Nós, que nos interessamos em pautas progressistas, precisamos ocupar espaços gamers – Entrevista com Flávia Gasi
Flávia Gasi, jornalista, diretora de narrativa e estrategista do Laboratório de Impacto Gamer (Purpose), fala da pesquisa Identidade Gamer.
Como jovens gamers se relacionam com o debate político? Quais temas atraem o interesse das pessoas que se interessam por jogos eletrônicos? Como falar a respeito de pautas políticas diversas com quem está nesses grupos – e quais são as possibilidades para ingressar nos espaços onde elas estão? Essas e outras dúvidas deram o tom da entrevista com Flávia Gasi, jornalista, escritora e diretora de narrativa. Flávia é também estrategista do Laboratório de Impacto Gamer (LIGA), da Purpose.
O LIGA lançou recentemente a pesquisa Identidade Gamer, que visa buscar entender as visões de mundo, valores e territórios de gamers no Brasil.
O estudo, conduzido pela agência de pesquisa de tendências Box 1824, ouviu pessoas com idades entre 18 e 34 anos, de diferentes classes sociais, posicionamentos políticos, gênero e regiões do Brasil, e mapeou uma série de aspectos sociocomportamentais e políticos entre quem participou. Essa etapa resultou na classificação das pessoas entrevistadas em seis grupos comportamentais. Além disso, foram identificadas quatro principais visões políticas a partir dos retornos de quem foi entrevistada/o.
+ Confira a íntegra dos perfis identificados na pesquisa Identidade Gamer
A mesma lógica vale para ingressar em espaços de sociabilidade e desenvolver ações para fortalecer valores democráticos nesse contexto: segundo a Pesquisa Game Brasil 2022, mais da metade de quem joga é formada por pessoas negras, mulheres e das classes C, D e E. Ainda, quase 42% usam smartphones para jogar. Confira a entrevista a seguir.
Como foi o processo para a definição dos seis perfis? Durante o processo, quais lições foram assimiladas a partir da organização das pessoas entrevistadas dentro das classificações estabelecidas?
Flávia Gasi: A Box 1824 fez um levantamento com especialistas na área de diferentes espaços da indústria de videogames. Isso criou um apontamento do que eles podiam procurar nos perfis e entender na internet. Foram analisados quarenta perfis diferentes, para entender como eles estavam falando, como era comportamento de jogo e de qual modo eles se relacionavam com política. Com esses resultados, criamos um questionário juntos. Existiam vários valores que queríamos entender para poder criar os perfis e não apenas o quanto a pessoa joga: saber o que e onde a pessoa joga, onde ela conversa sobre o jogo e quem ela considera uma inspiração na sociedade. Abre-se um leque maior.
A outra parte do questionário contém perguntas sobre política: o que se entende como política e como ela é percebida. Acredito que as pessoas estão muito acostumadas a entendê-la como uma questão partidária, mas não sobre política não institucional, como filosofia.
As categorias não são absolutamente fixas, pois nada na vida é – temos vidas dinâmicas. Quando eu era mais jovem, por exemplo, eu tinha mais tempo de jogar e com certeza era muito mais medalheira. Eu também trabalhava com videogame. Ele estava me dando um método, o modo como até hoje trabalho com isso. Mas eu tinha mais tempo para estar em um jogo conseguir todas as medalhas. Hoje não tenho tanto tempo assim e me vejo em um perfil muito mais escapista: jogo videogame por gostar de experimentar essas novas realidades.
Foi muito importante criarmos esses perfis para entendermos um pouco mais o comportamento dessa população, as diferenças e as similaridades. Desse modo, compreendemos depois os eixos políticos e entendemos quem está em cada um. É um indicativo, mas nem toda pessoa medalheira estará em uma visão de política antidoutrina. Talvez ela esteja convivendo em um espaço de sociabilidade onde essa visão é mais forte e comentada do que as outras.
Neste caso, eu posso me identificar com um perfil mapeado na pesquisa em determinado momento da minha vida, mas ter mais contato com pessoas de demais perfis em outra fase?
Flávia Gasi: Mesmo por partirmos do princípio de ser possível falar com essas populações. Se não acredito que a educação ou campanhas podem causar mudanças, estamos sempre paralisados em certos valores. Claro, há valores fundantes que vêm da nossa família, mas sempre ajustamos os nossos valores a novas pessoas e realidades que conhecemos – muitas vezes você não tem intimidade com certo assunto.
Digamos que você não conhece muitas pessoas LGBTQIAP+ e, por isso, terá visão não íntima sobre o assunto – mas, talvez, a intimidade proporcione visão diferente. Como acreditamos na possibilidade íntima de mudança, temos também de acreditar que os perfis mudam ao longo da vida.
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Você pode falar sobre esse processo? Quais impressões têm sido colhidas e qual tem sido a devolutiva dos grupos com os quais têm acontecido diálogos?
Flávia Gasi: Como ainda não fizemos as oficinas, falarei diretamente com o público. Pelas campanhas, percebemos que é muito possível falar de política com grupos de pessoas em espaços de sociabilidade gamer sem parecer algo ofensivo, pois vivemos um momento no qual política parece uma coisa ofensiva por si só – ou a pessoa considera que não faz sentido para ela.
Percebemos, durante 2022, aumento de perfis que não tinham necessariamente visão antidoutrina, mas outras visões [identificadas na pesquisa], ocupando o espaço de sociabilidade gamer. Isso causou mudança e impacto grandes de conversas, até mesmo na eleição e no resultado – um pedaço do resultado da eleição, é claro. Percebemos que engajar com pessoas que às vezes se sentem desanimadas, ou não entendem de política, pode ser muito bacana para nós, pois são perfis de pessoas que habitam um espaço.
