“Assumo para mim como uma das missões promover a diversidade nessa casa”: o simbolismo da posse de Ana Maria Gonçalves na ABL
A escritora Ana Maria Gonçalves tomou posse da cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras; entenda o simbolismo do evento
Ana Maria Gonçalves tomou posse da cadeira número 33 da Academia Brasileira de Letras e, dentro da perspectiva da ABL, tornou-se imortal. Contudo, a escritora já era imortal antes mesmo de assumir a vaga deixada pelo linguista Evanildo Bechara.
Ao mesmo tempo em que entra para a história ao se tornar a primeira escritora negra a ingressar na ABL em 128 anos de existência da instituição, a escritora e conselheira da Plataforma Ancestralidades, iniciativa de Fundação Tide Setubal e Itaú Cultural para valorizar os saberes afro-brasileiros, traz consigo um pouco de cada pessoa que teve recusada a sua ascensão a espaços de poder e de decisão.
Ana Maria Gonçalves leva para a ABL o ‘pretuguês’ de Lélia Gonzalez. E, desse modo, mostra que o português não seria o mesmo sem a influência da população afro-brasileira. Além disso, o clássico Um Defeito de Cor, obra-prima que virou exposição e samba-enredo, entra de vez para o panteão de livros imortais. Mas não precisava de chancela da ABL, é bom destacar.
Fala de Ana Maria Gonçalves sobre ancestralidade durante o lançamento da tradução do livro Estudos Africanos de Gênero, de Oyèronké Oyèwúmi, em julho de 2025
Passado, presente, futuro e reparação
Mais do que representar um grande movimento de resistência contra o apagamento histórico e sistemático de figuras dissidentes, Ana Maria Gonçalves, mostrou, durante o seu discurso, a raiz de tais movimentos.
“No passado da Academia Brasileira de Letras houve um processo deliberado de exclusão de mulheres. Havia também uma estrutura que, sendo baseada também nas relações sociais de membros extraoficialmente, também exclui as minorias já excluídas pela sociedade. [Isso acontece] por falta de contato e de conhecimento nas relações”, declarou, ao destacar a urgência de se combater essa perspectiva.
Assim sendo, a história da ABL foi marcada pela exclusão. A começar pela trajetória de Júlia Lopes de Almeida. Apesar de ter sido uma das autoras mais publicadas da Primeira República (1889-1930), seu nome não consta do quadro de pessoas fundadoras da organização.
A posse de Ana Maria Gonçalves para ocupar a cadeira 33 é uma espécie de reparação histórica simbólica a autoras como Maria Firmina dos Reis. Ao lançar a obra Úrsula, em 1859, a autora tornou-se a primeira autora negra do país.
A mesma lógica vale, de alguma maneira, para Conceição Evaristo, cuja candidatura foi declinada em 2018. Ao apontar esse fato – e mostrar que a escrevivência tem voz, letra e vez na ABL -, a autora destacou, em seu discurso, que o pleito de Conceição Evaristo fez a instituição “olhar para si”, comentou. “E, diante da sociedade, finalmente perceber quão homogênea era e o quanto falhava em representar, dentro de seus quadros, todas as línguas faladas pelo nosso povo.”
Desse modo, ao mostrar as contradições e problemas estruturais do passado – cujos ecos ainda teimam em surgir -, a autora mostra que o futuro é plural. Além disso, o futuro é também colorido, democrático e ancestral.
O legado de cor, gênero e democrático de Ana Maria Gonçalves
A Ana Maria Gonçalves na Academia Brasileira de Letras é um marco do nosso tempo. É, desse modo, um sinal de que a organização precisa acertar as contas com o passado e reconhecer que o ser intelectual tem mais de um gênero e de uma etnia, e que não tem barreiras geográficas, tampouco regionais.
Assim sendo, a autora reforçou, durante a sua posse, que uma de suas missões é “promover a diversidade nessa casa [ABL].” Isso vale também para “fazer avançar as coisas nas quais, nela, eu sempre critiquei, como a falta de diversidade na composição de seus membros, uma abertura maior para o público. É o verdadeiro dono da língua que aqui cultivamos e o maior empenho na divulgação e na promoção da literatura brasileira.”
Finalmente, a pauta racial é indissociável do modo como Ana Maria Gonçalves é e está no mundo e na Academia Brasileira de Letras. Ao parafrasear a psicanalista Neusa Santos Souza (1951-2008), a escritora ressaltou, em seu discurso de posse, que “saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas.” E, com isso é, “sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades”.
Pois bem, esses termos e as suas essências já fazem parte do cotidiano da ABL, da história e da produção intelectual do Brasil. É um símbolo do resgate da identidade de Machado de Assis, um dos fundadores da organização, cuja negritude foi sistematicamente eclipsada. Mas não eternamente apagada. A chegada de Ana Maria Gonçalves à instituição é uma abertura de portas para novas gerações de escritoras negras cujas letras será impossível apagar.
Texto: Amauri Eugênio Jr.
