“Dez anos da Fundação Tide Setubal são motivo de muita alegria e orgulho pelas realizações alcançadas”, afirma Maria Alice Setubal
Confira entrevista exclusiva com a presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal e uma das criadoras da fundação sobre as conquistas e aprendizados deste período
Há dez anos, a Fundação Tide Setubal – uma fundação familiar – vem se dedicando a promover o desenvolvimento local sustentável de São Miguel Paulista, bairro da Zona Leste da cidade de São Paulo. Neste período, foi possível celebrar muitas conquistas junto ao território e também superar desafios, vivenciados por todos aqueles que buscam a transformação de uma sociedade cada vez mais justa, igualitária e democrática.
“Ao reconstituir o que foi trilhado nesses dez anos, é gratificante ver o muito que já caminhamos, fazendo parte das transformações ocorridas no Brasil e especialmente em São Miguel Paulista, território no qual escolhemos trabalhar. Os avanços positivos da região reiteram que foi acertada a opção de se trabalhar com o desenvolvimento local sustentável, adotando um olhar sistêmico e intersetorial para pensar e realizar as ações”, comenta Maria Alice Setubal, presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal e uma das criadoras da fundação.
Para a educadora, ter uma missão consistente, um foco claro, valores definidos e um modo de atuação transparente contribuíram muito para direcionar e efetivar o “pensar e fazer com”, levando à construção de um vínculo muito forte de confiança com a comunidade – algo importantíssimo e que fomentou todo o trabalho realizado até agora no território.
Para resgatar essa história e compartilhar os vários aprendizados do percurso de dez anos, preparamos uma entrevista especial com Maria Alice, que destaca: “Este é também um momento de novas reflexões. Celebrar essa data significa respeitar os marcos do tempo e os ritos de passagem, realizando processos que nos caracterizaram desde a origem: diagnosticar, implementar, avaliar e refletir”.
Confira a entrevista completa:
Falando um pouco de história, o que motivou a criação da Fundação Tide Setubal?
Maria Alice:Criar a Fundação, com meus irmãos, foi a oportunidade de resignificar o trabalho voluntário de minha mãe, Tide Setubal, durante a gestão de meu pai na prefeitura de São Paulo nos anos 1970, e que pode ser sintetizado em trecho de discurso, feito por ela, na Escola Estadual Dom Pedro I, de São Miguel Paulista: “Vejo no trabalho integrado de todas as instituições e de todos os recursos de São Miguel a possibilidade de criar condições para um despertar de toda a população. É preciso despertar no indivíduo a consciência de que ele, como cidadão, é responsável pela comunidade.”
A Fundação tem a sua história calcada no território de São Miguel. Qual a riqueza em focar em apenas um território numa imensa cidade como São Paulo?
Maria Alice:A definição da missão da Fundação – que é a de contribuir para o desenvolvimento local e empoderamento da comunidade para alcancar a melhoria da qualidade de vida – já trouxe implicita essa visão sistêmica do território. E isso se refletiu, inclusive, no modo de atuação da Fundação desde a sua origem, optando por não ter um espaço próprio, mas sim espaços compartilhados tanto com o poder público como com a Associação de Moradores. Além disso, um diagnóstico inicial que fizemos em conjunto com o IBOPE, levantou dados oficiais daquela população, assim como os anseios, desejos, potenciais e desafios. Tudo isso mostrou que a nossa forma de atuar seria no território e não para dentro da própria Fundação. Desta forma, todos os projetos e programas têm sempre este olhar para o fortalecimento do território, das pessoas, das instituições e dos espaços públicos.
Ao permanecemos no território, isso nos possibilita uma proximidade física e de afeto. Em um território marcado por altas vulnerabilidades sociais, poder desenvolver programas e ações sustentáveis ao lado da comunidade é a possibilidade de uma população que vive em risco diário contar com a confiança de que estamos ao seu lado.
Quais são os demais eixos centrais que direcionam a atuação da Fundação em todo o trajeto percorrido até 2016?
Maria Alice:O primeiro é que nosso jeito de fazer, nossa metodologia tem a escuta como eixo central. Mas, ao contrário do que muitos podem pensar, não se trata de um democratismo, mas uma forma de chegar, respeitar e dialogar. Foi com essa postura que construímos um vínculo de confiança essencial para todas as nossas ações e parcerias. Em meio às reflexões que os dez anos me trazem, vejo como esse jeito vai ao encontro do desejo de autoria e de ter voz que as diferentes manifestações públicas desde 2013 têm demandado no Brasil. É uma construção conjunta de co-responsabilização e, portanto, de não submissão ao clientelismo, patrimonialismo ou controle empresarial.
