Analista de comunicação e produtor de conteúdo do site da Fundação Tide Setubal
Democracia e equidade passa por uma sociedade civil forte e participativa
Não há como falar sobre democracia e equidade no Brasil – pauta central proposta pelo seminário promovido pela Fundação Tide Setubal – sem remeter ao processo de redemocratização vivido pelo país e às políticas públicas criadas a partir da Constituição de1988, que buscaram enfrentar as desigualdades. À toa também não é o fato de […]
Não há como falar sobre democracia e equidade no Brasil – pauta central proposta pelo seminário promovido pela Fundação Tide Setubal – sem remeter ao processo de redemocratização vivido pelo país e às políticas públicas criadas a partir da Constituição de1988, que buscaram enfrentar as desigualdades.
À toa também não é o fato de ela ser chamada de Constituição Cidadã, tendo em vista que seu artigo 5 trata especificamente sobre a garantia e o reconhecimento de direitos fundamentais, como o direito à educação. Ao mesmo tempo, são estes direitos que se veem ameaçados e, mais do que isso, pouco garantidos a todos, devido às extremas desigualdades que marcam o Brasil.
E foi justamente esta reflexão que marcou o segundo dia do seminário e esteve presente na fala de abertura trazida por Neca Setubal, presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal, Marlova Noleto, diretora e representante da UNESCO no Brasil, e Carolina da Costa, vice-presidente de Graduação do Insper.
Neca Setubal lembrou que a Fundação foi criada em 2006 justamente para fomentar iniciativas baseadas na justiça social e enfrentando das desigualdades sociais, tendo em vista que se trata de um fenômeno multifacetado, ancorada em sua atuação em eixos, como o fortalecimento das organizações que são das periferias e buscam defender as questões identitárias, e outro, que busca ampliar o diálogo num momento de tantas divisões, visando criar pontes.
Buscar este olhar do coletivo, do bem comum trazido por Neca, é, segundo a representante da UNESCO no Brasil, tão necessário e urgente, devido à polarização que o país tem vivenciado. O olhar para a educação deve ser ainda mais central.
“É por isso que a UNESCO reafirma a educação como direito fundamental e o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 4 trata especificamente sobre este assunto. E não é qualquer educação, mas a de qualidade, com foco forte no conceito de equidade, com o objetivo de garantir que crianças e jovens, sobretudo os mais desfavorecidos, tenham igualdade de oportunidades, ou seja, as mesmas oportunidades de todos. Precisamos lembrar de que o planeta é um só. Não há nenhuma maneira de sermos felizes, de termos uma vida plena, se não formos capazes de incluir nessa felicidade e nessa justiça todos e que ninguém seja deixado para trás. Isso é o que nos move e isso é o que nos faz ter pressa”, apontou.
Para Carolina da Costa, esta discussão perpassa, inclusive, para a necessidade de uma sociedade civil que atua de maneira ativa e sistemática para as mudanças que desejamos. “Nós, como sociedade civil, podemos fazer mais e aprender a como agir de forma organizada.”
Justiça Social e Democracia
Mas, afinal, é possível alcançar equidade, reduzir desigualdades, promover desenvolvimento econômico e sustentabilidade ambiental na sociedade contemporânea, ao mesmo tempo, diante de tantos desafios do contexto global? Marc Fleurbaey, coordenador do Painel Internacional sobre Progresso Social – International Panel on Social Progress(IPSP) -, economista e professor da Princeton University (EUA), junto com tantos outros especialistas no mundo, vem buscando caminhos para tal. Porém, isso exige mudanças rápidas e em várias frentes.
Novos tipos de governança, mais horizontalizados; salvaguardas de governos e sociedade para limitar as falhas do mercado; e cidadãos participativos nas cenas política, social e econômica, são apenas algumas delas. Essas e outras possíveis trilhas foram debatidas pelo professor Marc durante a Conferência plenária “Justiça Social e Democracia: uma agenda para todos”, no segundo dia do seminário. Toda a fala do pesquisador esteve pautada no relatório do IPSP, que acaba de ser lançado.
