Fundação Tide Setubal entrevista Sueli Carneiro
“As mulheres, particularmente as negras, ousam clamar por um novo contrato racial e sexual, que seja emancipatório e abra espaço para uma convivência na qual o respeito e a valorização da necessidade humana e das diversidades sejam os princípios fundamentais de uma nova perspectiva de sociedade, de país e de nação”, diz Sueli Carneiro, ativista, […]
“As mulheres, particularmente as negras, ousam clamar por um novo contrato racial e sexual, que seja emancipatório e abra espaço para uma convivência na qual o respeito e a valorização da necessidade humana e das diversidades sejam os princípios fundamentais de uma nova perspectiva de sociedade, de país e de nação”, diz Sueli Carneiro, ativista, filósofa, doutora em Educação e fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, a primeira organização negra e feminista independente de São Paulo.
Criado na época da redemocratização, em 2017, o Geledés completa 30 anos. “A organização nasceu no bojo de um processo que determinou o protagonismo extraordinário, em especial de mulheres e negros, no processo de construção da Constituição Cidadã. O Geledés emergiu como um instrumento político para dar voz e destaque para mulheres negras em uma proposta bastante ousada para a época, de afirmá-las como sujeitos políticos indispensáveis para discutir questões de direitos humanos, educação, saúde, comunicação, políticas públicas”, diz Sueli.
Segundo Sueli, o feminismo negro nasce da percepção de que as mulheres negras padecem de desvantagens em relação aos demais segmentos sociais em função do impacto que a articulação de racismo, sexismo e classe social determinam. “Existe evidência de que, apesar de todos os esforços de luta das mulheres negras, sempre presentes nos movimentos feministas, os resultados colhidos como consequência desse processo de luta coletiva são inferiores aos aferidos pelas mulheres brancas”, diz. “Isso ocorre porque as conquistas alcançadas coletivamente pelas mulheres acabam privilegiando as mulheres brancas em função da persistência do racismo sobre as mulheres negras. Por outro lado, as conquistas alcançadas pelo movimento negro terminam por privilegiar homens negros em função do sexismo”.
Sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, Sueli se emociona: “É uma morte que contém em si todos os elementos essenciais para a compreensão das relações raciais e de gênero no Brasil, e como elas se configuram no presente. A Marielle era a expressão completa do que chamamos de interseccionalidade que o feminismo negro aporta para o debate sobre as questões de gênero, em que se articulam gênero, classe e território. Mulher negra, lésbica, cria da Maré e ainda socióloga e parlamentar. Ela foi assassinada em um momento em que o protagonismo das mulheres negras alcança um maior grau de visibilidade, no momento em que esse protagonismo afirma o seu lugar de fala, demarca as condições necessárias para que o feminismo possa se tornar um instrumento emancipatório efetivo para todas as mulheres, portador de um novo contrato racial e de gênero que desestabilize as hierarquias e violências físicas e simbólicas instituídas pelo racismo e pelo sexismo”.
Ao pensar no futuro do feminismo, a ativista é esperançosa. “Os estudiosos, sociólogos, antropólogos, vão daqui há algum tempo nos explicar como fomos da percepção de que estávamos pregando no deserto para esse momento com essa nova geração de feministas emergindo desta maneira, com tanta coragem, tanta convicção, tanta indignação, não apenas levando as nossas bandeiras mas trazendo novas estratégias e novos temas para o debate público e para questões de gênero e raça”.
Leia a entrevista completa, na qual Sueli fala da militância feminista e antirracista no Brasil, do poder das novas gerações de feministas e de sua recente entrada no Conselho da Fundação Tide Setubal.
Como começou a sua militância e luta contra a discriminação?
