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A economia solidária é a cooperação entre pessoas trabalhadoras no lugar da competição – Entrevista com Marcelo Gomes Justo
Marcelo Gomes Justo, diretor executivo do Instituto Paul Singer e doutor em Geografia Humana pela USP, fala sobre conceitos de economia solidária.
Fomentar novas forças produtivas e instaurar novas relações de produção. Estas premissas norteiam o conceito de economia solidária, desenvolvido pelo economista e sociólogo Paul Singer (1932-2018). Essa corrente contempla, entre outros aspectos, a promoção de “um processo sustentável de crescimento econômico, que preserve a natureza e redistribua os frutos do crescimento a favor dos que se encontram marginalizados da produção social”.
Desse modo, a economia solidária tem como uma de suas razões de ser a apresentação de novos caminhos para a organização econômica da sociedade, assim como a maneira que ela intermedeia as relações sociais. E tais perspectivas tornam-se ainda mais pertinentes quando se consideram transformações intensas nas relações e na organização do trabalho, por exemplo.
As dimensões relacionadas à economia solidária nortearam a entrevista com o sociólogo Marcelo Gomes Justo, diretor executivo do Instituto Paul Singer e doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP).
Confira o diálogo a seguir.
Como é possível explicar, em termos concretos e em diálogo com o dia a dia, os conceitos relativos à economia solidária?
Marcelo Gomes Justo: A economia solidária é um conceito desenvolvido por Paul Singer na segunda metade dos anos 1990. Ele coloca que se trata de outro modo de produção, mas essa é uma linguagem um tanto acadêmica. Como podemos traduzir, pensando no diálogo com o cotidiano? Podemos identificar uma série de coisas que são chamadas de economia doméstica: o trabalho com o cuidado da casa e dos filhos, na maioria das vezes feito pelas mulheres – às vezes, inclusive, o cuidado dos mais velhos. Tudo isso, que faz parte do cotidiano do povo brasileiro, é um trabalho não remunerado, reconhecido e valorizado: é invisibilizado.
Essa é uma forma de economia também, a qual Singer chamou de economia doméstica. Há também uma dinâmica de trabalho que poderíamos chamar de economia popular. Mesmo também sendo feita por mulheres, alguns homens a executam como forma para se buscar por geração de renda, por meio de artesanato ou ter um salão de beleza em casa, por exemplo. O povo brasileiro conhece muito bem esse formato: o famoso se virar para conseguir alguma renda. Muitas vezes vemos homens e jovens fazendo isso nos sinais de trânsito, ao vender balas, por exemplo.
Quando essas iniciativas se juntam para fazer algo coletivo, forma-se uma associação, mesmo informal, para se discutir como a produção e a venda serão organizadas – e isso se torna economia solidária. A economia solidária já acontece nessas relações de vizinhança e de cuidado com a casa. Mas ela precisa se tornar uma forma de gerar renda coletivamente para as pessoas, de maneira consciente do que elas estão fazendo de organização coletiva para trabalho e renda.
Um ponto sobre cuidados domésticos abrange o debate recente sobre economia do cuidado. Como esse conceito se conecta com a economia solidária?
Marcelo Gomes Justo: Tenho visto, ao acompanhar movimentos sociais, em especial os de luta por moradia, que se fala de economia do cuidado. O paralelo que vejo com a economia solidária é: a economia do cuidado já ocorre nos lares brasileiros, principalmente nas periferias.
A economia solidária já é um exercício de solidariedade entre a família – e pode ser também com vizinhas e vizinhos. Para muitas mulheres poderem trabalhar, se forem mães, precisam ter alguém com quem deixar os filhos. A passagem para a economia solidária seria, mais uma vez, um movimento da consciência de organização coletiva para encontrar uma forma de remuneração para esse trabalho. O que chamo de fazer isso conscientemente, é no sentido de existir uma série de explorações que nos colocou nesta condição. Precisamos também lutar contra essa exploração econômica.
A economia solidária envolve a consciência de uma luta também da classe trabalhadora, a qual abrange também igualdade de gênero e combate ao racismo. Estamos em um momento de políticas públicas voltadas à abertura de espaço para conquistas de valorização da economia do cuidado. Entendo que há uma abertura no governo federal, com novas secretarias puxando essa agenda. É interessante pensar no próximo passo da economia do cuidado para outra que busca uma nova organização econômica e, assim, superar as condições de desigualdades extremas que o capitalismo promove.
Como a economia solidária pode ser uma aliada para mostrar para a população que o Estado pode ter papel estratégico para o desenvolvimento territorial e, por consequência, econômico?
