Analista de comunicação e produtor de conteúdo do site da Fundação Tide Setubal
Histórias de vida e perspectivas de futuro das mulheres da periferia, por Maria Alice Setubal
Em tempos de discussão sobre o papel da mulher na sociedade, a voz e a condição das moradoras de áreas de alta vulnerabilidade social nas cidades têm de ser levadas em conta nas diferentes reivindicações femininas e para o desenho de políticas públicas mais eficazes
Em tempos de discussão sobre o papel da mulher na sociedade, a voz e a condição das moradoras de áreas de alta vulnerabilidade social nas cidades têm de ser levadas em conta nas diferentes reivindicações femininas e para o desenho de políticas públicas mais eficazes
As periferias urbanas e as desigualdades socioespaciais vêm sendo objeto de muitos estudos, artigos e seminários. Em tempos de discussão sobre o lugar e o papel da mulher na sociedade, chama a atenção a história de vida de centenas de mulheres que vivem em comunidades de alta vulnerabilidade social. Como, por exemplo, aquelas que moram nas periferias de São Paulo e que pudemos conhecer porque são participantes do Programa Ação Família, desenvolvido pela Prefeitura de São Paulo e pela Fundação Tide Setubal, com o objetivo de fortalecer a cidadania dessas populações.
Moradoras das periferias se engajam há tempos em diferentes movimentos sociais ou, mais recentemente, em coletivos diversos, o que é algo a ser celebrado. No entanto, a maioria delas ainda vive hoje em um universo precário e restrito aos afazeres domésticos e de sobrevivência diária. Nesse cenário, várias mulheres desempenham o papel de chefe da família, responsáveis pela organização familiar e, muitas vezes, pelo sustento dos filhos, apesar de ainda serem desvalorizadas e oprimidas pelo poder dos homens.
A mulher submetida ao marido ou companheiro abre mão de sua condição de sujeito a partir do momento em que lhe é negada outra maneira de inserção no mundo além da esfera doméstica. Essa falta de opção e a proibição de que voltem a estudar ou mesmo que possam trabalhar são, ainda, bastante presentes nos relatos de mulheres que vivem em condições de alta vulnerabilidade. São cidadãs que acabam sendo confrontadas com a falta de referências de identidade, gerando solidão e sensação de desamparo insustentáveis.
Ao analisarmos as relações de gênero nas comunidades inseridas no Programa Ação Família, deparamos com depoimentos que têm a marca do sofrimento feminino. As entrevistadas relatam lutas cotidianas permeadas pela violência de maridos, pela busca diária de sustento e pelo medo que as cerca quanto à possibilidade de os filhos entrarem para o tráfico de drogas ou serem mortos.
Em suas histórias de vida, destacam a rigidez das escolas que frequentaram: os castigos, as palmatórias e as inúmeras lições refeitas por não estarem corretas. Contam do esforço de ler sob luz de lamparina para fazer a lição de casa ou da escrita com carvão, única ferramenta de escrita disponível. Muitas delas, filhas de pais analfabetos que as tiravam da escola para trabalhar desde muito cedo, tiveram a infância invadida pelo trabalho na roça ou em casa.
Para essas cidadãs, narrar sobre a vida é falar do sofrimento que invade todo o ser
Em oficinas realizadas pelo programa em comunidades da Brasilândia e do Rio Pequeno, na cidade de São Paulo, com base nos temas “Vida em Família” e “Vida em Comunidade”, os participantes escreveram sobre suas histórias de vida. A quase totalidade dos 20 relatos, que compõem o livro “Quem Somos – Fatos e Relatos”, descreve o sofrimento vivido pelas mulheres. Sofrimento este causado por gravidez precoce, alcoolismo ou traições do marido, violência doméstica, fome, precariedade do trabalho ou falta deste.
Para essas cidadãs, narrar sobre a vida é falar do sofrimento que invade todo o ser, revelando a incapacidade de realizar um deslocamento da percepção e das emoções para uma potência de futuro. Ou seja, é um sofrimento que empobrece, afunila o campo das experiências e percepções, bloqueando a imaginação e a reflexão, o que as torna impotentes para a liberdade e a felicidade.
Somado a esse sofrimento, há pouca, muitas vezes nenhuma, oportunidade para conversar sobre os problemas pessoais, obter novas informações e conhecimentos. As referências socializadoras são extremamente limitadas e a autoestima é baixa, o que acarreta a dificuldade de se ver numa posição mais protagonista ou propositiva. As mulheres dizem coisas como: “Eu quase não saio, não. Fico mais em casa. Meu marido sai, se diverte pelos cantos, mas eu não”, ou “Não tenho amigas pra ficar assim conversando, contando as coisas que aconteceu”, ou ainda “As mágoas que a gente tem. Fica tudo guardado com a pessoa. Eu queria trabalhar, eu acho ruim ficar assim só dentro de casa”.
