A posição contrária à agenda da diversidade é uma questão de escolha e poder das organizações – Entrevista com Janine Rodrigues
Janine Rodrigues, psicanalista, escritora e fundadora da Piraporiando, fala sobre a importância do apoio a pautas de diversidade e inclusão


Precisamos, mais do que nunca, intensificar a abrangência e a força de ações de promoção de diversidade, equidade e inclusão – de modo ainda mais estratégico. Essa diretriz passou a ter relevância ainda maior ao considerar-se a série de ataques de atores políticos, em particular nos EUA, contra qualquer iniciativa que objetive reduzir desigualdades raciais, de gênero e sobre quaisquer outros grupos politicamente minorizados.
Além de o segundo mandato de Donald Trump na presidência dos EUA ter como um dos eixos centrais a cruzada contra ações de diversidade, equidade e inclusão, a ponto de promover o apagamento e a censura a termos referentes à promoção da equidade em sites governamentais, pôde-se ver também a adesão das big techs e demais conglomerados a essa agenda – que representa retrocessos inquestionáveis à luta por direitos. Essas ações têm a companhia, inclusive, de supostas justificativas que têm como base uma suposta falta de viés racial e defesa do mito da meritocracia.
Contudo, além de essa agenda reacionária trazer consigo uma série de vieses discriminatórios e supremacistas, ela não se sustenta quando se fala em termos monetários. Para se ter uma ideia, a edição 2023 do relatório Diversity Matters (A Diversidade Importa), da McKinsey, mostra que empresas que aplicavam parâmetros de diversidade, equidade e inclusão em suas respectivas estruturas eram 39% mais propensas a ter melhor desempenho financeiro em comparação com outras organizações.
Janine Rodrigues, psicanalista, escritora e fundadora da Piraporiando, organização voltada à promoção de educação antirracista e de ações para promoção de diversidade e inclusão em empresas e escolas, falou nesta entrevista sobre tópicos como o combate de agenda inclusiva e antirracista mesmo diante de evidências que mostram justamente a importância de fortalecê-las (spoiler: isso não se trata apenas de falta de informação). Além disso, a fundadora da Piraporiando destaca também a importância de agir de modo estratégico para defender ações com finalidade inclusiva. Idem de qual modo o ISP e OSCs podem atuar para fortalecer ações de diversidade, equidade e inclusão. Confira o diálogo a seguir.
Como a gente pôde ver nas últimas semanas nos EUA, iniciativas de empresas e de esferas governamentais voltadas à promoção de equidade, diversidade e inclusão foram encerradas. Uma das justificativas era supostamente a valorização do mérito. Por que partir dessa lógica não tem respaldo na realidade?
Janine Rodrigues: A questão da meritocracia não faz sentido e isso não é uma questão só de opinião. EUA e Brasil têm inúmeras pesquisas sobre como o racismo é uma barreira de entrada, seja para o trabalho, pesquisa, ciência, academia, promoção e ampliação da carreira profissional. É uma decisão que não tem respaldo e embasamento para, agora, ter essa tentativa de retroceder sobre o que já se havia avançado. Não estávamos ainda no mundo ideal, mas houve avanços pelo menos no reconhecimento mais significativo do racismo como uma barreira de ascensão, avanços e oportunidades.
Este é o principal ponto: a meritocracia é irreal, pois não partimos dos mesmos lugares histórica, social e economicamente. Como uma sociedade pode considerar apenas isso para todos os seus cidadãos terem oportunidades? Isso não faz sentido e não se sustenta. Se isso de fato vigorar, será por força e poder. Quem tem mais poder – econômico e social -, infelizmente, muitas vezes, faz valer a sua decisão por força, mas não por embasamento.
O que explica a abordagem de quem defende o fim de programas de diversidade, equidade e inclusão mesmo que as evidências apontem o contrário?
Janine Rodrigues: Esse é um ponto fundamental. É necessário haver cuidado com uma certa ingenuidade em relação ao racismo. Pode parecer que pessoas ou estruturas racistas na sociedade surgem por desconhecimento, falta de informação ou não compreensão de agenda. Após tantos dados e comprovações do efeito positivo e benéfico da diversidade e do antirracismo, por que ainda assim muitas empresas e organizações ainda são tão resistentes a ela?
