Analista de comunicação e produtor de conteúdo do site da Fundação Tide Setubal
“Ser preto foi-me apresentado como sendo um ato político e é com essa certeza que navego pelo mundo” – Fundação Tide Setubal entrevista Kalaf Epalanga
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: Pluma Em tempos de crescimento de correntes políticas de extrema-direita, episódios de discriminação racial têm se tornado mais frequentes no Brasil e ao redor do mundo. Para se ter uma ideia, o panorama em Portugal, por exemplo, mostra-se pouco animador quando se fala em igualdade racial. Um estudo recente […]
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: Pluma
Em tempos de crescimento de correntes políticas de extrema-direita, episódios de discriminação racial têm se tornado mais frequentes no Brasil e ao redor do mundo. Para se ter uma ideia, o panorama em Portugal, por exemplo, mostra-se pouco animador quando se fala em igualdade racial.
Um estudo recente mostrou que 52,9% dos entrevistados portugueses acreditavam haver grupos sociorraciais biologicamente melhores do que outros, enquanto 54,1% concordavam com essa afirmação em âmbito cultural – para efeito de comparação, a média europeia nesses quesitos é, respectivamente, de 29,2% e 44%. Ainda, segundo dados da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR), houve 207 denúncias de racismo e xenofobia no país entre setembro de 2017 e junho de 2018.
Por outro lado, a postura combativa da população negra, o apoio de outros setores sociais e a intensificação do debate sobre o racismo estrutural têm sido signos de resistência contra a naturalização de comportamentos e medidas discriminatórias.
É a partir da perspectiva de imigrante em Portugal que fala o músico e escritor angolano Kalaf Epalanga. Epalanga, que fez parte do grupo de kuduro Buraka Som Sistema e é autor do livro Também os Brancos Sabem Dançar, chegou ainda jovem ao país – hoje ele vive em trânsito entre Lisboa e Berlim (Alemanha).
Em entrevista à Fundação Tide Setubal, em virtude da Semana da Consciência Negra, o artista fala sobre a sua experiência enquanto imigrante, o enfrentamento do racismo estrutural e as suas impressões sobre o Brasil após ter visitado o país.
Confira a seguir a entrevista.
Até em que ponto o fato de você ter vivido como imigrante em Portugal influenciou na relação racial que você encontrou no país? O que você pode dizer a respeito e quais desafios você encontrou no país?
Sempre senti que a minha passagem por Portugal seria temporária. Sempre soube qual é o meu lugar no mundo, mesmo não estando fisicamente nesse lugar, que é só e unicamente o continente-berço da humanidade. Diante dessa constatação, não existiram desafios que não fossem e não sejam ultrapassáveis.
Como o racismo em Portugal é retroalimentado em relação a imigrantes? O que pode ser dito a respeito?
Infelizmente, os movimentos migratórios de Sul para Norte serão sempre usados como bodes expiatórios para esconder questões mais profundas com as quais a Europa e o mundo ocidental se debatem desde a invenção da branquitude como fator para distintivo. Atendendo que nem todos os grupos étnicos que chegam a Portugal são tratados da mesma forma, concordo quando a artista Grada Kilomba escreveu: “racismo tem a ver não só com preconceito, mas também com a prática do preconceito, que só pode ser exercitada através do poder”.
Como o seu trabalho cultural, tanto no Buraka Som Sistema, como no segmento literário, te ajudaram a se autoafirmar em Portugal enquanto homem negro e imigrante? E como você vê a recepção ao seu trabalho?
Eu não trabalho com a premissa de me autoafirmar como negro. Antes de mim vieram outras pessoas e delas herdei o que sei sobre o ser negro. Mais do que a quantidade de melanina que carrego na pele, ser preto foi-me apresentado como sendo um ato político e é com essa certeza que navego pelo mundo.
Quanto ao meu estatuto de migrante, tenho por hábito afirmar que sou um expatriado angolano na Europa e trabalhando para melhorar a indústria em que estou envolvido. Tanto na música como na literatura, a minha missão é só uma: me expressar na melhor das minhas habilidades e deixar um legado que seja um reflexo da era em que vivi. No país onde nasci, de maioria negra, a cor da minha pele não é assunto – lá sou apenas um escritor de Benguela. Só em sociedades que não têm relação saudável com outros grupos étnicos esse assunto entra em agenda. Pessoalmente, o que me interessa são os africanos e suas histórias, sensibilidades e impacto cultural tanto no continente como na sua vasta diáspora. O resto é artifício.
Pode-se ver em diversas áreas, inclusive no futebol, episódios sucessivos de racismo, em especial contra pessoas negras. Em sua opinião, como autoridades e governos de países europeus têm lidado com a discriminação racial? O que eles precisam fazer para combater o racismo?
Deixarem de ser covardes. Quando a sociedade negar justiça a determinado grupo, as palavras do abolicionista Frederick Douglass me vêm à mente: “onde a justiça é negada, onde a pobreza é imposta, onde a ignorância prevalece e onde todas as classes são levadas a sentir que a sociedade é uma conspiração organizada para oprimir, roubar e degradá-las, nem pessoas, nem propriedade estarão a salvo”.
Como você vê a questão racial no Brasil? Quais impressões você teve nas vezes em que veio ao país?
A situação é grave e preocupante. A impressão que me deixa em estado de profunda tristeza é que o potencial que Brasil seria enorme, se as forças opressoras tivesse a inteligência de entender o Brasil precisa de todos os brasileiros. Não dá para deixar ninguém de fora.
Desde que me lembro de ser gente, tenho vindo a estudar o contributo que negros deram para a construção da identidade brasileira. A invisibilidade que intelectuais como Lélia González ou Abdias do Nascimento sofrem junto das sociedades africanas é a prova de que ainda há muito por fazer e não podemos ter a ilusão que haverá um salvador branco que virá dar espaço ao pensamento e ao conhecimento negro se espalharem para o mundo. Este trabalho deverá ser feito por nós. Daí, [é necessário] acreditar que a comunidade negra brasileira precisa urgentemente virar-se para africana. Os conhecimentos que esta população tem desenvolvido serão úteis no continente que só agora começa a desafiar de forma eficaz os sistemas perversos como o neocolonialismo que impedem a nação negra dos dois lados do atlântico de se unir – e começar o processo interno de cura há cinco séculos nos tem vindo ser negado. Nós, descendentes de africanos, temos que ter a possibilidade de viver o nosso luto e chorar nossos mortos, chorar o apagar dos nossos nomes, de nossas línguas e de nossos deuses.
No Brasil, o Dia da Consciência Negra é lembrado anualmente em 20 de novembro. Qual é a importância de trazer o debate sobre a luta antirracista periodicamente em vez de acontecer em apenas datas específicas?
O racismo é uma máquina sofisticada e muito bem oleada. Para combatê-lo é preciso ter a mente afiada. Treinar o músculo da memória, porque como disse a historiadora Emília Viotti da Costa, “um povo sem memória é um povo sem história, e um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”. É preciso estar vigilante, assim como a democracia não pode ser exercitada apenas nos dias de eleições, mas sim no cotidiano – no dia a dia por o ser humano é um bicho complexo e não podemos nos deixar adormecer. O Dia da Consciência Negra é importante, assim como são os restantes dias do ano, para a gente se cuidar, ter tempo e espaço para dançar, comer, meditar coisas de pretos. É necessário termos uma dieta espiritual negra saudável que nos permita aguentar a dura realidade de viver numa sociedade que consciente ou inadvertidamente conspira para a franja mais frágil da população continuar vivendo de forma asfixiada.
Amauri Eugênio Jr.