Sueli Carneiro– A experiência de discriminação racial é vivida por toda pessoa negra, já nos primeiros anos de vida. Entrar na escola foi, pra mim, um momento em que essa questão se manifestou de maneira bastante dolorosa. Em diversos estudos sobre as questões do negro e a educação, fica evidente que geralmente é na escola que ocorrem as primeiras experiências danosas que as crianças negras têm com o racismo e a discriminação, e comigo isso não foi diferente. Por outro lado, meus pais sempre tiveram muita consciência racial e nos alertavam sobre o que iríamos enfrentar, ensinando como encontrar maneiras de nos defender. Cresci com uma relativa consciência da discriminação racial, além das experiências concretas que foram se acumulando ao longo da vida.
Mas eu sempre digo que a consciência racial individual é uma etapa dessa nossa jornada e o tornar-se um ativista é um outro momento, um outro processo. Ele tem relação com a compreensão de o combate ao racismo é uma pauta política e existem pessoas que, desde momentos anteriores a nós, vêm enfrentando essa luta na esfera pública e no embate político com os poderes instituídos. No momento em que eu fui para a universidade me dei conta de que, para além da minha consciência racial, haviam grupos, como o movimento negro e o movimento das mulheres. Eles transformaram essa consciência individual em estratégias de luta, pautas de reivindicação.
Da mesma maneira, a experiência da violência de gênero, experimentada por mim também na infância, foi determinante para o desenvolvimento de uma consciência feminista. A violência doméstica era uma experiência muito constante no cotidiano de mulheres das comunidades periféricas onde eu cresci, e isso desenvolveu em mim uma indignação muito grande em relação a essa supremacia masculina, que se efetivava no espancamento das mulheres. Na universidade, entrei em contato com o movimento feminista e percebi também que isso é uma agenda política, um fenômeno que as mulheres haviam politizado, trazido para a esfera pública como uma questão a ser combatida, ideologicamente e como política pública de combate às desigualdades de gênero existentes na sociedade brasileira.
Nesse momento, passei a acompanhar as ações realizadas por esses dois movimentos, e quando eu vi Lélia Gonzalez falando pela primeira vez em um seminário no começo da década de 1980, percebi que pensar em uma possibilidade de ação política em torno das questões de raça e de gênero atendia totalmente as inquietações e a indignação que eu sentia. Foi um caminho sem volta.
O feminismo negro é pensado para lidar com a dupla opressão enfrentada pelas mulheres negras, que manifesta-se pela somatória do racismo e o machismo. Quais são suas características?
Sueli Carneiro – A combinação perversa de racismo, sexismo e subalternidade de classe social produz uma situação de confinamento, de asfixia social para as mulheres negras, destinando-as aos patamares inferiores da hierarquia social. É exatamente contra isso que emergem organizações de mulheres negras de norte a sul do Brasil, com protagonismo ao redor da ideia de um feminismo negro.
O feminismo negro denuncia a desigualdade existente entre mulheres negras e brancas, e os privilégios que a brancura oferece. Mesmo que as mulheres brancas estejam submetidas ao domínio patriarcal, ainda assim, elas têm vantagens comparativas em relação às negras, por conta do benefício arbitrário que a brancura tem como parâmetro estético privilegiado do ser mulher.
Esse feminismo vem não apenas para apontar estas desigualdades, como para reivindicar políticas públicas compensatórias que possam reverter esse quadro de desigualdade e ofertar igualdade na competição entre mulheres e negros na sociedade brasileira. É um feminismo que também se arvora portador de um novo pacto civilizatório, em que seja possível destituir as hierarquias e os privilégios que racismo e sexismo produzem na sociedade brasileira e outras, ao custo da opressão e da subalternização de grupos étnico-raciais e das mulheres.
Em sua opinião, quais políticas públicas poderiam contribuir para a redução das desigualdades raciais e de gênero?