Marcelo Gomes Justo: A primeira coisa que me vem à cabeça é sobre o modo como o Estado chega para o povo e nas periferias. A imagem do Estado na periferia é a de promotor da violência. Pode-se considerar os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que publica relatórios todo ano falando do extermínio da juventude preta, periférica e pobre. Ao mesmo tempo, sabemos que as periferias se organizam, pelo menos desde os anos 1970, via comunidades eclesiais de base, para cobrar do Estado tais direitos. Essas lutas também desembocam na economia solidária. Uma parte de movimentos por moradia e terra, assim como da população negra, incorpora também a pauta da economia solidária.
Agora, pensando em políticas públicas, vejo também um movimento em algumas cidades. No caso de São Paulo, na gestão em que Paul Singer foi secretário de planejamento no governo de Luiza Erundina (1989-1993), estava presente uma ação da qual ele mesmo participou nas periferias da cidade, com uma proposta à época nova, do orçamento participativo. Isso também depois ganhou mais força em Porto Alegre (RS) e ficou mais famoso lá. No caso, com o Estado promovendo a participação do povo nas decisões e aumentando a incidência de democracia participativa. Isso não é diretamente economia solidária, mas uma forma de o Estado se colocar de maneira diferente perante ao povo e de visão de governantes que defendiam também, além do aumento da participação popular, é a economia solidária como outra economia. Isso estava presente nessas formas de governo.
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Em linhas gerais, a economia solidária segue lógica segundo a qual cidadãos participam livremente, cooperando e competindo entre si, de acordo com os seus interesses e os contratos que celebram. Como essa premissa coloca em destaque particularidades territoriais para promover o desenvolvimento econômico por meio da coletividade?
Marcelo Gomes Justo: Paul Singer sempre colocou a ideia da livre adesão de participar nos empreendimentos econômicos solidários. Ninguém é obrigado a participar de uma cooperativa, assim como dentro da história do movimento operário inglês, no qual Singer buscou a história inicial da economia solidária, que era também a livre adesão ao sindicato – a pessoa não era obrigada a se sindicalizar. É interessante falar isso, pois na luta da esquerda, muitas vezes, se coloca a ideia de liberdade como sendo a do pensamento liberal de direita. Mas Singer sempre reivindicou essa liberdade para as lutas de esquerda.
Por definição, a economia solidária é a cooperação entre pessoas trabalhadoras no lugar da competição. Singer já acreditava, teorizava e viveu isso promovendo políticas públicas como secretário Nacional de Economia Solidária, para tais empreendimentos econômicos solidários ganharem força e competir com a economia capitalista. Por muitas vezes, para poderem ter força, iniciativas que começam em um território específico conseguiam se conectar com outros territórios e formar uma cadeia produtiva para ter estrutura competitiva com empresas capitalistas – e um único negócio solidário é o sujeito mais fraco. É necessário haver políticas públicas para fomentar e fortalecer empreendimentos econômicos solidários locais, inicialmente pequenininhos, mas que podem crescer.
Marcelo Justo fala sobre a relação entre identidade da população com o território e o desenvolvimento socioeconômico desses mesmos espaços
É correto pensar na economia solidária como uma contranarrativa à defesa da liberdade econômica e, por consequência, à precarização nas condições de trabalho?
Marcelo Gomes Justo: A história do cooperativismo no Brasil vem da Política Nacional do Cooperativismo, de 1971, que consistira em formas de precarização das condições de trabalho. Quando Singer resgatou os termos de economia solidária e cooperativismo, ele falava de cooperativas autênticas. Ele a colocou, nos anos 1990, como resposta a uma crise de desemprego existente naquele momento, resultante da falta de investimento do setor empresarial na produção – e que culminou em queda na produção e no emprego.
O cooperativismo autêntico deve garantir as condições – piso da categoria, descanso semanal, tudo que está estabelecido nas leis trabalhistas. Mistura-se isso tudo, e é uma luta do movimento de economia solidária não associar o cooperativismo à precarização do trabalho. Vejo a questão sobre o empreendedorismo como uma disputa política e conceitual. Tem uma máxima dele segundo a qual ninguém sai da pobreza sozinho. Existem outros autores, como Luiz Inácio Gaiger, que falam em empreendedorismo associativo como aquele da economia solidária. Ou seja, é a capacidade de montar um negócio, de forma coletiva e associativa, para conseguir gerar renda, ter sustentabilidade econômica e melhorar as condições de vida e do meio onde se vive.
Uma das disputas ocorre dentro do crescimento do modelo neoliberal é sobre precarização das condições de trabalho. O cooperativismo vem como resposta a isso: empreendimentos econômicos solidários precisam ter sustentabilidade econômica, mas sem precarizar suas condições internas. Deve ser também uma resposta a essa lógica que cresce durante décadas de neoliberalismo: do cada um por si, segundo a qual a pessoa deve ser empreendedora de si mesma para se dar bem em um mundo altamente competitivo.
Marcelo Gomes Justo fala sobre aspectos relacionados à economia solidária, passando por dimensões como renda e solidariedade entre a população de territórios vulnerabilizados
Entrevista: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Arquivo pessoal