Isso importa para não haver postura ingênua em relação ao tema. O racismo não é uma questão de desconhecimento e de falta de educação e informação. Se fosse, talvez a solução seria resolvida com educação antirracista séria, embasada e ampla – aí, veria-se rapidamente o resultado disso acontecer. A educação antirracista é, sim, fundamental, pois existe uma grande parcela de pessoas e de instituições não se posiciona por falta de letramento. Mas há um número muito significativo de pessoas e de organizações, dentro e fora da política, que sabem o que fazem. Elas sabem quais serão as suas escolhas, entendendo que são racistas.
Não é uma questão de desconhecimento, pois senão dados e pesquisas seriam suficientes. Mas a escolha é por ignorá-los pelo fato de que se pode exercer poder. Isso é por ter poder capital, social e cultural para se colocar acima da ciência e da pesquisa. Precisamos entender isso. Senão, acharemos que o racismo é apenas uma questão de falta de informação. O racismo é, sobretudo, também uma escolha. Pessoas e empresas sabem o que fazem. Para mim, o que explica a posição de organizações contrárias a essas agendas é que se trata de uma questão de escolha. É querer prosperidade, inovação e ampliar riqueza e poder para os iguais e quem reconhece como os seus pares.
Janine Rodrigues fala sobre a importância de haver abordagem estratégica e organizada de movimentos antirracistas para o desenvolvimento de ações voltadas à promoção de diversidade, equidade e inclusão
Diante da influência do contexto político nos EUA, como sociedade civil, ISP e o poder público podem atuar podem atuar para incidir sobre a necessidade e a urgência de políticas de diversidade e inclusão para combate às desigualdades sociais?
Janine Rodrigues: Considero que os avanços dos nos últimos dez anos trouxeram boas perspectivas de aliados na esfera pública e na filantropia. No caso, aliados que estão fazendo um trabalho de base e entendendo o seu posicionamento ao longo do tempo, independente de quem estiver no poder. A nossa agenda demanda por atenção constante, estejam direita ou esquerda no poder. Ela não é facilitada a depender dessas trocas de poder. Considero essa também outra ingenuidade: quando achamos que a mudança que temos – e ainda bem que temos e vivemos em uma democracia – será a salvação da pátria por si só, isso é muito perigoso. Isso porque atribuímos ao outro um poder de decisão e de estratégia que precisa ser nosso, da população negra, de maneira constante. Óbvio, a depender de quem estiver no poder, as coisas podem se complicar muito.
Considero, então, que temos ótimos exemplos no Brasil de instituições e de organizações que entendem o seu poder social e capital – e estão fazendo a diferença. Pode-se ver aí como exemplo o número de programas e projetos liderados por pessoas negras, e aqui incluo também pessoas indígenas, fomentados por essas organizações. Isso é motivo de muita celebração: temos problemas, mas entendo também que é importante celebrarmos as conquistas. Precisamos também celebrar a própria criação do Ministério dos Direitos Humanos e do Ministério da Igualdade Racial. Primeiro, isso é resultado do movimento negro, dos movimentos sociais e de base. Claro, precisamos reconhecer que há uma liderança, uma presidência, que tomou a ação de criar os ministérios. Mas isso é fruto de um movimento que já existe há muitos anos.
Isso é fruto também das instituições que vieram antes, como Senapir e Secadi, e do trabalho de pessoas que estão na linha de frente. Quando falo em linha de frente hoje, não é apenas figurativamente: é sobre pessoas que batalharam muito e continuam na linha de frente. Aí, quando se veem instituições e organizações que se aliam verdadeiramente, independente se o governo é de direita ou esquerda, elas seguem a agenda com a educação antirracista, o antirracismo e a população negra. Essa é a agenda que precisamos fomentar e manter.
É correto pensar que precisamos também nos inspirar nos ensinamentos de figuras de referência para mostrarmos, por exemplo, a distorção da pauta identitária?