Sueli Carneiro – Considerando que em qualquer dimensão da sociedade brasileira, você encontra desvantagens e desigualdades determinadas tanto em processos históricos como pela prevalência, um princípio que tem sido exaustivamente reivindicado é a adoção de políticas de ação afirmativa em todas as dimensões sociais. A política de cotas nas universidades é um exemplo disso, e existem diversos outros mecanismos que poderiam ampliar a igualdade: um exemplo seria a legislação convidar fornecedores privados e empresas públicas a adotar políticas de diversidade como critérios para poderem atender ao Governo.
Temos também questões que demandam um maior envolvimento da sociedade, exigem que os brasileiros reconquistem e recuperem sua capacidade de indignação diante de práticas absolutamente bárbaras, como o genocídio de jovens negros no Brasil. São números que impactariam e envergonhariam qualquer sociedade – que não a nossa – e que nos coloca em um patamar vergonhoso em termos de civilização. Isso depende primeiro da indignação da maioria de nós, de considerar que é inaceitável que práticas desse tipo ocorram.
Como você vê essa nova valorização do feminismo, liderada sobretudo por mulheres jovens?
Sueli Carneiro – É o maior presente e o maior reconhecimento que a minha geração de feministas poderia receber. É um momento quase de euforia para nós, velhas feministas, assistir esse emergente protagonismo das jovens feministas. Por muito tempo, em nossos encontros olhávamos para trás e não havia ninguém para assumir o bastão que tínhamos para transferir. achávamos que havíamos fracassado nessa missão de convencer as mulheres jovens a se envolver com isso, porque sempre houve um esforço do machismo em ridicularizar e estigmatizar o feminismo. E esse esforço foi muito bem-sucedido, ao ponto de chegarmos a ter gerações que diziam “nós somos femininas, não feministas”.
O universo está nos dizendo, por essas meninas, que tudo valeu a pena. Elas estão prontas para seguir adiante, nos carregando com elas em todas as suas lutas no futuro. Eu me sinto extremamente grata a todas as elas por, de alguma maneira, estarem dizendo para mim e para toda a minha geração que valeu a pena.
No ano passado, você passou a integrar o Conselho da Fundação Tide Setubal. Como foi este convite e por que você o aceitou?
Sueli Carneiro – Quem fez o contato comigo foi o Guiné (Wagner Luciano Silva, coordenador da Fundação Tide Setubal). Tive o prazer de reencontrá-lo, pois ele foi um dos jovens do Projeto Rappers de Geledés, há muitos anos. Fico feliz em saber que esse projeto, tão importante para nós, foi uma experiência positiva para ele, tanto que ele me trouxe até vocês.
Com o convite, descobri o empenho da Fundação Tide Setubal no sentido de lidar com nossos temas. Fiquei muito esperançosa ao ver uma instituição, com um importante papel na sociedade e com uma liderança da dimensão da Neca Setubal, acredita na relevância destes temas e na necessidade de enfrentá-los, com a disposição de fazê-lo.
Durante uma reunião com a Neca e a equipe da Fundação, ficou evidente como a questão racial emergiu com muita força nos territórios onde a organização atua, e diante disso, emblematicamente, é fundamental a decisão política de agir. Vocês podiam fechar os olhos, fazer de conta que não viram. Essa é uma forma tradicional e comum, escolhida por muita gente para lidar com o problema, mas entenderam a necessidade de enfrentar a questão à luz da missão institucional, e não silenciar, tanto no discurso quanto na prática, diante da magnitude que essa questão traz.
Para alcançarmos o projeto de país que nós queremos, indo na direção de uma sociedade democrática, com justiça social e igualdade de gênero e raça, nós temos que integrar e incluir genuinamente mulheres e negros em todas as instâncias do poder e do fazer.
Como você espera poder contribuir com a Fundação Tide Setubal?
Sueli Carneiro – Eu entendi que a Fundação está sinceramente empenhada no enfrentamento da questão racial e de gênero. Essas questões têm dado sentido para a minha existência, e tudo o que for proposto no sentido de fazê-las avançar positivamente na sociedade brasileira, estou à disposição.