O que profissionais participantes do Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades têm a dizer sobre a iniciativa?
Confira entrevista com os três primeiros colocados no II Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades.
Desde 2022, o primeiro ano do Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades, o seu foco esteve em premiar trabalhos e pesquisas que abordem o tema das Finanças Públicas para além da perspectiva da sustentabilidade fiscal. Nesse sentido, tais projetos devem também colaborar com o desenvolvimento social do país. Idem o combate às desigualdades de raça, gênero e renda e à garantia de direitos para a população brasileira.
A iniciativa, que conta com promoção de Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor), Fundação Tide Setubal, Associação Brasileira de Pesquisadores e Pesquisadoras Negros e Negras (ABPN) e Rede de Economistas Pretas e Pretos (REPP), busca identificar, sistematizar e divulgar formas inovadoras de pensar e fazer o orçamento público. Assim sendo, o objetivo é inspirar pesquisadoras, pesquisadores e profissionais em gestão pública em seus trabalhos. As inscrições estarão abertas até 14 de abril no site do prêmio.
Para compreendermos a incidência do Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades, entrevistamos as pessoas cujos artigos foram os três primeiros colocados na segunda edição, de 2023. Cada uma delas falou, então, sobre aspectos gerais referentes aos seus trabalhos. Os diálogos passaram também pelo papel da iniciativa no incentivo à pesquisa sobre a relação entre orçamento e garantia de direitos. Confira os diálogos a seguir.
“Este fenômeno é relevante e deve subsidiar a definição de novas políticas públicas”
O artigo que levou o primeiro lugar no II Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direito e Combate às Desigualdades foi Desmatamento na Amazônia Legal, despesa municipal com gestão ambiental e eleição municipal: uma abordagem com dados em painel espacial. O seu ponto central consiste em “analisar a relação entre as nuances do processo eleitoral municipal, as despesas municipais com gestão ambiental e o desmatamento da Amazônia legal, sob uma perspectiva espacial”.
O autor é Augusto Baade Accarino Yunes Rocha. Augusto é mestre em Ciências Contábeis na Fundação Capixaba de Pesquisa (Fucape) e pós-graduado em Gestão Pública (ênfase em Orçamento Público). É contador do quadro permanente de servidores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Leia a seguir o diálogo com ele.
O seu artigo mostra que, em anos de de eleições municipais, há 10% a mais de desmatamento em comparação com anos sem eleições municipais. Quais mecanismos são necessários para mitigar ou bloquear este fenômeno, seja em termos de governança ou de aplicação orçamentária?
Esse fenômeno, que identificamos nesta região da Amazônia Legal a partir das análises, demanda atuação mais efetiva de órgãos de controle e fiscalização. Isso principalmente no período eleitoral, quando há propensão de candidatos em busca da reeleição em lançar mão de ferramentas e mecanismos por muitas vezes ilegais para tentarem perpetuar-se no poder.
Precisa-se da atuação conjunta de todo o aparato que envolve a proteção ambiental, desde os órgãos de proteção como Ibama, Instituto Chico Mendes, o próprio Ministério Público. Esse período é mais propício a esse tipo de atividade pelo fato de haver aumento no nível de desmatamento em determinados municípios, principalmente quando o candidato concorre à reeleição.
Por muitas vezes, esse fenômeno pode estar associado à flexibilização na fiscalização. De certa forma, a atividade extrativista em alguns municípios, principalmente os de menor porte, tem impacto sob o ponto de vista econômico do município. Em uma cidade com pouco emprego ou renda muito baixa, as pessoas vão para atividades ilegais ou sem amparo mínimo de sustentabilidade. Esse fenômeno é relevante e deve servir como subsídio para a definição de novas políticas públicas, principalmente para fins de fiscalização e controle.
Augusto Baade Accarino Yunes Rocha fala sobre o fenômeno spillover, que consiste no “espalhamento” da derrubada de áreas da Amazônia Legal dentro de um município para outro. Idem sobre mecanismos para combater essa lógica
Para você, o Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades pode funcionar como um vetor para o debate sobre a defesa do meio ambiente e a relação com foco ou omissão em âmbito orçamentário?
A iniciativa do prêmio é fantástica, para usar a palavra mais específica. De forma geral, a pesquisa tem sido muito negligenciada. Iniciativas como essa são importantes como elementos indutores para pesquisadoras e pesquisadores. Isso porque elas e eles, por muitas vezes, precisam conciliar trabalho e uma série de atividades junto à pesquisa. Pesquisa não é uma atividade fácil ou algo que pode se pode fazer de manhã e terminar à noite: demanda muito trabalho e esforço muito grande. Por muitas vezes, não se tem bons resultados e perde-se tempo, pois a pesquisa não trará, necessariamente, o resultado esperado.
