É imprescindível que o debate de geração de empregos compreenda raça e gênero – Fundação Tide Setubal entrevista Patrícia Santos
Por Amauri Eugênio Jr. Considerado o mês da Consciência Negra, novembro é marcado por uma série de reflexões e debates sobre o racismo estrutural na sociedade e maneiras para promover a equidade racial. Porém, pensar sobre o tema e desenvolver iniciativas para combater a opressão contra pessoas negras deve estar na agenda de […]
Por Amauri Eugênio Jr.
Considerado o mês da Consciência Negra, novembro é marcado por uma série de reflexões e debates sobre o racismo estrutural na sociedade e maneiras para promover a equidade racial. Porém, pensar sobre o tema e desenvolver iniciativas para combater a opressão contra pessoas negras deve estar na agenda de empresas, instituições e da sociedade nos outros 11 meses do ano.
Se olharmos para o contexto da atual, pessoas negras são a maioria entre os desempregados durante a pandemia de Covid-19. Elas recebem salários significativamente menores em comparação com pessoas brancas, inclusive quando têm a mesma qualificação acadêmica, e são presenças raras em postos de liderança em empresas. E essa lógica desigual é intensificada quando há intersecção de raça e gênero: ou seja, mulheres negras sentem ainda mais quando se fala em discriminação e falta de oportunidades no mercado de trabalho.
Em entrevista à Fundação Tide Setubal, Patrícia Santos, CEO da EmpregueAfro, consultoria em recursos humanos focada em diversidade étnico-racial, fala sobre a desigualdade racial no mercado de trabalho, fala sobre o panorama de pessoas negras nesse cenário, como as desigualdades em âmbito sociorracial e profissional são retroalimentadas pelo racismo estrutural e como iniciativas de apoio podem mudar essa perspectiva.
Confira a seguir a entrevista na íntegra.
O aumento nos níveis de desemprego desde o início da pandemia foi mais intenso entre a população negra, que era condicionada a ocupar a maior proporção de atividades precarizadas. Em sua opinião, quais fatores retroalimentam essa lógica?
O único fator que alimenta esta lógica é o racismo estrutural. É a lógica racista que faz, cada vez mais, a população negra, que sofre com o preconceito e o racismo no mercado de trabalho, estar à margem de oportunidades. Quando são empregadas, elas estão em posições mais precárias e subalternas. Essa lógica, do racismo estrutural, vem da escravidão, de uma história de exclusão e subalternização da população negra.
É possível dizer que o debate sobre geração de empregos e promoção de melhores condições de trabalho e renda passa pela intersecção de raça e gênero? Por quais motivos?
Com toda a certeza. É imprescindível que o debate de geração de empregos e a promoção de igualdade no mercado de trabalho compreendam, sim, questões de raça e gênero. Primeiro, porque nós, mulheres, além de sermos a maioria das pessoas no Brasil, sofremos mais preconceito na promoção, para ascender socialmente – e o mesmo acontece com nós, negros.
Por mais que mulheres e negros, principalmente nós, mulheres negras, representemos a maior parte da população economicamente ativa. Por mais que estejamos inseridas no trabalho, estamos inseridas em posições diferentes da posição de poder em que estão as pessoas brancas e os homens. É imprescindível fazer recortes e estudos para a promoção dessas mulheres no mercado de trabalho.
Uma das alegações usadas por uma empresa para justificar a baixa presença de pessoas negras em cargos de liderança é que seria necessário “baixar a régua” em processos seletivos. Essa afirmação faz sentido? Por quais razões?
Primeiro, porque existem, sim, profissionais negros em todos os tipos de cargos e funções, mas, historicamente, justamente por causa da escravidão e das desigualdades entre brancos e negros no nosso país, não há brancos e negros na mesma proporção para cargos de liderança. Não há seis candidatos concorrendo a um cargo de direção – talvez existam dois. Essa noção que a branquitude tem do privilégio da bolha onde vivem faz com que frases como essa acontecerem: são visões míopes e distorcidas sobre a realidade do negro no mercado de trabalho.
É uma questão de procura por alguém semelhante por ter o pressuposto de que essa pessoa é confiável?
