Diálogo e envolvimento são estratégias para desenvolver espaços públicos nas cidades
Pesquisadores e especialistas debateram em mesa redonda os desafios na "Apropriação do espaço público e do direito à cidade"
Pertencemos realmente à cidade que vivemos? As pessoas estão verdadeiramente integradas aos espaços públicos e dialogam com eles? Qual é a cidade que queremos para nós? Estas foram algumas das principais reflexões trazidas pelos participantes da mesa de debate “Apropriação do espaço público e do direito à cidade”, durante o Seminário Internacional Cidades e Territórios: encontros e fronteiras na busca da equidade.
Defensor do que chama de “mobilidade plena”, o fundador do Observatório de Favelas (OF) na Maré (RJ), Jailson de Souza e Silva, acredita que de nada adianta ter uma mobilidade que garanta a circulação e presença das pessoas em várias partes da cidade, se elas não se sentem pertencentes a esses lugares. “As pessoas têm que sentir que os espaços da cidade pertencem a elas e elas pertencem à cidade. Não é só uma questão de se movimentar, de circular, mas de pertencimento”.
Doutor em Sociologia e Educação, e criado na comunidade da Maré, Jailson também destacou que as periferias das cidades ainda não são contempladas suficientemente com ações que façam com que seus moradores se apoderem dos espaços públicos e sintam-se orgulhosos dos potenciais das comunidades onde vivem. As cidades não pensam os espaços públicos no contexto da periferia, o que faz com que os moradores dessas áreas não se sintam inseridos.
Para Jailson, o Estado colabora para que esse distanciamento seja cada vez mais aprofundado, quando escolhe investir recursos em áreas predominantemente de classe média em detrimento da periferia. “A cidade não dialoga com a periferia. O jornalista Zuenir Ventura tem um conceito sobre cidade partida, que eu não concordo. O que temos é um Estado partido, quando este abandona a periferia e não investe em equipamentos públicos de qualidade nessas áreas, para investir em áreas mais nobres. Por exemplo, a comunidade da Maré, que tem mais de 140 mil habitantes, não tem uma agência bancária. Temos um grande desafio de romper com essa lógica de Estado partido. E o diálogo e a empatia são fundamentais para isso”, disse.
Para além da atuação do Estado, Jailson acredita que o direito à cidade é muitas vezes negado aos moradores da periferia por conta de uma visão limitada sobre o potencial desses cidadãos e da cultura existente nessas áreas. “Precisamos produzir novos discursos sobre a periferia na sociedade. Indicadores de pesquisas em favelas, por exemplo, fazem comparações que só mostram o lado negativo. Buscam-se índices de vulnerabilidade na periferia, mas em bairros mais nobres, onde a vulnerabilidade social também existe, isso não é medido. Há um paradigma de que a periferia só tem carência. A favela é marcada por isso. Por exemplo, cursos profissionalizantes nas favelas são sempre aqueles ligados aos trabalhos manuais – curso de padeiro, ferramenteiro etc. Não que eles não sejam importantes, mas tudo é condicionado. São cursos que não são oferecidos em bairros da classe média, por exemplo. É um problema de referência sobre o que a periferia tem a oferecer e também de políticas públicas”, explicou.
Pensar as cidades a partir do contexto da periferia e suas regiões mais populosas é uma estratégia promissora para o envolvimento das pessoas com a cidade. Prova disso é Medellín, na Colômbia. Com 125 municípios e 3,5 milhões de habitantes na sua área metropolitana, após um crescimento urbano não planejado, com um histórico marcado pela violência e o narcotráfico nos anos 80 e 90, a cidade é considerada hoje uma das mais inovadoras do mundo e referência em desenvolvimento urbano sustentável.
Isso só foi possível a partir da parceria entre empresas, governo e sociedade que, juntos, passaram a planejar a cidade a partir dos anseios, necessidades e soluções de problemas para os moradores de bairros mais pobres e isolados. Para isso, a cidade investiu em uma arquitetura urbana integrada, criando espaços de convivência e oportunidades de mobilidade eficazes aos seus moradores.
Para Pablo Maturana, subdiretor da área de Projeção da Cidade da Agência Metropolitana de Cooperação de Medellín, a participação popular é o princípio da equidade de direitos ao acesso à cidade. “Acreditamos nos territórios integrados para desenvolvimento da cidade com equidade e com qualidade. Apostamos na arquitetura orientada pela integração e tudo com a participação das pessoas. Sem elas, essas transformações não poderiam acontecer. Isso faz com que elas se sintam pertencentes à cidade”, afirmou.
