Educações de rua: livre escola da expressão
Por Tião Soares Uma das constatações das últimas eleições foi a ausência quase que completa de manifestações de rua. Foi possível dar uma volta pela cidade de São Paulo, maior colégio eleitoral do país, e constatar que, mesmo com o clima de disputa tenso, a campanha não estava nas ruas. Em contrapartida, embora […]
Por Tião Soares
Uma das constatações das últimas eleições foi a ausência quase que completa de manifestações de rua. Foi possível dar uma volta pela cidade de São Paulo, maior colégio eleitoral do país, e constatar que, mesmo com o clima de disputa tenso, a campanha não estava nas ruas. Em contrapartida, embora ainda com poucos impactos na decisão do eleitor, os movimentos virtuais na internet ganharam maior destaque no noticiário jornalístico. Por que será que a cada eleição e em maior intensidade esse fenômeno se repete, com a rua cada vez mais deixada de lado?
Por um lado, vivemos uma revolução virtual que tem produzido alguns fenômenos colaborativos muito interessantes, com destaque para a blogosfera, na qual, graças aos esforços de milhares de desconhecidos, qualquer navegante de passagem pode transitar por comunidades, manifestar sua opinião e fazer uso de serviços confiáveis e de grande utilidade.
Por outro, é interessante notar que esse espírito colaborativo, característica marcante do mundo virtual, não representa, nem de longe, o nosso dia a dia nas metrópoles. O que se vê são pessoas cada vez mais fechadas em si mesmas ou dentro de carros, escritórios, shoppings ou em condomínios pretensamente seguros, numa postura cada vez mais individualista e competitiva.
A vida cotidiana nas grandes cidades tem se distanciado, a cada momento, das relações humanas. A rua tornou-se um espaço para os automóveis ou de práticas para outras culturas, entre elas a da violência e a da desagregação social. Com isso, gradativamente, as praças públicas foram praticamente abandonadas e deixaram de ser o lugar do encontro, do namorico, das conversas interessantes sobre os modos de vida, a cultura e a memória. Tais transformações estão ligadas à ausência de valores, à perda de sentido do encontro com o outro, com a vida real.
A comprovar essa nova-velha cultura do automóvel e da pressa, todos os dias nas cidades são abertas novas ruas para se praticar a cultura individualista. Não surpreende que entre os eventos eleitorais de rua o mais praticado é a carreata.
Diante de uma realidade concreta e vivenciada por todos, como contribuir para que o fenômeno do compartilhamento do mundo virtual se encontre, na política e na vida cotidiana, com o mundo real, com a rua, com a cidade?
É necessária uma boa dose de criatividade e ousadia para fazer surgir novas práticas culturais que tornem atrativos os espaços ao ar livre, públicos e gratuitos, dos imensos centros urbanos. É preciso dotar esses espaços e colocar atividades na rua com tal poder de atração que consigam se contrapor, gradualmente, às opções de atividades individualistas, como é o caso da cultura do automóvel, que estimula e reforça a cultura da pressa.
Exemplos dessas novas práticas culturais existem muitos, na cidade de São Paulo, em outros municípios do Brasil, em Bogotá, na Colômbia, e em variados cantos do mundo. Nesse contexto, são inseridos o uso da bicicleta, como alternativa concreta de transporte nos grandes centros, e a criação de práticas culturais que dêem um novo significado para a rua, que não seja apenas para a circulação do automóvel.
Um exemplo dessa utopia viável é a experiência dos Corredores de Livros em São Miguel Paulista, Zona Leste da capital paulista. Inspirada nos corredores de ônibus, que segundo os técnicos de transporte possuem inegável facilitação de locomoção para se livrar do tormento dos engarrafamentos urbanos, a Fundação Tide Setubal criou o Festival do Livro e da Literatura em São Miguel, em sua quinta edição (18 a 20 de novembro), com a pretensão de contribuir para que os espaços públicos voltem a ser lugares de livre expressão da vida social e da sociabilidade.
Praças, pontos de ônibus, calçadões, escolas, clube da comunidade reunirão moradores em conversas com autores, lançamentos de livros, contações de histórias, trocas de livros, assegurando a promoção de espaços de circulação e de leitura, do encontro e da alegria. Os Corredores de Livros possibilitam que as pessoas juntas construam sonhos e significados de vida, troquem a ideia de crianças e moradores de rua, por ruas de crianças e de moradores. A rua passa ser o lugar de trocas, de saberes e de experiências humanas e não apenas espaço da violência, do medo, da pressa.
Ao construírem itinerários da liberdade de expressão e do espaço livre, os Corredores de Livros recuperam o poder aglutinador, no qual ocorre a geração não intencional de oportunidades e situações entre as pessoas, que é o maior trunfo das cidades. Contribuem desta forma para combater o vácuo cultural que se empreendeu à vida nas cidades, transformadas num lugar vazio, sem alma, sem ares humanizadores e humanizados, sem sentido de pertencimento.
Entretanto, não é uma empreitada fácil levar adiante ações potencializadoras para tornar o espaço público – praças, ruas, pontos de leitura, mercados – em lugar de convívio humano. Como bem definiu a antropóloga Maria Lucia Montes no I Seminário Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humano, realizado em 2008 pela Fundação, mudanças de hábitos não são fáceis, porque implicam uma mudança de visão de mundo, alterações de perspectivas com relação aos valores que se traduzem em nosso comportamento cotidiano.
Apostar em métodos inovadores de revitalização da rua, do espaço público e da cidade se constitui num enorme desafio, especialmente quando a pretensão é alcançar a conexão da rua com a cidade e desta com o global. Neste cenário, a cultura sendo vista de forma alargada, em que os valores humanos são colocados como ponto de partida.
Desta forma se busca uma nova trilha e com ela se seguirá um percurso da rua como cenário urbano no qual a educação, a cultura, as campanhas políticas, enfim, o cotidiano e a vida real acontecem.
Tião Soares – doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP, mestre em educação, membro da Diretoria do Fórum Permanente das Culturas Populares do Estado de São Paulo, membro fundador da Rede Nacional das Culturas Populares e FIC (Fórum intermunicipal de Cultura), colaborador do Instituto Pólis e professor universitário. Atualmente, atua como coordenador cultural da Fundação Tide Setubal, em São Miguel Paulista, São Paulo (SP).