Analista de comunicação e produtor de conteúdo do site da Fundação Tide Setubal
Quais são os territórios e as origens do conhecimento?
Por Amauri Eugênio Jr. / Fotos: Léu Britto / DiCampana Foto Coletivo Os territórios e as origens foram as estrelas na constelação do conhecimento na noite de 7 de novembro, na tenda central da Praça do Morumbizinho, durante o Festival do Livro e da Literatura de São Miguel. As atividades naquela noite […]
Por Amauri Eugênio Jr. / Fotos: Léu Britto / DiCampana Foto Coletivo
Os territórios e as origens foram as estrelas na constelação do conhecimento na noite de 7 de novembro, na tenda central da Praça do Morumbizinho, durante o Festival do Livro e da Literatura de São Miguel. As atividades naquela noite começaram com o poeta e escritor Emerson Alcalde, cofundador do Slam da Guilhermina e co-organizador do Slam Interescolar. Alcalde que lançou Diário Bolivariano, o seu terceiro livro e primeiro em prosa, sobre uma viagem feita por ele à Venezuela, em 2012.
Além de ter abordado assuntos relativos aos bastidores da obra e as suas impressões sobre o contexto sociopolítico do país naquele período e paralelos com o status atual, o poeta e escritor falou também sobre slams [saiba mais ao ler esta matéria sobre a final do Slam Interescolar Nacional, que também aconteceu durante o Festival do Livro e da Literatura de São Miguel] e como a iniciativa tem ajudado a população a se reaproximar da poesia.
Emerson Alcalde, durante o lançamento do livro Diário Bolivariano (Léu Britto / DiCampana Foto Coletivo)
“Você vê um poema do começo do século XX e não entende nada, pois há [muitas] palavras difíceis. Eles [os poetas] expressavam-se de maneira muito difícil para nós, mas agora a poesia está voltando a ser popular – acredito que seja pela oralidade, pelos saraus em periferias e pelos slams. As pessoas viram que a poesia é delas agora e não tem mais como escapar”, ressaltou Alcalde.
Após a participação de Alcalde, a noite teve sequência com bate-papo entre Maria Vilani, professora, poeta, filósofa e ativista cultural; Jarid Arraes, escritora e cordelista, autora dos livros As Lendas de Dandara, Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis, Um Buraco com Meu Nome e Redemoinho em Dia Quente; e Chico Felitti, repórter e escritor, autor de Ricardo e Vânia: O Maquiador, A Garota de Programa, O Silicone e uma História de Amor. A conversa foi mediada por Márcio Black, coordenador de mobilização social da Fundação Tide Setubal.
Conhecimento da (e pela) margem
Maria Vilani começou a sua participação com um lembrete: ela é uma pessoa que vem de territórios periféricos – seja no Grajaú, onde está à frente do trabalho do Centro de Arte e Promoção Social (CAPS), em sua cidade natal, Fortaleza (CE), ou no Rio de Janeiro, onde morou por um tempo. E, mesmo com a sua realidade sendo periférica, o seu pensamento não tem fronteiras e transcende a periferia.
Como militante cultural e cidadã que traz em sua essência o enfrentamento em favor da autoestima periférica, a sua atuação vem de longa data. A semente de seu trabalho vem de quando trabalhava como professora, ainda no início dos anos 1990: certa vez, a diretora de uma escola onde lecionou a advertiu verbalmente após ter proposto usar literatura de cordel em sala de aula – “ela não me proibiu, mas me pediu refletir se o que estava trazendo para os alunos era saudável, pois no entendimento dela o cordel era arte menor”; e em outro caso, encarou uma situação insólita após alunos pedirem para fazer apresentações de rap: “fui proibida, pois, misteriosamente, um disjuntor foi desligado durante as apresentações de hip hop.”
Vilani descreveu estes dois incidentes para mostrar o caráter multicultural e plural de territórios periféricos, onde há “pessoas oriundas de todos os lugares” de acordo com a sua fala. Parte importante disso diz respeito à ancestralidade, uma constante em tais territórios – no caso dela, por exemplo, abrange o fato de ser bisneta de índios por parte de mãe e ter ascendência eurocêntrica por parte de pai. “A gente identifica que, no meio de tudo isso, a ancestralidade pulsava em cada um de nós: temos conhecimento de mundo e repertório, e levamos isso para as rodas [de conversas e culturais organizadas no Caps]. A escola, infelizmente, ainda tem as salas quadradas. A gente quer falar da subjetividade das pessoas, afetá-las, e a gente constrói o conhecimento ali.”