Prêmios como este servem como elementos indutores não só para a área de meio ambiente, mas para outros segmentos muito relevantes, como as questões da relação de trabalho e da inclusão de pessoas com deficiência. Existem N possibilidades de pesquisas envolvendo áreas mais sensíveis que, por muitas vezes, são negligenciadas ou colocadas em segundo plano pelas políticas públicas. Nesse sentido, essas pesquisas podem trazer elementos relevantes para fins de políticas públicas.
Em relação ao meio ambiente, é uma temática muito relevante. Dificilmente abre-se um jornal e não há uma notícia relacionada ao meio ambiente. Toda pesquisa e todo esforço necessário, empreendido para conseguir entender melhor as dinâmicas ou identificar soluções para problemas, é muito bem-vindo.
“A maior parte da academia ainda resiste a discutir gênero e raça na tributação”
O artigo Tributação, patriarcado e divisão sexual do trabalho, de Luiza Machado de Oliveira Menezes, obteve a segunda colocação no II Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades. O objetivo do manuscrito consistiu em “investigar se a tributação sobre produtos ligados à fisiologia feminina e produtos relativos ao trabalho de cuidado constitui uma discriminação implícita de gênero do sistema tributário nacional.”
Luiza é mestra em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), advogada, consultora jurídica e integrante do Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da FGV Direito SP. É também autora do livro Tributações e desigualdades de gênero e raça: como o sistema tributário discrimina as mulheres na tributação sobre os produtos ligados ao cuidado e à fisiologia feminina. Confira a seguir o seu relato sobre o prêmio.
Ao ler o seu artigo, um ponto emblemático diz respeito a como vieses dentro de uma suposta neutralidade na área tributária impactam, principalmente, mães solos e mulheres negras que lideram famílias monoparentais. Você considera correto pensar na progressividade da tributação como um mecanismo que combate as desigualdades?
Minha pesquisa trouxe o recorte de tributação e gênero. O artigo é fruto da minha dissertação de mestrado, na qual aprofundo interseccionalmente com gênero e raça, trazendo dados sobre as horas de trabalho de cuidado. Idem os gastos provenientes. O trabalho de cuidado gera não só horas que as mulheres gastam realizando essas tarefas, mas também gastos.
São gastos diferentes que as mulheres têm em comparação com os homens. Quando analisamos mulheres negras comparadas a homens brancos, essa distância aumenta. Esses gastos são muito mais voltados às mulheres negras, ao trabalho de cuidado e à subsistência da família, como alimentação, medicamentos e higiene. Enquanto isso, os homens, especialmente homens brancos, gastam mais com aquisição de bens, como carros, investimentos, casa e gasolina.
Essa diferença no padrão de consumo, assim como a existência de um sistema tributário que onera mais o consumo e menos a renda e patrimônio, mostra um sistema prejudicial às mulheres, especialmente negras, em detrimento de homens brancos. A regressividade é o primeiro elemento que carrega viés de gênero e raça quando observamos o nosso sistema tributário.
Luiza Machado de Oliveira Menezes fala sobre discrepâncias burocráticas entre produtos com finalidades diversas. O vídeo mostra também como esses pontos impactam e sobretaxam mulheres em comparação com homens
Como o Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades pode funcionar como um veículo para o debate sobre vieses, dentro da chave sobre tributação e gênero, e mostrar como orçamento e área tributária podem ser estratégicas no enfrentamento de desigualdades?
A maior parte da academia brasileira ainda tem resistência muito grande a discutir a questão de gênero e raça na perspectiva da tributação. Trata-se de uma luta ainda mais antiga sobre o orçamento e considero que existe mais bibliografia sobre o tema. Ainda estamos caminhando na parte da tributação – é muito incipiente. O prêmio em si é fundamental para trazermos o debate do orçamento público aliado ao combate às desigualdades. Isso é uma premissa fundamental que a nossa Constituição nos traz. Considero que o prêmio tem poder de trazer visibilidade a essas pesquisas que têm feito esses enfrentamentos fundamentais.
Quando comecei a pesquisar, no mestrado, só havia duas dissertações sobre o tema de tributação e gênero – nenhuma sobre tributação e raça. Há, alguns anos depois,há diversos trabalhos acadêmicos de graduação, mestrado e doutorado sobre tributação, gênero e raça. Considero o prêmio um acelerador também desse processo, no sentido de que a minha pesquisa enfrentou até mesmo reticência da academia tributária. Idem como outras mulheres, que pesquisam esse tema, também enfrentaram muitas dificuldades para pesquisar os temas de tributação, gênero e raça. Ter o reconhecimento do prêmio é maravilhoso, pois significa que essa pesquisa é importante para o desenvolvimento do país e para cumprirmos os preceitos constitucionais.
