“Debate racial no Brasil: uma causa de todos”, por Maria Alice Setubal e Sueli Carneiro
A construção de uma sociedade mais justa passa, necessariamente, pelo enfrentamento das desigualdades educacionais. E, como apontado recorrentemente por estudos e pesquisas, a busca por essa equidade está diretamente relacionada à temática racial. O Festival do Livro e da Literatura de São Miguel, realizado pela Fundação Tide Setubal e que chega à sua oitava […]
A construção de uma sociedade mais justa passa, necessariamente, pelo enfrentamento das desigualdades educacionais. E, como apontado recorrentemente por estudos e pesquisas, a busca por essa equidade está diretamente relacionada à temática racial.
O Festival do Livro e da Literatura de São Miguel, realizado pela Fundação Tide Setubal e que chega à sua oitava edição, confirmou-se nessa trajetória como um importante evento de articulação para o diálogo sobre os mais diversos temas, sinalizando a relevância da literatura não só como fim, mas como meio para o debate.
As atividades são incorporadas à rotina local com a participação da comunidade, que, em rede, constrói a programação. Durante três dias, 52 pontos na zona leste de São Paulo serão ocupados com mais de 150 atividades.
Com o tema "Letras Pretas: poéticas de corpo e liberdade", neste ano o evento promoverá uma reflexão sobre a representação do negro, como autor e personagem, e a literatura como uma ferramenta na luta contra o racismo, com base em diretrizes pensadas em parceria com artistas, instituições e estudiosos do movimento negro.
A disparidade racial no mercado editorial e na representação dos personagens reflete um padrão de nossa sociedade. Apesar de 53% da população se autodeclarar negra, de acordo com dados do IBGE, 94% dos autores publicados pelas principais editoras do Brasil são brancos, assim como 92% dos personagens, como aponta um estudo da pesquisadora Regina Dalcastagnè.
O estudo mostra ainda que, enquanto personagens brancos oscilam entre as classes médias e a elite econômica, os negros são constantemente retratados como pobres, em 73,5% dos casos, ou miseráveis, em 12,2% das vezes.
O racismo se materializa e se reproduz nos estereótipos criados pela sociedade. Como adverte o sociólogo Stuart Hall (1932-2014), esse fator atua como um elemento-chave nas violências simbólicas que afetam a população negra.
O fomento à literatura negra é estratégico, pois provoca deslocamentos e proporciona o direito à autorrepresentação, à memória e ao imaginário, com narrativas que desconstroem estereótipos, neste momento em que se disputa uma concepção de país. Escritores negros enfrentam o desafio de descolonizar velhas narrativas, propondo novas possibilidades que atualizam e diversificam a representação das potências dessa população.
Nesse contexto, as instituições que atuam no campo social do investimento privado precisam ousar e trabalhar para inserir a equidade racial em suas pautas.
Segundo dados do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), apenas 2% das fundações e institutos têm a questão racial como foco entre seus beneficiários.
Apesar de diversos estudos, realizados por organizações como McKinsey e PwC, apontarem melhores resultados financeiros em empresas que possuem maior diversidade, só 8% das 500 maiores companhias brasileiras têm ações afirmativas para negros, de acordo com análise realizada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Instituto Ethos em 2016.
Pela experiência de quase duas décadas do Geledés Instituto da Mulher Negra no processo de sensibilização para a temática racial, é possível observar que há resistência relacionada com a natureza do racismo, de manutenção dos privilégios e da invisibilidade dos negros.
Diante desse cenário, contribuir para a eliminação de todas as formas de discriminação com o desenvolvimento de ações que promovam a equidade racial deve ser uma bandeira de todas as organizações que atuam na sociedade.
MARIA ALICE SETUBAL, a Neca, é socióloga e educadora; doutora em psicologia da educação, preside os conselhos da Fundação Tide Setubal e do Gife; fundadora e membro do conselho do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), pesquisa educação, desigualdades e territórios vulneráveis
SUELI CARNEIRO, doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e fundadora do Geledés Instituto da Mulher Negra, primeira organização negra e feminista independente de São Paulo; integra o Conselho Curador da Fundação Tide Setubal
Artigo Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo em 13/11/2017