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Na programação do CLIPE, Sueli Carneiro, Ana Maria Gonçalves e as mulheres negras no centro da literatura

Programas de influência

12 de novembro de 2018
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Por Tony Marlon / Ilustrações: Camila Ribeiro

 

 

Foi graças ao livro Capitães de Areia que Ibiá, cidade perto do Triângulo Mineiro, ficou maior que os olhos de Ana Maria Gonçalves conseguiam enxergar, aos oito anos. É que se não fosse Jorge Amado, ela contou durante a mesa Escritoras Negras movendo estruturas, ela talvez não estivesse, ainda até hoje, enxergando mundo para depois das montanhas que abraçam a sua cidade natal.  Autora de Um Defeito de Cor, pela Editora Record, Ana Maria e a filósofa Sueli Carneiro estiveram na Festa Literária de Cidade Tiradentes falando sobre representatividade e o mercado editorial brasileiro. Mas antes veio o Sarau das Pretas, que começou assim:

 

 

 

O coletivo, criado tem pouco mais de dois anos, é um encontro de artistas de todos os cantos da cidade que levam para o palco o seu lugar de olhar o mundo, as lentes que usam para isso: poemas, músicas, próprias e de outras. Lente de serem mulheres, negras, num lugar feito São Paulo. A mistura de canções que vibram o corpo com poemas que vibram memórias tem força de alimentar conversas mesmo quando não existe uma mesa a seguir como a que existiu no dia, dedicada a isso. Sueli Carneiro começou por aí a sua fala, na conversa mediada por Talita Fernanda Ferreira.

 

“Mais que qualquer grupo de mulheres na sociedade, as negras têm sido consideradas só corpos sem mentes”, observou a filósofa. “É o conceito ocidental, sexista e racista, de quem é ou o que é um intelectual que elimina a possibilidade de nos lembrarmos de negras como representativas de uma vocação intelectual”, apontou Sueli. Entende-se aqui, ela continuou depois, como alguém produzindo pensamento, leitura crítica do mundo, interpretação subjetiva sobre o que anda enxergando essas mulheres enquanto saem existindo por aí. Bem como o Sarau das Pretas faz, igual ao que a poeta Thata Alves fez:

 

 

Este existir criador, como apontou Sueli, desagua em fazeres artísticos que contam mais que alguém expressando a sua arte. Quando esses pensamentos e ideias ganham forma de se manifestar no mundo, não fica distante quem essas mulheres são, suas identidades, do que elas produzem como literatura. Para isso, Sueli pegou emprestada uma reflexão de Conceição Evaristo para aprofundar o que explicava à plateia, predominantemente mulheres, predominantemente negras: “Quando escrevo, quando invento, quando crio a minha ficção, não me desvencilho de um corpo mulher negra em vivência. E por ser este o meu corpo, e não outro, vivi e vivo experiências que um corpo não negro, não mulher, jamais experimenta”.

 

Ana Maria, que falou logo em seguida, contou que foi assim, já após os trintas anos, que escrevendo o que escreve, literatura a partir deste lugar de ser, que foi pavimentando o caminho da sua identidade no mundo. “Eu dizia que eu era negra, as pessoas diziam que não, que eu era clarinha, moreninha, que eu era mulata”, confidenciou. “O processo de escrita de Um Defeito de Cor foi o meu processo de formação e de solidificação de uma identidade que hoje eu não aceito mais ser questionada”, defendeu a escritora. Contou que não abre mão de se apresentar como se apresenta, mulher, negra, escritora, que “isso informa o tipo de literatura que eu faço. Não delimita, mas informa, por que eu estou falando das minhas experiências, de onde eu enxergo o mundo”.

 

 

Ana defendeu que os livros são, antes de tudo, ferramentas de esticar horizontes, repertórios de ler a realidade, como aconteceu com ela quando era criança, em Ibiá. Para a escritora, “quando você coloca determinadas histórias com as quais as crianças e adolescentes se identificam, ali você está formando alguém que vai passar do ler por obrigação para o ler por prazer, pelo processo de identificação pessoal que as histórias causam nelas”. E que mesmo com um movimento mais interessado das editoras nos últimos tempos, ela anda observando, a literatura ainda tem raça, gênero e classe bem estabelecidos no Brasil.

 

Estudo iniciado em 2003 pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília – UNB, mostra que o romancista brasileiro publicado pelas grandes editoras se manteve o mesmo por 43 anos: homens, brancos, heteressosexuais, de classe média, nascidos no eixo Rio-São Paulo. E da mesma forma, os enredos de suas publicações, seus personagens, os conflitos existentes. Um sistema que se retroalimenta simulando uma realidade que é distante da realidade da maioria do país, mesma classe e conflitos, todo o tempo.

 

A pesquisa cruzou dados de 383 autores brasileiros, desde 1965, para expor o que Sueli e Ana Maria sabem de algum tempo, por experiência e observação: o imaginário criado na literatura brasileira, ao menos essa do mercado, não visibiliza e reconhece o mundo que as mulheres negras são, enxergam, e constroem, como observou Sueli: “É de dentro dessa perspectiva social, que nascem a maioria dos personagens e suas representações”, analisou, completada por Ana Maria: “Dá para entender como isso dá quando percebemos que existem nos romances destes escritores mais personagens estrangeiros que personagens negros”, emendando que “no dia a dia, na relação horizontal, isso mostra que existe mais convívio desses escritores com pessoas de fora do país que com homens e mulheres negras. Estes estão ocupando o lugar reservado aos empregados tanto nas relações e quanto em suas literaturas”, apontou.

 

Para sentir o que foi falado, poesia de Jô Freitas, Sarau das Pretas.

 

 

 

Costuradas pelo Sarau das Pretas e sua cenopesia com a mulher negra no centro do discurso e do palco, a conversa foi o encontro do que Sueli chamou de “textos de combate”, o que ela se reconhece fazendo no Portal Geledés, com aquilo que é a literatura no sentido mais nobre, palavras dela, “o que fazem a Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Cristiane Sobral, a própria Ana Maria Goncalves, entre tantas outras”. Para a filósofa, essa literatura, deste lugar e olhar, feita por essas pessoas, a partir de outras leituras e referenciais do que é o mundo, mexe para além das estruturas do mercado editorial, agem na própria realidade objetiva da vida.

 

“O primeiro gesto de insubordinação que as escritoras negras promovem é este deslocamento do lugar das mulheres negras de corpos sem mentes, argamassas de ficções alheias, para sujeitos de sua própria escrita, detentoras de poder e de criação e de expressão literária”, apontou Sueli.

 

“Nessa literatura, os estereótipos desaparecem desse imaginário dando lugar a subjetividades femininas negras em permanente embate entre a exclusão e a afirmação. Essa literatura forjada por lágrimas de insubmissas mulheres negras de diferentes gerações afirma: somos humanas, somos diversas, somos visíveis”, finalizou.


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