Papel de cuidadora
O resultado de um encontro chamado de “Mundo do Trabalho”, no Jardim São Vicente, em São Miguel Paulista, traz uma oportunidade de ampliação de seus mundos. Quando perguntadas sobre o que sabem fazer bem, a maioria das mulheres destacou o “cuidar da casa”: lavar e passar roupas, limpar, faxinar, organizar a casa, cozinhar doces e bolos. Em seguida, as respostas se concentraram em cuidar de filhos e idosos. Houve quatro respostas (em 30) referentes a costurar, bordar, pintar, artesanato, crochê; três respostas sobre reciclagem; e três sobre ajudar o próximo com necessidade.
Destacaram-se, ainda, conversar, dançar, se arrumar e estudar, talvez respondidas pelas mais jovens, pois a idade variava dos 20 anos à terceira idade. As demais foram respostas individuais que revelaram algum tipo de habilidade/atividade: confecção de bijuterias, dirigir, balconista, enfermagem, horta, produção de sabão caseiro, lidar com público, organizar bazar da igreja. Em outros distritos de São Miguel, no Jardim Lapenna e Jardim Pantanal, os resultados foram semelhantes.
Poucas são as mulheres que manifestam ter sonhos próprios. Em geral, eles estão relacionados aos filhos. Marcadas pela solidão, principalmente devido à submissão ao homem, e por carências afetiva, material e cultural, essas mulheres têm a vida focada nos filhos e na manutenção da casa. A sua potência se expressa na capacidade de ir atrás de informações, de estabelecer relação com instituições locais, como a escola pública, para encontrar caminhos e soluções para o dia a dia concreto de suas vidas.
Uma mulher fala sobre ter casa própria: “Meu sonho é ter minha casa, as crianças terem seus quartos, arrumadinhos, sossegados. Eu não penso em mais nada, só na minha casa, ter um conforto […] peço a Deus que, antes de morrer, eu realize o meu sonho.” Outra relata a felicidade de reunir a família: “Na semana passada, eu estava com meus filhos todos juntos, não faltou nenhum […] A casa estava cheia, a gente fica cansada, mas é bom. […] Em paz, graças a Deus, minha família toda em paz.”
Criar políticas mais customizadas pode ter bons impactos articulados com a educação
Já nas conversas com os jovens dessas famílias, o sentido do sofrimento da mãe é um sentimento ambíguo: geralmente, a mãe é alvo de amor, gratidão e compaixão; e o pai é acusado pela sua ausência ou por provocar raiva e vergonha pela falta de provimento do lar ou alcoolismo.
As meninas demonstram, desde cedo, uma marca de mulher responsável: obrigação em ajudar a mãe nos serviços domésticos, cuidar dos irmãos menores, “ir bem na escola”. Há também uma expectativa das mães de que as filhas sejam boas alunas, bonitas, inteligentes, saibam cuidar da casa e dos irmãos, aproveitem todas as oportunidades e sejam obedientes. Elas, por sua vez, sentem-se identificadas com o sofrimento e o esforço de suas mães.
O trabalho com grupos de jovens também revela muita emoção. Alguns chegam a chorar ao relatar a batalha de sua mãe para o sustento do lar, a vida com os filhos, a solidão, o desamparo e o sofrimento. Uma situação que gera nesses jovens uma vontade grande de poder ajudar e salvar a vida da mãe, orientá-la para melhores escolhas, dar todo amor e carinho de que precisa.
Como expus inicialmente, em tempos de discussão sobre o papel da mulher na sociedade, a voz e a condição das mulheres moradoras de áreas de alta vulnerabilidade social têm de ser levadas em conta nas diferentes reivindicações femininas e para o desenho de políticas públicas mais eficazes, sejam elas de infraestrutura, saúde, educação, emprego, cultura ou outra área.
Pesquisadores como Annette Lareau ou Eduardo Marques têm demonstrado a importância fundamental da ampliação do universo cultural e das conexões de redes sociais das populações vulneráveis como fatores determinantes da educação de seus filhos. Assim, criar políticas mais customizadas, a partir da escuta a essas famílias, pode ter bons impactos articulados com a educação, de forma a se gerar melhoria na qualidade de vida e no bem-estar, assim como mais oportunidades para suas crianças e jovens.
Artigo originalmente publicado no NEXO (22/04/2017).