No evento, Pablo apresentou algumas das grandes transformações da cidade, desde 2004, a começar por um forte investimento em transportes. Até então, os moradores da periferia levavam mais de três horas para chegarem ao centro, por conta da distância e das dificuldades de acesso aos veículos de transporte rápidos, justamente pela geografia da cidade.
Assim, a principal solução foi a instalação do chamado Metrocable, o primeiro teleférico de transporte em massa da América Latina, que atende mais de 550 mil pessoas diariamente. Apoiado por escadas rolantes para acesso aos teleféricos, ele faz parte do Sistema Integrado de Transporte do Vale de Aburrá, que conta também com o metrô, a tranvia (veículo sobre trilhos) e o EnCicla, um sistema de bicicletas públicas. A transformação da cidade também passou pela criação de espaços de ensino para crianças e jovens, a criação de corredores ambientais e a revitalização do principal rio da cidade, para que a circulação das pessoas possa se dar também por suas margens.
Quando a cidade é a solução para o indivíduo
A palavra “diálogo” foi uma constante ao longo da mesa de debate e fez parte também da apresentação do cofundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo (USP), Christian Dunker. O psicanalista defende que a cidade é um antídoto para males que afligem a sociedade, justamente por proporcionar o diálogo e enriquecer a identidade dos indivíduos.
Para ele, os moradores negam seus direitos à cidade quando se isolam em círculos e espaços criados por eles mesmos, distanciando-se da realidade dos espaços públicos. “Os condomínios (de casas e apartamentos) são um importante exemplo disso. O muro que divide os condomínios e afasta os indivíduos da cidade é simbólico e nocivo porque quando erguemos o muro, estamos evitando o outro, sendo que o essencial na cidade é a experiência da cultura. Se o diálogo não existe, a palavra deixa de circular e as pessoas deixam de circular na cidade. Para estar no princípio de cidade você não pode estar envolvido pelo contexto do condominio”, afirmou.
O distanciamento das pessoas e a falta de diálogo provocam sofrimento, de acordo com Christian. Ao evitar o diálogo, buscando estar apenas em espaços controlados e com pessoas com pensamentos e vivências semelhantes, evita-se o que ele chama de “indeterminação”, fator importante para a condição humana.
“Do ponto de vista psíquico, uma certa indeterminação (dialogar com pessoas que você não conhece, por exemplo) é fundamental e também é fonte para criação, cidadania, ligação com o outro, coisas que você só encontra no contexto da cidade, que é um dos dispositivos mais antigos e que funciona como um antídoto para o sofrimento”, disse, chamando a atenção para a necessidade de criação de políticas públicas que favoreçam a circulação para que os cidadãos possam se encontrar em “estado de cidade”.
Repercussão
O interesse pelo tema foi grande pelo público presente no seminário. Representantes da sociedade civil, de instituições e fundações empresariais, além de estudantes da área encheram o auditório, buscando ouvir referências para sua atuação no contexto das cidades. É o caso de Dayane Alves da Silva, assistente social do Instituto Barrichello. “A abordagem foi muito interessante e me estimulou a pensar na minha atuação. Vejo muito acontecer a mobilidade física dos jovens na cidade, mas não a mobilidade plena, como apontada pelo Jailson, do Observatório de Favelas. No centro, região onde atuamos, vemos que as pessoas se encontram, mas não há o pertencimento, a sensação de atuar transformando a cidade. Esse é um dos objetivos do nosso trabalho, que é ocupar o centro com atividades esportivas, começando pelas crianças e jovens”, explicou.
Nayana Brettas, fundadora da ONG Criacidades, complementou a ideia: “A apropriação das cidades pelas pessoas passa por um trabalho de envolvimento, educação e informação. De estímulo ao que as pessoas têm de melhor para oferecer ao ambiente público”, disse a socióloga, que desevolve o projeto Criança Fala, no bairro do Glicério, Centro de São Paulo. “Temos que despertar nas pessoas o encantamento pelos locais da cidade que estão muitas vezes degradados, descobrir com elas a beleza e o encantamento, em um processo de envolvimento e participação. Onde se enxerga escassez, há uma cultura pulsando. Ali temos artistas, poetas, e vários talentos. Desenvolvemos com as pessoas ações para acreditarem em seus potenciais. Colocando as pessoas como parte do processo de transformação dos espaços, conseguimos despertar o sentimento de pertencimento às cidades”, acredita.
Para o mestrando da Faculdade de Educação da Unicamp, Alexandro Machado, a discussão foi bastante relevante, especialmente para a tese que desenvolve sobre desigualdades educacionais nas cidades. “É perceptível a enorme diferença na educação por conta da renda e localização. Em geral, as regiões providas de mais recursos têm mais vantagens, os resultados no ensino são melhores, diferente da periferia, onde o investimento na educação é geralmente menor pelo Estado”.