Sim. Na maioria das empresas costuma-se contratar pessoas das mesmas universidades e que moram nas mesmas regiões. Eles não saem da bolha da branquitude e reproduzem padrões hegemônicos, e por isso não são tão abertos – não tem nada a ver com essa régua.
Alguns pré-requisitos devem ser flexibilizados, sim – por exemplo, na questão do inglês fluente. Isso não significa baixar a régua, mas flexibilizar para incluir e entender as especificidades desse profissional negro. É absurdo querer comparar o histórico de um profissional negro com outro branco. Historicamente, a gente não teve as mesmas oportunidades.
Após a realização de processos seletivos de empresas para selecionar exclusivamente pessoas negras para tornarem-se trainees, alguns grupos reclamaram de tais medidas ao argumentar que isso se tratava de “racismo reverso”, mesmo que isso não exista. Em sua opinião, quais são os motivos que resultam em reações desse tipo?
É justamente a ignorância das pessoas, de não discutir questões raciais ou buscar conhecimento sobre o tema. Na escola, desde a nossa infância, a gente aprende uma história distorcida, em que não contam a verdadeira história sobre nós, negros, e o que foi o processo de escravidão.
As pessoas reproduzem a ignorância que têm sobre as questões sociais: não estudam ou param para pensar o que foi o racismo e o que são as desigualdades, falam que somos vitimistas e que é tudo mimimi nosso. É essa ignorância que produz o racismo estrutural e institucional que vemos todos os dias.
O racismo no Brasil é fruto da ignorância e da falta de conhecimento e é uma teoria de superioridade dos brancos sobre nós, negros, na sociedade. Como pode existir racismo reverso? Isso não faz sentido. Para existir racismo reverso, seria necessário voltar mais de 500 anos na história, a África ter escravizado a Europa e, hoje, os espaços predominantemente de poder, sobre os quais o professor Silvio Almeida fala no livro Racismo Estrutural, como economia, política e direito, serem ocupados majoritariamente por pessoas negras, enquanto brancos estivessem em postos minorizados, sem acesso a espaços de poder.
Se a história e os números tivessem sido outros, a gente poderia dizer que há racismo de negros contra brancos, mas não tem nenhum sociólogo que concorde com a expressão racismo reverso, de tão absurda que ela é.
Nos últimos tempos, iniciativas têm sido desenvolvidas para fomentar a formação de pessoas negras para ocupar cargos de poder e decisão, como o Edital Caminhos. É possível dizer que recursos financeiros são estratégicos para preparar profissionais negras(os) para ocupar tais espaços?
Com certeza. Acho que são iniciativas excelentes, extremamente importantes para reduzir as desigualdades. Sem a força do terceiro setor, a gente também não consegue impulsionar negros para cargos de liderança. Falo isso para empresas investirem nisso, mas é difícil entenderem a importância. Esse é um programa fundamental e é um papel muito importante antirracista da Fundação neste momento.
Por que é importante promover o aumento no acesso de pessoas negras a postos de poder e decisão no mercado de trabalho?
É importante dizer que processo de diversidade e inclusão de profissionais negros passa por processos de RH – recrutamento, seleção, treinamento e desenvolvimento de pessoas. Acima de tudo, precisa-se de uma alta liderança engajada pessoalmente na temática, da área de comunicação e do jurídico, para a empresa estar de fato envolvida e fazer a diversidade acontecer e não ser algo para fora, mas principalmente verdadeiro internamente.
Sempre falo que investir em diversidade é estratégia de negócios. Primeiro, porque a empresa ganha em aumento de market share [N.R.: fatia de mercado]. Pesquisas da McKinsey comprovam isso, que empresas que investiram em diversidade têm até 30% a mais de lucro do que outras.
Há os benefícios internos de gestão de pessoas, pois isso torna o ambiente mais colaborativo, participativo e saudável. Para nós, negros, isso melhora a representativade; o senso de pertencer, uma vez que o racismo abala o nosso senso de nos sentirmos pertencentes a lugares; a renda e a condição de vida. O acesso ao trabalho nos permite ter alimentação melhor e morar em um lugar melhor: isso contribui para a gestão das desigualdades e tem, inclusive, benefícios para a sociedade como um todo. Mas os principais beneficiários disso tudo são as empresas e os profissionais negros.