Analista de comunicação e produtor de conteúdo do site da Fundação Tide Setubal
Jornalismo para ampliar as portas da percepção social
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: Beatriz Reis/Preto Império Mais do que informar a população, a imprensa funciona também como termômetro social para identificar quem tem acesso a espaços de poder e decisão. Na média, quem é ouvido com maior frequência tem perfil bem definido e hegemônico. Segundo levantamento do Grupo de Estudos […]
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: Beatriz Reis/Preto Império
Mais do que informar a população, a imprensa funciona também como termômetro social para identificar quem tem acesso a espaços de poder e decisão. Na média, quem é ouvido com maior frequência tem perfil bem definido e hegemônico. Segundo levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), mais de 70% dos colunistas dos principais jornais do Brasil são homens, enquanto esse indicador ultrapassa 90% quando se fala em pessoas brancas. Ainda, outro estudo mostrou que a quantidade de apresentadores de televisão pretos e pardos era inferior a 4%.
Diante desse cenário, a ocupação desses espaços se tornou uma medida estratégica para ampliar o protagonismo e a representatividade das periferias urbanas e de grupos minorizados. Esse é o objetivo de veículos independentes e das periferias urbanas, assim como ocupar espaços na grande imprensa, que têm presença hegemônica de pessoas brancas.
Para Pedro Borges, cofundador e editor-chefe do portal Alma Preta, a população negra e das periferias urbanas é representada de maneira estereotipada por veículos hegemônicos. “É necessário haver uma mídia que traga representatividade e novos olhares e vozes, a partir de uma perspectiva editorial diferente. Esses canais de comunicação se propõem a fazer algo que deveria ser papel do jornalismo: informar para transformar a sociedade. Precisamos de comunicação que mobilize as pessoas e as façam sair de lugar de conforto diante de uma realidade tão cruel e perversa como a brasileira.”
Essa lógica é endossada por Evelyn Vilhena e Flavia Lopes, do site Desenrola e Não Me Enrola. Para a dupla, vivências e olhares dos integrantes do portal são importantes para evidenciar a complexidade de sujeitos e territórios periféricos. “Isso é refletido no público que passa entender a importância do seu lugar e a consumir conteúdos que fomentam discussões sobre as transformações e potência de conhecimento e luta dos sujeitos e movimentos que atuam nas periferias da cidade.”
Ocupar e resistir/existir
O trabalho desenvolvido por tais veículos chamou a atenção para a importância que a pluralidade e o protagonismo de pessoas negras e periféricas têm para o enfrentamento a diversos tipos de desigualdade. Alguns exemplos disso são a entrada de Semayat Oliveira, jornalista e cofundadora do site Nós, Mulheres da Periferia, no time de jornalistas da TV Cultura para levar o modus operandi da equipe do site para a televisão aberta; e as participações de Pedro Borges em reportagem da CNN Brasil sobre a construção de estereótipos e a violência contra a população negra e na bancada do programa Roda Viva, da TV Cultura, no qual o rapper Emicida foi entrevistado.
O Nós, Mulheres da Periferia desenvolve linha editorial pautada pelo protagonismo de mulheres das periferias urbanas e na quebra de estereótipos comuns na grande imprensa. De acordo com Jéssica Moreira, cofundadora do portal, o ingresso de Oliveira na TV Cultura é uma maneira para “chegar ainda mais nas bordas e para aquelas que ainda não têm pleno acesso aos meios digitais” – ou seja, “chegar onde a hashtag não chega”. “A entrada de Semayat na TV Cultura coloca o modo e metodologia criados no Nós, Mulheres da Periferia em um canal aberto de grande audiência, nos ajudando no desafio já dito de chegar a mais lares e mais mulheres periféricas, que ainda se informam majoritariamente pela TV.”
O cofundador do Alma Preta, que é um dos autores do livro AI-5 50 Anos – Ainda não Terminou de Acabar, finalista do 62° Prêmio Jabuti, considera “incríveis” o reconhecimento do trabalho e a consequente chegada à mídia tradicional, mas vê como fundamental o reconhecimento junto a outras mídias das periferias urbanas, movimentos sociais e pessoas de tais territórios. “Fico contente por saber que o meu trabalho está sendo reconhecido em várias dessas fronteiras, mas a mais importante é a que conseguimos e temos trabalhado para conseguir ainda mais: o reconhecimento do nosso pessoal e do nosso povo.”
No centro da sociedade
Outra forma para ajudar vozes de grupos minorizados a chegar a mais espaços é apoiar o trabalho deles. Esse é o objetivo de iniciativas como o #NoCentroDaPauta, projeto da Fundação Tide Setubal que visa fomentar o protagonismo de atores periféricos e enfrentar desigualdades diversas nos territórios de atuação. Em 2020, as iniciativas participantes foram, além de Alma Preta, Desenrola e Não Me Enrola e Nós, Mulheres da Periferia, os coletivos Embarque no Direito, Periferia em Movimento, Preto Império e TV Grajaú.
Jéssica Moreira considera que ações desse tipo são fundamentais para a manutenção de veículos independentes e das periferias urbanas e para o trabalho em rede entre tais coletivos, o que permite o público vê-los como parte do ecossistema comunicacional. “Com certeza, nos dá fôlego para dar continuidade ao nosso trabalho como formadores e disseminadores de opinião sempre atentos em trazer vozes que antes estavam marginalizadas.”