Intitulado “Repensando a sociedade para o século 21”, o relatório é composto por um conjunto de três volumes, cada um focado numa dimensão. Além do relatório completo, vários membros do IPSP escreveram um livro complementar intitulado “Um Manifesto para o Progresso Social: Ideias para uma Sociedade Melhor”. Esse volume menor reúne as principais mensagens do relatório do IPSP e as examina novamente por meio de uma nova lente.
O trabalho envolveu mais de 360 autores de mais de 40 países, incluindo brasileiros, de forma interdisciplinar, a fim de analisar as múltiplas dimensões do progresso social e apresentar soluções reais que possam ser adaptadas a diversos contextos. São ideias de possíveis futuros, como aponta Marc.
O primeiro volume traz as tendências de longo prazo para a sociedade, apresentando não apenas a definição de progresso social, mas quais são os valores que precisam ser desenvolvidos nesse sentido. Sendo assim, são discutidos temas como a transformação socioeconômica, olhando as desigualdades, sustentabilidade e o desenvolvimento urbano frente ao contexto de globalização e nas novas ondas de tecnologia.
“Quando falamos de progresso social não é uma abordagem neutra. Os valores que acreditamos são vários, como equidade, democracia, direitos básicos, pluralismo, liberdade, não alienação, solidariedade, reconhecimento, bens culturais, transparência, justiça distributiva e responsabilidade”, destacou o pesquisador.
Já o segundo volume discute governança, ou seja, como tomar decisões, globais e nacionais, proteger as leis, a democracia e a importância da mídia nesse contexto. E o terceiro aborda a transformação de valores e cultura, ressaltando as tendências das modernidades, religião, famílias, saúde etc.
Avanços e retrocessos
Grandes e diversas conquistas versus uma catástrofe eminente. Essa é a cena que, segundo Marc, o mundo vive atualmente. De acordo com o professor, muitos passos foram dados desde meados do século passado, com desenvolvimento econômico, avanço na longevidade da população, aumento do número de democracias, ampliação de valores de inclusão e uma nova abordagem de mais respeito à natureza. Ou seja, estamos no auge das nossas possibilidades.
“Porém, ao mesmo tempo, estamos vendo um abismo. Podemos ter grandes desastres por diversas ameaças. Muitos países são deixamos para trás. Vejamos a situação da América Latina: há uma certa estagnação nas últimas décadas. Há uma grande preocupação com a África também, que precisa encontrar um modo de sair desta crise, caso contrário teremos problemas para o resto do mundo. Isso sem falar das imigrações e das ameaças devido às mudanças climáticas”, destacou, lembrando que há muitos desafios dentro dos próprios países.
“As desigualdades aumentaram e isso está criando uma crise social enorme, que se traduz em crise política, como o populismo. As desigualdades estão ligadas à corrupção e isso leva a um menor nível de confiança entre as instituições, e esse fenômeno mina as políticas construtivas. Cada um desses desafios são pequenas partículas e, se juntarmos todos, vamos ter uma situação bem perigosa”, ponderou.
Mas, quais seriam então os caminhos? Para responder ao questionamento, Marc destacou pontos específicos de cada um dos volumes do relatório. Em relação aos aspectos socioeconômicos, trouxe como questões centrais as políticas que desempenham um papel importante da distribuição das riquezas, assim como o salário mínimo. Outro ponto diz respeito ao futuro do trabalho e à curva exponencial dos robôs que passam a ocupar e desempenhar papéis antes assumidos pelos homens, o que pode afetar, principalmente, as pessoas mais antigas do mercado de trabalho, além do aumento do trabalho informal.
O professor destacou como bom exemplo modelo da Escandinávia, tendo em vista que a forma de organizar a economia e o mercado protege as pessoas, com programas universais para que todos os cidadãos se beneficiam.
“Um ponto fundamental é que precisamos reformar as corporações, como as empresas são administradas. Esse modelo de acionistas é muito forte e não é uma boa direção. Precisamos realinhar as empresas para o bem social, mudar o seu propósito e a governança. Isso significa de fato melhorar a inclusão das partes interessadas na organização. E já vemos exemplos nesse sentido, de negócios que definem seu propósito não para o lucro de seus acionistas, mas com impacto maior”, ressaltou.
