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A população voltará a confiar no Estado quando houver políticas públicas eficientes – Entrevista com Gilberto Sonoda
Entrevista com Gilberto Sonoda, gestor do Prontuário Carioca da Saúde Mental e da Superintendência de Saúde Mental do Município do Rio de Janeiro, abordou a democratização e acesso à saúde mental e também o enfrentamento das desigualdades e a atuação do serviço público, incluindo em âmbito multissetorial. Idem sobre colocar em prática ações para a população voltar a confiar no Estado.
Otimizar a coleta e gestão de dados para beneficiar grupos minorizados de direitos. Esta é a premissa do projeto Prontuário Carioca da Saúde Mental (PCSM), vencedor da edição 2024 do Prêmio Espírito Público, na categoria Gestão e Planejamento – que contou com apoio da Fundação Tide Setubal. A iniciativa visa reconhecer o trabalho de profissionais que atuam para transformar positivamente o serviço público no Brasil.
Dentro desse propósito, o PCSM, desenvolvido pela Superintendência de Saúde Mental do Município do Rio de Janeiro em parceria com a Empresa Municipal de Informática do Município do Rio de Janeiro (Iplanrio), integra informações dos usuários da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do município para melhorar a coleta de dados, planejamento e gestão, e direcionar ações em benefício de pacientes alvos de discriminação.
O PCSM integra, desse modo, dados referentes à RAPS, contemplando as 37 unidades do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e o Instituto Philippe Pinel. Logo, o Prontuário reúne mais de 94 mil documentos. Além disso, o projeto coloca em debate as barreiras estruturais e subjetivas para a população negra e periférica ter acesso a tratamentos para a saúde mental.
Em entrevista, Gilberto Sonoda, gestor do Prontuário Carioca da Saúde Mental e da Superintendência de Saúde Mental do Município do Rio de Janeiro abordou a democratização e acesso à saúde mental e também o enfrentamento das desigualdades e a atuação do serviço público, incluindo em âmbito multissetorial. Idem sobre colocar em prática ações para a população voltar a confiar no Estado.
Confira a entrevista a seguir.
Quando se fala em universalização do acesso à saúde, a perspectiva psicossocial fica em segundo plano ou é sequer considerada. De qual modo iniciativas como o Prontuário Carioca da Saúde Mental (PCSM) trazem à tona o debate sobre democratização do acesso à saúde mental e contribuem para enriquecê-lo, pensando na esfera pública?
Gilberto Sonoda: Este foi um dos grandes pontos na questão do PCSM. Trata-se de um prontuário pioneiro no Brasil em relação ao registro eletrônico dos atendimentos e do cuidado do paciente da saúde mental. Isso é de extrema importância no sentido de começarmos a ter dados para avaliar melhor e ter planejamento mais efetivo no cuidado com esse paciente da saúde mental. Afinal, ele sofreu discriminação por muitos anos, em alguns momentos, quanto aos casos mais graves, e de certa forma até segregado pela sociedade. O exemplo maior da segregação são os próprios manicômios.
Isso porque o próprio atendimento a alguns pacientes da saúde mental ocorre como se ele estivesse à parte. O cuidado deve ser igual a qualquer outro e é de altíssima complexidade, pois envolve processos de trabalhos variados, muito diferentes do restante do cuidado da saúde da população.
Ao analisar dados do Boletim Informativo Nise da Silveira do primeiro quadrimestre de 2024, pôde-se perceber que, além da incidência de atendimentos entre pessoas negras e de territórios distantes da área central, havia correlação de casos com demais problemas sociais. Como o PCSM ajuda a tornar visíveis grupos minorizados e para os quais o poder público tem mais dificuldade para chegar de modo efetivo?
Gilberto Sonoda: Há dois aspectos. O primeiro é a dificuldade de acesso das populações negra e de mais baixa renda a todos serviços, principalmente aos de saúde. A saúde mental não foge desse panorama – isso está colocado nos dados. É importante citar o Boletim Informativo Nise da Silveira, como outros vários instrumentos que temos para gestão e planejamento, por meio dos dados que começamos a coletar do PCSM.
Estamos com praticamente três anos de efetivo início do Prontuário. O começo foi gradual e chegamos ao fim de 2023 com todos os CAPS utilizando-o. Além dos CAPS, houve também a questão da emergência do Hospital Philippe Pinel e alguns ambulatórios que denominamos de deambulatórios, que são as equipes mais próximas e ligadas à rede de atenção primária, para fazer a aproximação com essa população que tem dificuldade no acesso ao cuidado da saúde mental. Isso foi após falarmos da segregação e dificuldade dessa população para esse cuidado, principalmente após a pandemia, quando ficou evidente a importância do cuidado com a saúde mental.
Desse modo, estamos conseguindo transformar dados em informação palpável para a saúde mental. Idem sobre a dificuldade das populações negra e de baixa renda ao acesso. Mas conseguimos atingir a maioria da nossa população – a população negra – no atendimento da área da saúde mental.
