Autonomia individual e bem-estar social
Confira artigo de Maria Alice Setubal publicado pela Folha de S.Paulo, em 04 de junho
Na área da educação, as diferentes crises da sociedade contemporânea se expressam por duas contradições básicas.
De um lado, a necessidade de um conhecimento complexo e multidimensional aliado a uma urgência por valores pautados pela preservação de bens naturais, materiais e imateriais, ao mesmo tempo em que orientem para o futuro.
De outro lado, ainda vivemos a exaltação do superficialismo, pasteurização e espetacularização dos modos de vida, agravados pelo imediatismo, individualismo e consumismo exacerbado incentivado pelos próprios governos.
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, afirma que a realidade social não pode ser reduzida a um agregado de indivíduos guiados por normas e desejos privados, pois a soma dos êxitos individuais não necessariamente se transforma em promoção coletiva.
A sociedade estabelece um padrão de felicidade baseado no consumo que, embora teoricamente esteja ao alcance de todos, a maioria é incapaz de obter.
Assim, as desigualdades de renda aumentam e geram desigualdades –tanto regionais como em relação a grupos étnicos, mulheres e jovens. Ou ainda desigualdades educacionais como as diferenças no acesso à produção e fruição cultural e a falta de condições adequadas dos ambientes domésticos, que impactam em piores resultados na aprendizagem dos alunos.
A dominância de um modelo baseado na igualdade de oportunidades em função do mérito sem combater as desigualdades sociais daí decorrentes pressupõe que as desigualdades de renda, hereditárias, culturais e educacionais têm pouco peso na organização da sociedade. E pressupõe que as iniquidades são justas, uma vez que as oportunidades estão abertas a todos numa competição equitativa.
As desigualdades acabam por corroer a confiança e o tecido social e geram relações tensas, agressivas, maiores taxas de criminalidade e piores índices sociais e educacionais. Criam-se guetos segregados tanto das populações de alta renda encasteladas em condomínios fechados, como das populações de alta vulnerabilidade social apartadas em periferias ou favelas. Como escreveu André Lara Resende, as pessoas são mais felizes em uma sociedade mais equânime, pois altas taxas de desigualdade reduz o bem-estar de todos.
A educação tem um papel fundamental na reversão desse cenário, não só como uma saída da pobreza, mas, sobretudo, para formar nossas crianças e jovens dentro dos novos parâmetros e valores da sustentabilidade. Parâmetros que priorizem o bem-estar social de indivíduos e grupos aliado à preservação e cuidado com o ambiente e com uma ética de responsabilidade pessoal e social em relação ao futuro sustentável das próximas gerações.
A escola como o primeiro espaço público de socialização das crianças pode dar as condições para construção de valores e conhecimentos contextualizados que possibilitem a participação exigida pela sociedade contemporânea.
Como diz Marina Silva, precisamos democratizar a democracia por meio de processos participativos que contribuam para formação de valores e troca de informações. Assim poderemos construir uma massa crítica capaz de tomar decisões mais reflexivas e conscientes.
A sociedade contemporânea exige a construção de um espaço público em que se respeite a singularidade e a potencialidade das pessoas para se alcançar o bem-estar individual e coletivo. Tornar a vida uma obra de arte, como enfatiza Bauman, é reconhecer a dignidade de todos os seres humanos numa contínua interação entre interesses, direitos e deveres individuais e coletivos, privados e comunais.
MARIA ALICE SETUBAL, doutora em psicologia da educação pela Pontifícia Universidade Católica de SP, é presidente dos conselhos do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e da Fundação Tide Setubal