Maria Vilani deu uma aula sobre educação, cultura e determinação (Léu Britto / DiCampana Foto Coletivo)
Ainda, segundo ela, a periferia é um espaço geográfico e não é plausível confundir poder intelectual com poder aquisitivo – e isso não pode condicionar a autoestima e a autoconfiança de pessoas que vivem lá, inclusive em âmbito cultural. Logo, a questão para romper barreiras invisíveis condicionadas a limites geográficos dizem respeito a acreditar em si próprio – “se eu não atingir determinado nível de escolaridade, não será por incompetência minha, mas por falta de oportunidade.”
Outro ponto fundamental, para Maria Vilani, é fomentar a autoestima desde a infância em vez de condicioná-los a verem a si próprios como seres inferiores. “A autoestima é tirada das crianças quando dizemos para elas irem à escola aprender a ser gente quando perguntamos o que elas serão quando crescer – isso é a negação do ser. Você tem de ir à escola para aprender ser gente ou ser alguma coisa, pois você não é? Não interessa onde moro: a autoestima independente do nosso extrato bancário e status social”, completou.
Raízes impressas
Jarid Arraes cresceu em um ambiente no qual o contato com a literatura ocorreu desde cedo. O pai e o avô, que são cordelistas, e a mãe, que é professora, a estimularam desde criança a ler e escrever. Durante o evento na Praça do Morumbizinho, ela citou cânones como Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Paulo Leminski e Manuel Bandeira. A sua paixão pelo universo das palavras era tamanha que sempre perguntava à avó os significados de palavras novas sempre que as ouvia. “Ela se encheu de um jeito que me até deu um dicionário, com dedicatória e tudo – e o tenho até hoje.”
A motivação para Jarid ter descrito a sua infância foi para mostrar que escrever não é um dom: “fui estimulada desde muito cedo e nunca me disseram para me afastar dos livros. A imagem do escritor como [um ser] especial, que tem um dom e de repente se inspira, não existe. Escrever é um trabalho como qualquer outro.”
Apesar de ter crescido em um terreno fértil para o desenvolvimento de suas habilidades literárias, a representatividade pesava – e muito. Primeiro, pois somente descobriu poetisas após algum tempo, ao passo que o contato com escritoras negras foi ainda mais tardio. “Eu havia visto mulheres brancas escritoras, mas tinha certeza de que elas não eram a únicas e de que existiam escritoras negras, e decidi procurar. Encontrei os Cadernos Negros, coletâneas que juntavam diversos escritores negros, e lá conheci Conceição Evaristo. Isso mudou a minha vida e colocou na minha cabeça a afirmação de que eu poderia ser escritora.”
Jarid Arraes fala sobre a sua trajetória literária e a busca pela representatividade em seu trabalho (Léu Britto / DiCampana Foto Coletivo)/
Estes fatos a motivaram escrever cordéis protagonizados por mulheres, como a obra sobre heroínas negras brasileiras em cordel, que se tornou um sucesso grande – “cheguei a vender 20 mil cordéis em um ano no Facebook, o que se tornou o livro Heroínas Brasileiras em 15 Cordéis.” Apesar de ter percebido que havia público para a sua obra, as editoras para as quais ela tentou vender o projeto que se tornaria As Lendas de Dandara não tinham a mesma impressão. “Ouvi ‘não’ de todas elas, que me diziam não haver mercado para o livro e que não era a hora. Havia mercado [para as obras], pois as pessoas querem conhecer, e decidi me autopublicar. Peguei um empréstimo e o publiquei por conta própria. Em seis meses, o livro se esgotou.”
Após o boom de vendas, a autora conseguiu publicar a obra por uma editora para a qual não havia oferecido anteriormente. E pode-se dizer que a sua construção pessoal e intelectual a ajudou a persistir em encontrar o seu espaço mesmo após diversas negativas. “O livro está em várias reimpressões e será adaptado para um especial na [Rede] Globo. Foi um livro que deu muito certo, como sabia que daria.”