Quais aprendizados você e a equipe que desenvolveram o PCSM tiveram durante o percurso até implantar na rede inteira e no auxílio aos profissionais que estão na ponta, para otimizar fluxos e tornar o desenvolvimento de prontuários mais efetivo?
Gilberto Sonoda: A primeira implantação foi em dezembro de 2020, em duas unidades do CAPS. Foi uma batalha, primeiro porque a nossa equipe ainda tem tamanho reduzido. Fizemos treinamentos, às vezes com mais de uma unidade, para mostrar como era o uso, explicar o objetivo dele e possibilitar o uso. É importante ressaltar uma questão que considero inovadora no projeto: todo sistema deve ser construído visando quem o utilizará. Profissionais que o usam estão na ponta para coletar dados – sem dados não existe informação. Destaco às pessoas que elas são as responsáveis pela nossa informação – não adianta construir um Prontuário maravilhoso se não o utilizarem ou incluírem dados da forma correta. O PCSM procurou representar o processo de trabalho de complexidade do cuidado com pacientes de saúde mental.
Por que o fizemos de forma coletiva e colaborativa? Eu tinha o conhecimento, mas ouvimos os profissionais da saúde e entendemos os processos que utilizavam na época do registro de papel para torná-lo no prontuário eletrônico. Isso facilitou muito, ele é de fácil usabilidade – é muito intuitivo. Fizemos, depois, essa rede também com os próprios funcionários. Identificamos alguns deles dentro das unidades, que pudessem ser também pontos focais para transmitir o conhecimento a outras e outros dentro da própria unidade. Isso funcionou muito bem e foi um dos pontos positivos do processo do Prontuário.
O segundo ponto é a forma como fizemos a parte do núcleo de desenvolvimento. A equipe de desenvolvimento ouvia e trocava [percepções] diretamente com os clientes – trocamos até hoje. A proximidade de toda a equipe junto aos usuários dos sistemas também foi inovador e facilitou muito o desenvolvimento. Ressalto que o PCSM ainda não chegou ao fim, pois é muito vivo e está em constante melhoria.
Gilberto Sonoda fala da qualidade de qualificar informações para melhorar políticas públicas
É possível considerar que o processo para o Estado recuperar a confiança da população passa por promover melhorias no acesso a dados por meio da integração de sistemas de secretarias e órgãos diversos? Com base na experiência com o PCSM, o que pode ser dito a respeito?
Gilberto Sonoda: Esse é um ponto fundamental. Inclusive, foi a nossa participação no Prêmio Espírito Público. Falamos de um prontuário de desenvolvimento público e isso é de muito orgulho para nós. O desenvolvimento público é uma coisa que motiva muito essa equipe do PCSM. Sem o Estado não teremos condições, se ele não for um agente de efetivo atendimento à sociedade, em políticas públicas nas áreas da Saúde, Educação ou Segurança Pública, por exemplo. Assim sendo, são áreas estratégicas nas quais o setor público tem de estar presente.
Sem dados não há informação. É fundamental que todas as ações que visem não a otimização e a captação de recursos sejam baseadas em informações que possam priorizar o planejamento dessas ações. A confiança da população voltará quando tivermos políticas verdadeiras, eficazes e eficientes. Isso diz respeito a mostrar que o setor público pode ter atuação forte. Idem que a população receba de volta o que ela tem de expectativas nessas áreas.
É fundamental, primeiro, a adequada coleta de dados. Segundo, a geração de informações que permitam gestores públicos ter um planejamento adequado e, com isso, ações adequadas para as necessidades apresentadas pela sociedade.
Gilberto Sonoda destacou a importância de fortalecer o serviço público para melhorar o impacto no dia a dia da população
Como você considera que o reconhecimento por meio do Prêmio Espírito Público valoriza a inovação, pensando no funcionalismo público e na otimização da qualidade dos serviços que são prestados?
Gilberto Sonoda: Eu já conhecia o Prêmio Espírito Público e nunca tive oportunidade de participar. Falei no dia [da cerimônia], inclusive, que o prêmio era a cara do Prontuário – colocamos o coração nisso. Acho fundamental não só para nós, mas para todos que participaram, pois todos ingressaram com o espírito público. Desse modo, todas as iniciativas são públicas e têm de ser aplaudidas, independente se ganhou ou não.
O prêmio é de fundamental importância pela mobilização que ele traz, não somente entre os participantes, mas, principalmente, por ele colocar na imprensa a questão do serviço público. Ficamos bastante orgulhosos de ter participado do projeto e muito felizes, obviamente, de chegarmos à finalíssima e ainda mais por termos ganhado na nossa categoria.
Mas não queremos que esse seja o ponto final. Consideramos como um grande reconhecimento e ficamos gratos. Seguiremos, enfim, o nosso caminho e continuaremos a fazer como sempre fizemos até agora.
Entrevista: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Renato Stockler