O segundo ponto é que o território importa, como disse anteriormente. Essa tem sido nossa bandeira na discussão das políticas públicas. Para nós, os avanços nas áreas social, econômica, educacional ou cultural nos territórios se efetivarão com maior amplitude, com políticas implementadas de acordo com a história, os valores e as características sociais, políticas, econômicas e ambientais e de cada lugar.
Até agora, as políticas são pensadas de Brasília para todo o país. Isso faz com que, muitas vezes, elas não alcancem de fato a população, além de desperdiçarem recursos e não serem eficazes e nem sustentáveis. Por isso, acreditamos que é preciso políticas customizadas, ouvindo, fazendo junto com a comunidade, lideranças e profissionais locais. A valorização do patrimônio cultural material e imaterial de São Miguel fez parte de nossos objetivos estratégicos desde o início de nossas atividades e foi uma ponte importante no relacionamento com os moradores.
O terceiro aspecto é a integração das ações da Fundação Tide Setubal no espaço público. Nossa gestão dos espaços de atuação é feita de forma compartilhada, como comentei. Eventos como o Festival do Hip Hop, Encontro de Cultura Caipira e Festival do Livro e da Literatura ocupam diferentes lugares de São Miguel e contam com as parcerias de inúmeras organizações, tornando-se eventos públicos já tradicionais do bairro, em benefício de centenas de moradores de todas as idades.
As parcerias, então, foram fundamentais nesse processo?
Maria Alice:Sim. Não é possível realizar ações isoladas em um território que nos desafia com questões tão complexas. Com as parcerias, agregamos novas competências, alcançamos mais profissionalização, assim como a possibilidade de mais impacto e escala das nossas ações. É o nosso “fazer coletivo”.
Com as parcerias, inclusive, está o quarto aspecto da nossa atuação: participação e mobilização como forma de emancipação e autonomia. A participação tem para nós aspectos de construção conjunta mas também de aprendizagem, pois só se aprende a participar e a reivindicar políticas discutindo, ouvindo diferentes pontos de vista e acrescentando novas informações ao debate. Temos muito orgulho dos Fóruns do Jardim Lapenna, do Conselho da Comunidade do CDC e das Redes de proteção social e de combate à violência doméstica em que a Fundação exerce papel fundamental ao lado dos moradores. São com essas ações que praticamos o diálogo e o respeito às diferentes posições, tão importantes no momento em que afloram ódios e radicalismos no país.
A Fundação também desenvolve uma série de iniciativas com foco em conhecimento, formação e letramento. Por que essas questões se tornaram parte da forma de atuação da organização?
Maria Alice:Acreditamos que trata-se de uma forma de emancipação que pertence a cada indivíduo e que abre portas para novos caminhos, realizando possibilidades de liberdade de escolhas de cada um. Nesse contexto, colocam-se nossos diferentes programas com centenas de jovens e famílias e também nossas formações com dezenas de educadores e professores da Diretoria Regional de Ensino de São Miguel, auxiliando na implementação de políticas públicas. Como exemplo temos o projeto Futebol e Cidadania com jovens que jogam futebol no CDC Tide Setubal, clube que coadministramos ao lado dos moradores. No início, eles mal falavam, não circulavam pelo espaço do clube, nem sabiam os nomes dos colegas. Com um trabalho de práticas de letramento, pudemos fazer com que eles discutissem e escrevessem sobre temas de seu interesse, e pouco a pouco eles foram se ajudando na escrita, na expressão verbal, ganhando confiança e autoestima para, finalmente, terem no Clube da Comunidade um espaço do qual eles já se apropriaram e que agora têm como seu.
Diante de todas as práticas desenvolvidas pela Fundação, quais seriam os principais resultados alcançados junto ao território de São Miguel Paulista que podemos destacar?
Maria Alice:Foram várias as conquistas do bairro das quais participamos ativamente, como a construção de duas creches, uma Unidade Básica de Saúde, do acesso à estação de trem, dois pontos de leitura, dois telecentros, recolhimento rotineiro do lixo e, ainda, o restauro da Capela de São Miguel Arcanjo, datada do século XVI, e a reforma do tradicional mercado municipal, o Mercadão de São Miguel.