Janine Rodrigues: O identitarismo toca em um ponto no qual o branco não se reconhece como identidade ou raça por achar que é a regra – quem tem raça é o outro. Há um incômodo em muitas áreas, seja de serviços, produção ou acadêmica, por ver pessoas negras ascendendo e produzindo mais. Não apenas isso: tendo também a sua produção reconhecida, utilizada e reverberada como referência. Quando se fala de perda de privilégio, os incômodos aumentam ainda mais, pois cotas ainda são lidas como privilégios para pessoas negras em vez de reparação. Mas, quando se apresentam dados e mostram que, em uma entrevista de emprego ou um edital, as pessoas brancas têm as maiores oportunidades de usufruir daquilo, não se trata de uma questão de privilégio ou de identidade.
Somos e temos habilidades e competências plurais. É importante destacar que nem todas as pessoas negras serão educadoras do antirracismo. Empresas, organizações e escolas precisam entender que somos plurais e diversos. Há, por exemplo, em um determinado grupo, uma pessoa negra para quem se atribui a responsabilidade de um projeto ou programa antirracista – como se pelo simples fato de ser negra, ela tivesse competência para criá-lo. Isso é racismo, pois quando alguém desconsidera as subjetividades de uma pessoa e a vee como igual à totalidade do grupo ao qual pertence, logo, uma pessoa negra é igual a qualquer outra pessoa negra? Não, assim como uma pessoa branca também não é igual a todas as outras.
Parece que há apenas uma leitura de habilidade e competência para as pessoas negras e todo mundo tem que ter aquela habilidade e competência. Isso é muito violento. Quando pensamos em identidade, há um incômodo em pessoas brancas, pois elas estão, de maneira ainda muito simbólica e lenta, perdendo alguns privilégios. Elas já não são mais as únicas em alguns espaços e considero que as universidades são os grandes exemplos. Houve aumento enorme de pessoas negras que entraram nas universidades e concluíram cursos de medicina, direito, entre tantas outras áreas. Penso no seguinte: pode um branco ouvir, ser liderado, medicado ou defendido juridicamente por um negro? O branco está preparado para isso?
Janine Rodrigues fala sobre a resistência de parcela da população nã0-negra em reconhecer profissionais e lideranças negras como sujeitos aptos a produzir conhecimento e desenvolver estratégias
Trata-se de uma questão de disputa de imaginário e de, ao mesmo tempo, trabalhar por um mundo mais inclusivo que vá na contramão do que setores reacionários, extremistas e supremacistas querem impor?
Janine Rodrigues: Exatamente. Lembrando também que há diversos potenciais aliados a essa agenda na escola. Essas crianças, adolescentes e jovens deveriam, nesta fase da vida, ter a oportunidade de construir um olhar sobre a agenda antirracista de maneira muito mais próxima – e não apenas como algo pontual, pois sequer sabem do que é falado. Isso porque, por muitas vezes, ainda é uma agenda da pessoa negra – não uma agenda social como um todo.
Os principais aliados que temos são pessoas que se aproximaram da agenda porque tiveram, em algum momento da vida, a oportunidade de se relacionar com ela de maneira mais próxima – de alguma maneira, isso começou a fazer parte da vida dessas pessoas. Não foi porque um dia elas acordaram e decidiram ser antirracista. Os espaços de encontro são fundamentais. Quais são os espaços de encontro onde essa agenda una e aproxima a população negra de outras pessoas negras que estão fazendo outras coisas e estão, à sua maneira, também nessa agenda? Há muitas formas de ser antirracista e de ser uma pessoa negra que está atuando em prol dessa agenda.
Não é apenas quem está dando formação ou produzindo conteúdo – essa é uma das formas. Uma pessoa negra que conseguiu estudar e se formar na área que queria, que trabalha na área que gostaria e tem uma vida digna com a sua família, a vida dela, por si só, já é parte de uma luta antirracista. Isso porque ela está construindo imaginários, perspectivas e possibilidades outras que, se talvez não fossem esses os resultados que ela obteve, outras pessoas que estão vindo depois dela também não conseguiriam.
Janine Rodrigues fala sobre a importância da ancestralidade na trajetória de lideranças negras e como elas podem ser exemplos para as próximas gerações
Entrevista: Amauri Eugênio Jr.