“A relação institucional, em conjunto com ciência e sociedade civil, é muito importante para haver avanços”
O artigo Atendimento Equânime de Povos Indígenas pela Assistência Social a Partir da LOA da União de 2023, terceiro colocado no prêmio, chama a atenção para um ponto subdimensionado na gestão pública: verificar “a previsão de gastos destinada à função Assistência Social na Lei Orçamentária Anual da União de 2023 nos projetos/atividades e ações que podem promover a equidade no atendimento dos povos indígenas”.
O manuscrito foi coescrito por Darlam Nascimento, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Roberta Cardoso Piedras, doutoranda no mesmo programa. Confira a seguir o diálogo com Darlam Nascimento.
Um dos recortes deste artigo é a previsão de gastos destinada à assistência social na Lei Orçamentária Anual. É correto pensar no trabalho conjunto entre ministérios para o desenvolvimento de ações conjuntas, com foco em potencializar os efeitos da assistência social e melhorar a qualidade do gasto público nesse segmento, em especial no que diz respeito aos povos indígenas?
Com certeza. Propusemos em nosso artigo, pelo menos no nível de desenvolvimento de banco de dados e de ações conjuntas, um aporte para esse tipo de finalidade. Isso não somente para povos indígenas, mas também para outros segmentos vulneráveis na sociedade. Há também o Ministério dos Povos Indígenas; logo, é necessário haver tal coordenação entre os ministérios.
Ainda, considero como crucial o ponto sobre a relação orçamentária, pois faz parte de um tripé – uma política pública precisa de recursos públicos para acontecer. Tais recursos não surgem do nada: eles consistem em tributação, em formas arrecadatórias do Estado. Quando esse recurso está em mãos, passa-se também pela questão da transparência. São vários gargalos que podem ser abordados – é importante fazê-lo para haver políticas mais eficientes. Do ponto de vista da transparência, é muito difícil encontrar os dados – eles não são fáceis de encontrar. Aparentam estar disponíveis para qualquer pessoa encontrá-los, mas não é o caso. Quando você os acha, nem todas as pessoas entenderão o que está escrito ali. Afinal, trata-se de linguagem que não é feita para todas as pessoas.
Passando da questão da transparência para a aplicabilidade, os recursos são escassos: 40% dos recursos totais do orçamento de 2023 foram para a dívida pública. O que sobra para as políticas sociais? Do ponto de vista arrecadatório, tributa-se mais consumo do que patrimônio e renda – trata-se de tributação regressiva. Nós e Estônia somos os únicos países que não tributam lucros e dividendos. Essas questões devem estar tanto para o debate técnico e administrativo, quanto para o debate político. Isso deve ser debatido nas suas devidas instituições e instâncias, mas é necessário colocá-las.
Darlam Nascimento fala sobre sobre embates institucionais para órgãos de assistência social desenvolverem projetos voltados à finalidade da área, em especial no que diz respeito a ações voltadas aos povos originários
Como iniciativas como o prêmio podem funcionar como um vetor para qualificar o debate sobre a criação de projetos efetivos em âmbito orçamentário de assistência social para populações indígenas?
O prêmio teve, pelo menos na minha percepção, um aspecto de luz para questões importantes – não somente para a população indígena. Houve vários trabalhos premiados com temas muito interessantes e importantes para ressaltá-las. O prêmio consegue articular problemas e soluções para esses problemas. Idem reconhecer trabalhos que podem trazer soluções para problemas sociais que vêm ao longo do tempo. Isso nos encoraja a continuar trabalhando e levar isso adiante. Ele traz também visibilidade para essas questões – idem para que entrem no âmbito institucional.
Quando fomos ao prêmio, havia pessoas da Enap e da coordenação dos auditores fiscais. Estiveram lá também a secretária da inovação, a vice-ministra e secretários. A relação institucional em conjunto com ciência, militância e sociedade civil organizada é muito importante para haver avanços nessas pautas, que são emergentes e muito importantes.
Saiba mais
+ Qual é a relação entre equidade de gênero e tributação sobre produtos?
+ Quais ações relacionadas ao orçamento público podem frear o desmatamento na Amazônia Legal?
Entrevista: Amauri Eugênio Jr. / Fotos: Arquivo pessoal