Mas não são somente os números que indicam a real dimensão dos trabalhos realizados. Os ganhos dessa década se revelam no fortalecimento das diferentes instituições de comunidade e também na transformação pessoal, experimentada por cada um em diferentes níveis e dimensões de suas vidas. Nossa crença é a de que “projetos podem transformar pessoas, pessoas transformam o mundo”.
De que forma a Fundação compartilha esses aprendizados?
Maria Alice:Nossa forma de democratizar toda essa experiência para ampliar o escopo e a escala de nossos programas se dá pela sistematização e disseminação do conhecimento gerado e das metodologias utilizadas. Temos publicado livros com registros e avaliações de nossas experiências. No segundo semestre deste ano, inclusive, lançaremos um livro com estudos realizados por consultores externos sobre os resultados alcançados nos dez anos da Fundação.
Como você avalia o papel e a responsabilidade do investimento social privado (ISP) frente aos vários desafios ainda enfrentados pelo país?
Maria Alice:Acredito que o investimento social privado tem papel fundamental no combate às desigualdades sociais num contexto de um desenvolvimento sustentável, por meio do diálogo entre diferentes posições, ações cidadãs e ao lado do poder público. As ideias de eficiência, meritocracia e resultados só adquirem sentido de fato, se nós tivermos clareza que o objetivo principal de nossa ação no campo social deve ser a equidade, ou seja, mais igualdade de oportunidades e mais justiça social.
Especialmente em um momento de crise aguda como a que hoje vivemos, é fundamental que os prejuízos não recaiam apenas sobre um setor, mas que todos os setores econômicos e os diferentes segmentos sociais contribuam para que novas saídas sejam alcançadas.
Assim, reforço minha posição de que, enquanto uma fundação familiar, temos muito o que devolver à sociedade para a construção de um país mais justo e sustentável.
A partir da experiência vivenciada no território neste período, quais são os planos de atuação da Fundação para os próximos anos?
Maria Alice:Queremos cada vez mais contribuir com uma postura ao mesmo tempo humilde e potente na execução de programas e projetos que possam ser aprofundados na direção de alcançarmos mais escala.
Apoiados em nossa experiência, queremos atuar vocalizando com propostas a importância de políticas públicas que tenham uma base no território, levando-se em conta suas diferentes dimensões: história, valores, anseios, características econômicas, sociais, culturais, ambientais e políticas de cada lugar. Para isso, ampliaremos uma interlocução compartilhada com diferentes envolvidos, tais como: a comunidade, outras organizações de investimento social privado, meios acadêmicos, organizações da sociedade civil, empresas, instituições religiosas e as esferas políticas em nível local e nacional.
Assim, continuamos em São Miguel, mas promovendo também a interação desse território com outras regiões da cidade. Queremos trazer também para o centro do debate público e político as questões da periferia e do enfrentamento das desigualdades sociais.
Como parte das comemorações dos dez anos, a Fundação promoveu o Seminário Internacional Cidades e Territórios: encontros e fronteiras na busca da equidade, em parceria coma Folha de São Paulo. Como você avalia o evento e as discussões e contribuições do seminário para o tema?
Maria Alice: O seminário ultrapassou muito a minha expectativa. Foi um grande impacto ver tudo o que foi preparado para aquele momento, como a exposição sobre os dez anos da Fundação. Eu me emocionei muito.
A preparação do seminário foi intensa. A equipe se debruçou durante bastante tempo em pensar nas temáticas das mesas e das conferências, que pudessem ter ressonância com os nossos valores e nossa prática. E acredito que isso se fez presente no dia do encontro.
O conteúdo debatido nas mesas e nas conferências foram muito importantes, pois os debatedores – nacionais e internacionais – trouxeram pontos fundamentais para nos fazer refletir e avançar. Nas diferentes falas, inclusive, foram enfatizados aspectos que mostram que a Fundação está atuando na direção certa, no sentido do ‘fazer junto’, da autoria, da corresponsabilidade, da aposta em políticas focalizadas no território, do reforço ao diálogo e da promoção da diversidade.
Acredito que foi um momento essencial para mostrar o movimento que está ocorrendo em São Miguel para o resto da cidade e as possibilidades de enfrentamento das desigualdades sociais. O seminário abriu as portas para vocalizar questões importantes e tornar mais visível as periferias.
Realmente fiquei extremamente feliz e satisfeita.