Já em relação à governança e à política, segundo Marc, será necessário repensar o modo como as decisões são tomadas, tendo em vista que há uma grande interação entre a saúde da sociedade e a política. O pesquisador lembrou que existem diversas formas de corrupção que podem minar a democracia e, por isso, são necessárias cada vez mais políticas saudáveis para termos sociedades saudáveis.
E isso passa pela questão da participação social. “Temos que mudar a visão da democracia, ou seja, as pessoas precisam estar envolvidas nas decisões que lhe afetam. E a América Latina, inclusive, sempre esteve à frente nesse sentido, com muitas experimentações. A visão de futuro é justamente de uma sociedade civil participativa, inclusive para monitorar e ajudar a termos um sistema de mídia saudável”, ponderou.
Sobre a governança global, a aposta é a necessidade de melhorar o posicionamento das organizações internacionais, dando-lhes maior poder de influência e que sejam mais receptivas às necessidades das populações, e tendo como foco o gerenciamento do bem comum, como clima, meio ambiente, problemas de imigração, etc. Nesse ponto, inclusive, o professor reforçou novamente o papel fundamental da sociedade civil, tendo organizações não governamentais locais, mas conectadas com redes globais.
Por fim, em relação às culturas e aos valores, é possível observar visões múltiplas da modernidade, no qual diversos cidadãos estão tomando caminhos diferentes e saindo do modelo tradicional ocidental – em que o poder está nas mãos do homem branco -, trazendo uma visão democrática mais abrangente de compreensão dos seres humanos, e mais horizontal do mundo em relação à que tivemos no passado, com a valorização, inclusive, das populações nativas.
O que se observa hoje, segundo Marc, é que as pessoas querem, cada vez mais, pertencer a um grupo. Por isso, é preciso gerar condições para que as pessoas possam viver isso e, principalmente os mais oprimidos, sejam representados no sistema de decisão. “Quando temos fortes desigualdades, temos oligarquias, temos a captura das esferas do poder por pessoas mais ricas. Isso, em longo prazo, não é saudável”, relembrou, destacando a importância de dar voz às pessoas, pois, inclusive, parte da vulnerabilidade que vários grupos têm na sociedade está ligada ao pouco acesso à voz e poder, o que cria um círculo vicioso.
“Por isso, não devemos dar apenas um apoio específico, mas fazer com que sejam parte da corrente principal, eliminando as fontes dessa vulnerabilidade. É fazer com que deixem de ser grupos especiais”, acredita.
Especificamente sobre a questão educacional, que é um dos aspectos abordados no relatório, o pesquisador lembrou que dificilmente as metas do Objetivo de Desenvolvimento número 4, que fala especificamente sobre educação, serão atingidas, tendo em vista que a educação é um espelho da sociedade e, portanto, se tivermos uma sociedade desigual será impossível haver educação igualitária.
Porém, lembrou que a educação é justamente o elemento-chave para a redução das desigualdades, mas não será ela apenas que conseguirá resolver todos os desafios da sociedade.Eles deverão ser enfrentados de múltiplas maneiras.
Olhar para o futuro
As desigualdades de poder político e econômico criam privilégios. Como mostrar que a redução das desigualdades também interessa a todos? Encontrar resposta para esse questionamento, segundo o professor, é de fato o ponto-chave para mudanças mais profundas na sociedade.
Porém, como o questionamento ainda parece persistir, a aposta é justamente em uma sociedade civil cada vez mais forte, que consiga ter um papel de destaque. Para isso, será necessário, segundo Marc, encontrar novas formas de organização e de pressão social, pois, sem isso, não teremos transformação.
“A questão é que, para promover o progresso social, precisamos agir. Precisamos de mais pressão da sociedade para as mudanças, junto aos governos, ao mercado – aí, a sociedade civil tem papel grande. A sociedade civil está mais complexa do que antes, com novos atores em campo. Não temos mais um agente único de mudança, mas muitas iniciativas e isso pode criar um movimento. Precisamos trazer às pessoas uma visão incentivadora para o futuro, pois é aí que encontrarão a energia para fazer diferente. Acredito que temos uma responsabilidade histórica. Podemos continuar no progresso ou na catástrofe. Estamos num momento crucial da história.”
Acompanhe aqui os demais debates que marcaram o seminário nestes dois dias de evento.