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Fundação Tide Setubal Entrevista Ana Lúcia Lima
Por muito tempo, as pessoas eram classificadas entre alfabetizadas e analfabetas. Contudo, uma parcela significativa dos brasileiros não encaixava-se em nenhuma das categorias: sabiam ler palavras isoladas, reconhecer números ou escrever bilhetes curtos, mas mostravam-se incapazes de entender um texto mais complexo, captar ironias ou subjetividades ou realizar um cálculo matemático simples. Com o intuito […]
Por muito tempo, as pessoas eram classificadas entre alfabetizadas e analfabetas. Contudo, uma parcela significativa dos brasileiros não encaixava-se em nenhuma das categorias: sabiam ler palavras isoladas, reconhecer números ou escrever bilhetes curtos, mas mostravam-se incapazes de entender um texto mais complexo, captar ironias ou subjetividades ou realizar um cálculo matemático simples. Com o intuito de realizar um diagnóstico sobre os níveis de alfabetismo da população brasileira de 15 a 64 anos surgiu em 2001 o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), um estudo feito em parceria entre a Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro, e realizada pelo IBOPE Inteligência.
Para discutir os resultados recém divulgados de sua última edição, conversamos com Ana Lúcia Lima, coordenadora do estudo. Na entrevista a seguir, ela discorre sobre as melhoras observadas ao longo das décadas, como o declínio do número de analfabetos, que foi de 12%, em 2001-2002 para 4% em 2015, e a dificuldade de elevar-se o número de pessoas que atingem os níveis mais altos da escala de alfabetismo, mesmo com a expansão do acesso ao ensino superior.
Qual a importância do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf)?
O Inaf nasce quando, em uma parceria com a Ação Educativa, o Instituto Paulo Montenegro identifica que o analfabetismo funcional é um campo que não estava sendo coberto por ninguém, apesar de sua importância e conexões com ideias como a educação ao longo da vida. A gente começa então a fazer o estudo com a inspiração conceitual da Ação Educativa, que entende muito de educação de adultos, e com a experiência do Ibope, que entende muito de levantamento de fenômenos amostralmente na sociedade brasileira. Essas duas expertises somadas geraram o indicador, com a sua primeira edição em 2001. De lá pra cá, já são 10 edições, mantendo a mesma metodologia, com dados comparáveis ao lado destes 17 anos.
O Inaf vem em um momento em que os dados educacionais escolares (Saeb, Prova Brasil, Enem) estão se consolidando no país, e há uma necessidade de entender o que acontece com a população que está fora da escola, ou por uma questão de idade ou porque evadiu. Ele vai além do letramento escolar e olha para essa população.
Como o alfabetismo funcional pode ser definido?
O estudo traz à tona um conceito mais moderno de alfabetismo, que não é o conceito binário, de estar alfabetizado ou não, mas vê as competências de letramento e numeramento como desenvolvidas ao longo do tempo, por meio de aprendizagem e de práticas que requerem o seu uso. Ao descrever o alfabetismo em cinco níveis de um contínuo, permite não só acompanhar o alfabetizado ou não alfabetizado em um sentido mais estrito, mas também os níveis intermediários. Os níveis analfabeto e rudimentar definem o analfabetismo funcional, e os níveis elementar, intermediário e proficiente, compõem os níveis básico e pleno.
O que pode ser observado na evolução da série histórica do estudo?
Na última edição do Inaf, reconstruímos a série histórica usando os cinco níveis de alfabetismo e os resultados apontam para boas coisas. De um lado, temos uma evolução dos níveis mais baixos de analfabetismo, que concentram as pessoas que são de fato analfabetas (não identificam letras, números, palavras) e as que possuem apenas domínio rudimentar (conseguem por exemplo escrever o próprio nome ou anotar um número de telefone). Ao longo do tempo, os analfabetos funcionais caíram de 39% para 29%, o que do ponto de vista de macro fenômeno é uma queda realmente significativa, que se dá por causa da universalização do Ensino Fundamental e a ampliação do número de anos de estudo e aumento de pessoas frequentando o Ensino Médio e Fundamental – quanto mais anos as pessoas frequentam a escola, mais elas elevam as suas habilidades de alfabetismo. Essa mudança de dez pontos percentuais é muito impressionante por um lado, mas a má notícia é que as pessoas que se deslocaram desses níveis mais baixos de alfabetismo acabam se concentrando nos níveis intermediários, nas primeiras faixas de alfabetismo. O nível mais elevado, de proficientes, mantém 12% das pessoas desde 2001 e não mostra nenhuma evolução neste período.
A expansão do ensino superior não teve impactos no aumento de pessoas nos níveis mais elevados da escala?
Se você olhar separadamente as pessoas com menos idade, eles têm letramento bem melhor que os mais velhos – o que relaciona-se com ter estado mais tempo na escola. Mas esse avanço ocorre nos níveis intermediários, não na ponta. Ao analisar o perfil de quem tem o nível proficiente lá em 2001, que são 12%, e comparar com quem tem alfabetismo proficiente em 2018, é a mesma turma: classe média alta, escolaridade alta, famílias com pais escolarizados nas gerações anteriores, brancos, etc. Não estamos nesse processo democratizando o domínio qualificado das habilidades de alfabetismo ao longo da vida das pessoas.
