e na formulação de iniciativas na promoção do acesso ao saneamento básico, mas reconhecendo o papel central do poder público e apoiando-o?

Waleska Queiroz: A pauta do saneamento básico já tem sido muito falada dentro dos movimentos sociais. Isso porque é um direito pelo qual lutamos por muitos anos por entender a realidade da população. O saneamento básico precisa entrar, de modo estratégico, na discussão sobre justiça e adaptação, principalmente durante a COP30. Belém é uma capital também que lida com a falta de investimentos no saneamento básico.

 

Ao olhar para o cenário do saneamento básico em Belém, trata-se de uma capital que há anos lida com os piores indicadores de acesso ao saneamento. Discute-se isso dentro do movimento social por entender que saneamento básico é a garantia de uma justiça social que o fará com a justiça climática. Pensa-se nessa integração como uma meta importante dentro da estruturação das nossas cidades e periferias, pensando que também o saneamento básico é uma linha de defesa crucial contra os impactos das mudanças climáticas nessas áreas.

 

Por exemplo, fala-se em garantir saneamento básico dentro das áreas periféricas e assegurar que comunidades que não estão na mesa de tomada de decisão tenham acesso à água, ao esgoto e a um ambiente equilibrado. Idem minimizar os impactos que essas populações já sofrem com secas, enchentes, agravamento das inundações e tudo mais. Neste cenário atual, tais movimentos e organizações e o terceiro setor têm articulado muito bem essa pauta, ao incluí-la como algo importante dentro do direito universal nos debates locais e internacionais.

 

Há, em Belém, movimentos que surgiram dentro das periferias, como a Organização Bandir e a própria COP das Baixadas, que se articulam para ocupar os locais de tomada de decisão, como Câmaras Municipais e as próprias discussões feitas na agenda governamental do Brasil, que fala sobre adaptação. Temos ocupado cada vez mais esses lugares, pois entendemos que saneamento também precisa ser uma preocupação global. E ela precisa integrar o saneamento como algo prioritário e parte das metas climáticas, para garantirmos mais equidade e justiça social no enfrentamento das mudanças climáticas.

 

 

Como a universalização do acesso ao saneamento básico poderá entrar como pauta para discussões durante a COP30? Quais articulações têm ocorrido com esse teor?

Waleska Queiroz: Infelizmente, apesar de ser uma pauta prioritária dentro dos movimentos sociais, percebe-se inação do governo, em especial em Belém, quanto ao saneamento básico. Estamos em uma capital onde não há gestão de resíduos sólidos urbanos, tampouco infraestrutura mínima para descartá-los em local adequado. Não há também integração com os principais agentes de transformação no que diz respeito ao saneamento: os catadores de materiais recicláveis. Temos lutado e reivindicado junto aos tomadores de decisão para o investimento que tem chegado para a COP30 não contemplar só infraestrutura geral, mas pensar em acesso à água potável, saneamento e esgoto – ao saneamento básico de modo geral.

 

Temos lidado com tomadores de decisão que ainda tratam o saneamento como segundo plano. Quando se olha para o cenário de Belém, as principais obras relacionadas à COP30 acontecem nas áreas que já têm infraestrutura básica de saneamento – os pontos centrais. A nossa luta é para reverter isso e para as periferias terem vez também nessa nova janela de oportunidade da qual tem se falado. Ao chegar nas periferias, continua-se com o processo de segregação e gentrificação dentro dessas regiões. A infraestrutura chega às periferias, mas pensada para expulsar a população dali em vez de melhorar a qualidade de vida. Apesar de Belém receber a COP30, não se sabe qual será o legado.

 

 

 

 

Entrevista: Amauri Eugênio Jr.

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