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A resposta para a crise política está nas mulheres, em especial negras e indígenas – Fundação Tide Setubal entrevista Beatriz Pedreira

Programas de influência

24 de junho de 2020
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Por Amauri Eugênio Jr.

 

Mais do que tornar ainda mais evidentes as desigualdades socioespaciais e econômicas, em especial quando os recortes de raça e território são levados em consideração, a pandemia de Covid-19 trouxe à tona também que diretrizes políticas escolhidas por governantes ao redor do mundo têm papel decisivo para a sobrevivência populacional.

 

Enquanto os EUA computam os maiores números de contágio e de vidas perdidas por causa do vírus Sars-Cov-2, e o Brasil registrava mais de 1,3 milhão de casos e 57,6 mil vidas perdidas em 28 de junhopaíses como Alemanha e Nova Zelândia, liderados respectivamente por Angela Merkel e Jacinda Ardern, foram elogiados pela adoção de políticas firmes de isolamento social e de apoio à população em meio a esse cenário.

 

A participação feminina na construção de cenários políticos mais inclusivos e voltados à promoção da equidade é o tema principal da pesquisa Eleitas: Mulheres na Política. Realizado pelo Instituto Update, com apoio da Fundação Tide Setubal, Open Society, OAK Foundation e Luminate, o projeto, que analisou seis países da América Latina e no qual foram entrevistadas mulheres em cargos nas esferas legislativa e executiva, foi lançado em 21 de julho, no Seminário Folha de S.Paulo. O projeto conta também com websérie baseada na pesquisa – os três episódios estão disponíveis no canal do Quebrando o Tabu no YouTube. O estudo pode ser acessado em eleitas.org.

 

Em entrevista à Fundação Tide Setubal, a cientista social Beatriz Pedreira, cofundadora do Instituto Update, falou sobre a iniciativa, o aumento da participação das mulheres na política latino-americana e como as perspectivas adotadas por elas são importantes para a construção de novas iniciativas e medidas na esfera pública voltadas ao cuidado populacional.

 

 

Foram seis os países na América Latina retratados no Eleitas: Mulheres na Política, correto?

 

São seis países na América Latina. Começamos com México e Colômbia, sendo que foram depois Argentina e Chile. No caso do Brasil, a gente foi costurando entre as viagens e no final, por causa da pandemia, muitas entrevistas foram feitas dentro da linguagem pandêmica na qual vivemos. A gente contou com parcerias locais em cada país, o que fez toda a diferença. No caso da Bolívia, as primeiras entrevistas foram feitas presencialmente pelas nossas parceiras – posteriormente, foram online. Estamos olhando para entender como o poder emerge a partir das mulheres e como as que foram eleitas estão construindo uma nova dinâmica de poder. Nós nos questionávamos sobre o que muda quando mais mulheres estão no poder, qual era o significado de quando se falava que o futuro é feminino e como qualificamos a importância de mais mulheres na política. A pesquisa é o nosso meio para encontrar histórias inspiradoras que possibilitam às pessoas resgatar ou estabelecer a confiança na política como uma ferramenta de transformação.

 

Somos carentes de boas referências que nos permitam criar uma nova imaginação. Usamos as pesquisas para chegarmos a essas histórias, mas o modo que contamos e o resultado final são consequências de um relatório inspirador, que ajuda pessoas a entenderem que, ao mesmo tempo em que vivemos todas essas crises e tensões, coisas boas surgem ao nosso lado. Precisamos saber que existem muitas pessoas buscando soluções e caminhos alternativos para construir a possibilidade de uma sociedade mais igualitária, com igualdade de raça e gênero, e garanta o poder de expressão de todos.

 

Beatriz Pedreira entrevistando a deputada federal chilena Maya Allende (arquivo pessoal)

 

 

Uma questão que vem à tona além da pandemia é a conjuntura da América Latina, como a eleição de Alberto Fernández na Argentina, os protestos no Chile e a guinada ultraconservadora na Bolívia. Quais são os paralelos entre participação feminina nos países citados no Eleitas: Mulheres na Política e o que tem acontecido no Brasil?