“Tinha muita vontade de contar as histórias dos meus”
Chico Felitti começou a sua trajetória como jornalista do jornal Folha de S.Paulo, onde cobria assuntos como política. Ainda assim, algo o inquietava: faltava espaço para falar sobre o grupo do qual fazia parte. “Eu tinha muita vontade de contar as histórias dos meus – pessoas LGBT+, mas não me via muito contemplado ali dentro. Toda vez em que eu tentava contar histórias de alguém, ninguém me entendia lá dentro, e acabei fazendo algumas coisas tidas como mais sérias. Mas me cansei rápido.”
Após algum tempo, quando ficou desempregado, Felitti encontrou a pessoa cuja história o faria encontrar um novo rumo em sua trajetória profissional. Ricardo Corrêa da Silva era até então conhecido pelo infame apelido Fofão da Augusta, pois costumava distribuir panfletos na rua Augusta, região central de São Paulo. Como é de se imaginar, o pseudônimo o tornava pessoalmente invisível: ele era chamado de Fofão por ter injetado cinco litros de silicone no rosto, mas o material deformou o seu rosto.
Felitti escreveu uma reportagem de 20 páginas que foi publicada no site Buzzfeed – que, de acordo com ele, foi “supermaluco de entrar na ‘pira’ minha, pois ninguém sabia se as pessoas iriam ler uma matéria de 20 páginas sobre um morador de rua.” Pois bem: as pessoas não só leram o perfil como o texto se tornou um viral nas redes sociais. Pode-se dizer que a narrativa humanizou a figura de Ricardo, que pouco tempo antes estava internado como uma pessoa anônima no Hospital das Clínicas: quem o ridicularizava soube que ele era de uma família rica de Araraquara, cidade no interior de São Paulo, da qual saiu por ser homossexual, era um cabeleireiro e maquiador extremamente competente, mas entrou em derrocada por causa de reveses sofridos na rua e pelo agravamento de um problema psiquiátrico não tratado.
Chico Felitti fala da sua jornada do jornalismo à produção de biografias e a busca para falar dos seus pares (Léu Britto / DiCampana Foto Coletivo)
A história de Ricardo Corrêa da Silva contada por Felitti repercutiu a ponto de uma prostituta francesa ter entrado em contato para dizer que conhecia o amor da vida do protagonista: tratava-se de Vânia Munhoz, mulher trans com quem Ricardo se relacionou quando ela ainda se identificava como homem e se chamava Vagner.
O contato com Vânia resultou em uma espécie de epílogo, transformado no livro Ricardo e Vânia: Ricardo e Vânia: O Maquiador, A Garota de Programa, O Silicone e uma História de Amor. A obra retrata a relação dos dois, assim como Vagner saiu do Brasil rumo à França, onde se descobriu como mulher trans e fez a transição para a identidade atual. “[Trata-se da] história de duas pessoas muito iguais, que se amaram em determinado momento da vida, mas se separaram e cujas vidas foram para caminhos completamente diferentes: Ricardo acabou na rua, sem ninguém saber o nome dele, e Vânia virou meio que uma estrela do mercado dela”, descreve Felitti. Outro aspecto do livro abrange a discriminação com pessoas trans, que, de acordo com o autor, “são enxotadas pela família, mas quando voltam, a família aceita o dinheiro sem querer ouvir de onde veio.”
Por fim, Chico Felitti considera que colocar em nichos específicos os autores cujos perfis fogem do padrão hegemônico reforça o imaginário sobre qual é a identidade média de escritores – e de demais profissionais inseridos em espaços de poder e de decisão. “Isto é discriminatório e é um sinal de que não somos todos iguais. Não existe a categoria de literatura de classe média alta, pois partimos do pressuposto de que as escritoras moram na zona oeste [da capital paulista], são ricas e brancas. Estamos muito longe, em todos os aspectos, do que deveria ser e enquanto houver categorias que só servem para afastar, as vozes não serão contempladas.”
Amauri Eugênio Jr.