Quando você observa o grupo mais velho, percebe que os analfabetos funcionais, que não sabem nada ou são rudimentares, concentram 50% das pessoas com entre 50 e 64 anos – algo muito expressivo. Metade da população brasileira com entre 50 e 64 anos, portanto terminando sua vida produtiva mas ainda com uns 30 anos pra frente, são analfabetos funcionais. Essa mesma qualificação de analfabetos funcionais no grupo com entre 15 e 24 anos já cai para 12%, 15%. É um grande avanço, porque conseguiu se universalizar pelo menos o ensino fundamental. Agora, mesmo nesse grupo jovem, o alfabetismo proficiente ainda é muito baixo. Tiramos as pessoas de um nível muito ruim para um nível intermediário, e não de ponta. A nossa leitura é de que o primeiro avanço se faz com quantidade de educação, mais gente estudando, mais gente na escola, mas o segundo pulo só ocorrerá com mais qualidade na educação.
Que políticas e ações poderiam contribuir para reverter esse quadro?
O Inaf só existe para evidenciar essa fragilidade da população brasileira, colocar o tema na agenda e tentar mobilizar diversos segmentos e atores da sociedade para encarar essa realidade. A gente também fala que, embora a educação formal seja o principal ator para desenvolver habilidades de alfabetismo, não é o único. Uma grande parcela das pessoas que hoje é analfabeta funcional ou tem um domínio muito baixo não vai voltar para a escola. Quais são os outros atores sociais, espaços, onde essa qualificação poderia avançar?
Por um lado, o mundo do trabalho seria o lugar mais óbvio – quando a pessoa sai do mundo escolar, ela geralmente vai para o mundo produtivo e o ambiente de trabalho poderia ter grandes oportunidades para criar esse movimento. E outros espaços, como a própria cultural, participação social, igrejas, poderiam ajudar.
O Inaf tenta ser um provocador para que caia a ficha da sociedade brasileira de que, por um lado, a educação precisa parar de produzir analfabetos funcionais escolarizados, ou alfabetizados com níveis insuficientes que tenham passado, às vezes, por 12 anos de escola, e ainda têm restrições em suas habilidades. Mas também precisamos olhar para os demais espaços, inclusive no mundo empresarial. O trabalhador com insuficiência de competências de letramento e numeramento limita a sua capacidade de produtividade, de inovação, de competitividade, de liderança. Essa fragilidade afeta até o retorno financeiro.
Dentre pessoas com escolaridade semelhantes, existem diferenças em termos de sexo, cor e nível socioeconômico?
Sim. Um ponto importante é a escolaridade dos pais. Para uma pessoa que cresceu em um ambiente letrado, o convívio com o livro, com a letra, o jornal, o pai que escreve, a mãe que conta história, tudo isso gera vantagens nesse campo. E essa condição de escolaridade das gerações mais velhas é fortemente relacionada a renda. Hoje em dia você tem isso mais democratizado, mas se olharmos a geração dos pais das pessoas que entrevistamos, que hoje têm 40, 50, 60 anos, seus pais estão em uma geração anterior à expansão do acesso à escola. Pessoas com pais com baixa escolarização, e portanto com pouca prática de letramento no ambiente doméstico, costumam ter níveis de letramento diferentes. O letramento é relacionado a poder, a acesso a cargos mais altos, que por sua vez garantem melhor renda, e assim se prolonga o ciclo da desigualdade brasileira.
A pesquisa explora o âmbito digital. Como o letramento impacta a habilidade de lidar com esses conteúdos?
A edição de 2018 avança muito em termos de incluir algumas leituras do contexto digital em sua metodologia, para mediar a ambientação das pessoas no espaço digital. Ainda divulgaremos análises em profundidade sobre estes aspectos, mas já temos conclusões interessantes sobre o impacto dos meio digitais no letramento.
Hoje entendemos o quanto o letramento favorece ou limita o uso mais qualificado das plataformas digitais, influenciando até mesmo a propagação de fake fews, pois muita gente não entende que um conteúdo contém ironia ou não é confiável.
Para os jovens, as plataformas digitais e as opções de uso da leitura e escrita no ambiente digita parecem ser muito positivas. Estamos trazendo para o uso da linguagem escrita gente que normalmente não usaria esse formato. Então por mais que a pessoa escreva errado, use só a curtida, precise gravar a mensagem ao invés de escrever, ele passa a estar em um ambiente de letramento. E o jovem consegue fazer isso de forma mais independente de sua escolaridade ou renda. Por outro lado, na população mais velha, esse torna-se um fator a mais de exclusão. A pessoa já era excluída por ser pouco letrada, ter baixa renda, um trabalho pouco qualificado, e agora ainda é excluída por não participar do meio digital.