 

O ponto de partida da nossa pesquisa foi quando estourou o Ni Una Menos na Argentina, com o debate sobre feminismo se popularizado. Isso permitiu haver uma conversa mais ampla sobre feminicídio na sociedade, o qual ainda era tratado – e ainda o é em muitos lugares – como um crime passional. Esse levante gerou uma onda que se tornou a única pauta presente nos 11 países para os quais viajamos em 2017, para realizar a pesquisa Emergência Política América Latina. Isso me impressionou bastante, pois era um indício muito forte. As ondas se repetem e os ciclos políticos tendem a ter um padrão na América Latina. Isso gerou uma possibilidade para começarmos a falar das mulheres como vetores sociais de maneira intergeracional.

 

A guinada conservadora na região tem a ver com uma resposta ao momento de despertar feminino, pois quando as mulheres começam a despertar para os seus papéis políticos, muita coisa muda na sociedade: o poder que queria se manter conservado foi colocado em xeque, havendo uma reação conservadora. Ao mesmo, a Argentina antecedeu isso ao eleger um representante neoliberal – Mauricio Macri – e isso gerou uma união muito interessante por lá, o que permitiu a eleição de Alberto Fernández. Ele está fazendo coisas muito interessantes em relação aos direitos das mulheres – se ele não tivesse uma visão muito sofisticada sobre o feminino e a importância dessa perspectiva, ele não ganharia. O clima na Argentina é totalmente baseado nos direitos das mulheres.

 

Houve a convulsão social no Chile, pois lá foi – e é – um laboratório neoliberal que está sofrendo consequências, com desigualdade social gritante. Milhares de pessoas foram às ruas contra a educação sexista presente nas universidades, com o levante das mulheres universitárias – sem sombra de dúvida, a convulsão social e o despertar político vêm também por causa do caldo criado com as mulheres. O movimento passou a ser amplo e diverso, aumentando o debate e o confronto. Outro momento impressionante das mulheres foi quando o movimento Las Tesis criou a coreografia El Violador Eres Tú e recolocou em pauta a perspectiva feminina. Isso permitiu pessoas que não estavam mais nas ruas a voltar – muita gente saiu das ruas quando os protestos haviam se tornado violentos.

 

Já a Bolívia é um país de vanguarda na região, pois alcançou a paridade constitucional e foi o primeiro país a criar uma lei de violência política. Apesar disso, trata-se de uma sociedade muito machista. É interessante falar sobre, pois quem preside é uma mulher conservadora que não representa as mulheres, pois é representante do modelo patriarcal e conservador de fazer política. Isso nos leva a sermos muito contundentes no estudo: não é sobre a participação de qualquer mulher na política. Temos de lutar pela paridade e a consciência de gênero precisa estar incluída nessa construção.

 

No caso do Brasil, não gosto de associar a eleição de Bolsonaro com o levante das mulheres – é muito mais complexo do que isso. Ao olharmos a partir da perspectiva das mulheres, estamos vendo no Brasil uma resposta muito forte e estou muito animada com o que virá nas eleições de 2020 – se tudo der certo, acontecerá – para as escolhas de mais mulheres. Vemos que elas estão despertando e entendo a necessidade de estar na política. A construção de um movimento para mais mulheres serem eleitas precisa acontecer, pois existe uma violência política de gênero e um sistema que não quer as eleições delas. A resposta para sairmos da crise política é por meio das mulheres, em especial negras e indígenas. As mulheres negras representam 27% da população, são as mais atingidas pelo sistema patriarcal capitalista e são as que precisam ter voz para formular políticas públicas que, com certeza, beneficiarão todos nós.

 

 

Beatriz Pedreira com o movimento político Estamos Listas e Dora Cecilia Saldarriaga, vereadora eleita pelo grupo (arquivo pessoal)

 

 

Como você considera, com base no que visualizou na produção do Eleitas: Mulheres na Política, que o panorama político pode ser mudado pela participação feminina?