O espaço de game é um espaço de afeto. Podemos ir via afeto em vez da explicação apenas racional sobre política. A política, filosoficamente falando, afeta nossa vida no dia a dia. Por que não falar de afeto então? O objetivo de uma boa educação não é fazer a pessoa pensar igual a você, mas abrir a cabeça para a possibilidade de pensamento. Isso é a educação de verdade: dar ferramentas para a pessoa entender o mundo do jeito como ela quer, mas com mais nuances. O objetivo é criar espaços de sociabilidade mais inclusivos e democráticos, com mais debate – hoje debate-se pouco política. Quanto mais debatermos, provavelmente será melhor a nossa relação com política.
Flávia Gasi fala sobre aspectos sociocomportamentais e econômicos identificados na pesquisa
A indústria foi segmentada para um público específico e pessoas negras, mulheres e pessoas LGBTQIAP+ acabam vistas como dissidentes. Como sensibilizar parcela de gamers vista como hegemônica?
Flávia Gasi: Precisamos de campanhas que expliquem quem são os gamers. É muito maluco, como em termos de indústria, videogame é tão grande, mas em termos de número e de entendimento, sejamos tão poucos. A pesquisa, por exemplo, poderia ser muito maior. Temos um mercado de criadores de videogames muito grande, mas você nunca ouviu falar dele. Precisamos de muitas campanhas ainda, as quais mostrem as diversas faces da indústria de videogame.
Há uma representação já existente a respeito disso, mas não comentamos. Não comentar nos traz muito mais problemas, por não dar conta do escopo do que é o mercado de videogames. Isso nos faz ocupar um local mal utilizado – ou não ocupar esses espaços de sociabilidade. A extrema-direita já percebeu, faz muito tempo, como esses espaços são importantes. O Gamergate fará uma década daqui a pouco. Nós, que não somos de extrema-direita e estamos interessados em pautas progressistas, precisamos ocupar esses espaços. Estamos para trás.
É possível pensar que a regulação de plataformas, por exemplo, pode ser um caminho para coibir a radicalização da cena gamer?
Flávia Gasi: Acho extremamente importante. Não somente a regulação de Twitter e Telegram. É importante entrarmos no Discord, que é um lugar onde tem um monte de grupos de ódio e ninguém fica sabendo, nos chats das empresas de videogame. Não se pode jogar uma partida online, receber um comentário racista e ficar tudo bem – injúria racial é crime. Não pedimos pela censura de discurso, mas sim pelo cumprimento da lei. Ela não é cumprida em diversos espaços de sociabilidade que gamers usam, como o Discord, a Twitch, assim como dentro das próprias plataformas de jogo online.
É necessário haver uma legislação muito mais afinada com os tempos contemporâneos e que entenda um pouco melhor o que acontece nesses espaços de sociabilidade. Por muitas vezes, o jogo tenta abrir o debate para discussão de democracia, como The Last of Us 2. Mas há grupos do Discord que são absolutamente nazistas e podem até se posicionar contra um determinado personagem. Existe um impacto que o game tem, mas não consiste em criar coisas ruins. Esses espaços horríveis foram criados por não haver lei, tampouco educação e regularização – e precisamos de ambos.
Temos Paulo Freire. Um dos maiores educadores, quiçá o maior, que se adequa aos nossos tempos, é brasileiro. Ele falava havia muito que se não criássemos uma educação que falasse sobre nós e os nossos afetos, nós, como um país de minorias convivendo juntas, provavelmente acabaríamos criando diversos grupos opressores – e isso ajudaria a opressão a aparecer mais do que outras soluções. Com certeza, a saída da legislação é extremamente relevante e importante – e deveria ser maior.
Flávia Gasi fala a respeito de limites sobre liberdade de expressão e combate a discursos de ódio
É plausível considerar que há recorte de classe racial dentro da comunidade gamer, com destaque para quem se nega a reconhecer que quem usa um celular para jogar é gamer também?
Flávia Gasi: Basear-se no discurso tecnicista e elitista, sobre quem tem dinheiro para comprar um console ou um jogo muito caro, é algo que o marketing nos dizia ser bom – ter um determinado videogame é bom e você é uma pessoa cool e que tem coisas. Mas essa é uma visão apenas do capital e não diz do quanto você ama os jogos com os quais você se diverte, o quanto você se identifica com eles e quanto tempo você passa em determinados games.
Meu pai é muito fã de Candy Crush e joga muito. Ele é muito sério com relação ao jogo e tem dedicação e afeto a esse game maior do que quem joga League of Legends, por exemplo. Quem sou eu para dizer que o afeto dele a esse jogo não é legitimamente gamer porque o jogo é diferente? O que é esporte? É só golfe, por você precisar de um terreno, um taco específico, criar e/ou drenar um lago, ou também é futebol de rua? É isso o que deveríamos nos perguntar. Por que, no videogame, tendemos a dizer que o outro não é gamer o suficiente? A pergunta é sobre de onde isso vem, pois, para mim, isso não faz o menor sentido – mas, talvez, as pessoas não se perguntaram de onde isso veio.
Flávia Gasi destaca o papel que games podem ter para fortalecer comportamentos pautados por parâmetros democráticos e inclusivos
Texto: Amauri Eugênio Jr.