 

É importante lembrar que a América do Sul foi a região que mais teve chefes de Estado mulheres e hoje não tem nenhuma líder eleita. Mas no Brasil, por exemplo, que estão sendo o front de resistência e de garantia de direitos durante a pandemia de Covid-19. Isso acontece porque há mulheres desses territórios, que já vivenciaram o descaso do poder público com esses espaços, que entendem melhor maneiras para desenvolver políticas públicas e como direcionar recursos neste momento tão drástico.

 

Estamos fazendo o mapeamento das mulheres da América Latina que estão trazendo respostas à pandemia. Para não valorizarmos apenas mulheres como Jacinda Ardern, a primeira-ministra da Nova Zelândia, aqui há mulheres que não têm o mesmo poder de uma chefe de Estado, mas estão movendo mundos e fundos para garantir as sobrevivências de pessoas. 107 mulheres inovadores entrevistadas. Todas elas têm direcionamento muito claro para as necessidades e resolução de problemas.

 

A estratégia feminina é resolver problemas e há uma orientação para isso guiar toda a estratégia política: as mulheres não estão ali para acumular capital político, mas sim resolver os problemas das desigualdades em âmbitos social, econômico, racial e assim por diante. Por causa disso, elas têm mais capacidade para escutar e mais empatia. Trata-se de uma conexão muito maior com a sociedade civil e isso as fazem estar mais atentas aos problemas reais.

 

É importante dizer que o momento pelo qual passamos marcará o resto das nossas vidas, principalmente no Brasil, pois vivemos uma política não apenas de retrocesso, mas também uma escalada autoritária. Demoraremos muito para nos recuperarmos das consequências econômicas, política e sociais presentes neste momento de pandemia, e passaremos o resto das nossas vidas reconstruindo esse tecido social. A minha aposta é: diferente do que foi no passado, há a possibilidade de termos mulheres com mais voz ativa e, acredito, elas têm maior possibilidade de reconstruir esse tecido social.

 

Entrevista feita com a deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL-SP) durante o isolamento social (arquivo pessoal)

 

 

Eu me lembrei de um artigo do The Intercept Brasil segundo o qual a revolução política viria das mulheres, principalmente as da nova geração. Quais exemplos dos países retratados podem servir como inspiração para lideranças femininas no Brasil? E quais iniciativas brasileiras podem sê-lo para lideranças políticas na América Latina e demais regiões?

 

As jovens, que podem levar questionamentos para dentro de suas casas, são de suma importância. É necessário ler sobre o assunto, debater com a família e ser também um agente na vida privada sobre esse tema. Essa foi uma das chaves do sucesso da grande mobilização experimentada pela Argentina em 2018. A minha geração e a anterior puderam levantar o feminismo a partir da sexualidade, e as meninas mais jovens podem fazê-lo na mesa da família, que é o grande momento da união familiar.

 

 

Assista aos três episódios de Eleitas: Mulheres na Política

 

 

De quais maneiras os homens podem participar de modo mais ativo em favor da equidade de gênero e respeitando o lugar de fala e o protagonismo?

 

Sendo agente da transformação. A transformação da qual a gente precisa não é só em direitos políticos, mas também em comportamento social. Precisamos de homens seguros de si o suficiente para saírem do lugar de achar que são a representação da humanidade e ir para o lugar do apoio, como aliados. É mais do que dar espaço de fala, mas do quanto é aliado dessa construção. Faz parte o novo masculino. A partir de outra leitura do poder feminino, a gente poderá revisitar o poder masculino para deixar de ser tóxico – a gente precisa trazer à luz as qualidades positivas de um masculino não tóxico. O papel do homem é ser backstage um pouco e ser estrutura, coisas que fomos por tantos e tantos anos. É hora de mudar um pouco de lugar: quando fazemos isso, encontramos novas perspectivas.


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