Nordestina, caipira, paulistana
Em artigo, o antropólogo fala sobre os caminhos da cultura caipira e o significado das festas juninas.
Não há, ó gente, oh não
Luar como este do sertão…
Oh que saudade do luar da minha terra
Lá na serra branquejando
Folhas secas pelo chão
Esse luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade
Do luar lá do sertão
Luar do Sertão é uma das composições mais populares de nosso cancioneiro popular. Ela fez sucesso em 1914 e desde então passou a integrar o pequeno grupo de composições que atravessaram o século XX e até hoje fazem parte de nosso repertório pessoal, mesmo entre aqueles que não se interessam tanto por música. No começo do século XX, nos tempos de uma primeira onda de música sertaneja, Luar do Sertão fez sucesso no Rio de Janeiro e em São Paulo. Seu sucesso continuou e dentre suas várias re-gravações, em 1936 ela seria receberia o registro na voz do cantor e compositor paulistano Paraguaçu, que, apesar do nome, se chamava Roque Ricciardi.
Sua letra é toda construída a partir do contraste entre a vida na cidade, vista como fria e desumana, e a vida no sertão, vista como cheia de coisas belas e boas das quais se deve sentir saudade. Luar do Sertão, desse modo, mais que um canto de saudade, chega a ser um canto de desagravo de um sertão idealizado no qual a natureza e os humanos viveriam intimamente relacionados e que seria muito diferente da ferocidade da vida urbana, na qual os humanos se encontrariam divorciados da natureza. Assim, ao longo dos anos em que o Brasil se urbanizou intensamente, Luar do Sertão se consolidou como uma obra que embala nossa memória afetiva para um sertão perdido e, tantas vezes, desvalorizado e estigmatizado do ponto de vista da modernidade urbana.
Mas qual é o sertão cantado nessa música? Se tivermos em mente que o autor da letra é o poeta popular Catulo da Paixão Cearense que, apesar do nome nasceu no Maranhão, e que a parte musical se deve a João Pernambuco, um dos nossos principais violonistas, a resposta fica evidente. Em Luar do Sertão e em toda essa onda sertaneja dos anos 1910 e 1920, a referência é o sertão nordestino.
O que embalou o sucesso da canção em São Paulo, então, teria sido a lembrança saudosa desse sertão nordestino? Antes de responder, é preciso nos lembrarmos de que também era chamada de sertão toda a região colonizada sob influência de São Paulo – a chamada Paulistânia, que de modo amplo inclui o território dos atuais estados de SP, PR, MG, MS, MT, GO. Um outro sertão, certamente; trata-se aqui daquele sertão no qual se formou e se reproduz até hoje a cultura caipira. A expansão da cidade São Paulo trouxe para ela muita gente do mundo caipira. Além disso, ao longo dos anos 1920 formou-se nas terras paulistanas uma outra música sertaneja, esta derivada das tradições musicais da cultura caipira. Muitas dessas músicas sertanejas-caipiras cantavam com saudade e em desagravo uma vida rural, também idealizada, e muito diferente da vida na cidade. Luar do Sertão, desse modo, se integrou a esse novo repertório e passou a evocar também o sertão caipira.
Os tempos passaram e São Paulo continuou a receber muitos migrantes dos dois sertões. Luar do Sertão e outras canções continuaram a evocar todos eles, agora irmanados pelo contraste com as coisas da cidade grande modernizada.
Será que, na cidade, a vida desses sertões sumiu por inteiro, ficando só na lembrança saudosa e idealizada? Não, se considerarmos que até mesmo nas mudanças mais intensas de nosso modo de viver, nenhum de nós consegue pular da própria pele para, de repente, se transformar numa pessoa inteiramente outra. Nas mudanças, então, há permanências. Mesmo com a vida transformada, reproduzimos velhos hábitos, valores, gostos, sentimentos, preferências, cantos, lembranças, expressões, histórias, modos de falar, maneiras de se relacionar com o outro e mais uma infinidade de coisas que podemos resumir numa só expressão: patrimônio cultural.
Pois bem, em toda a periferia paulistana, e de modo especial em São Miguel Paulista, aspectos do patrimônio cultural nordestino se entrecruzaram com aspectos do patrimônio cultural caipira para formar, no interior da metrópole, um outro modo de vida. Os migrantes de outras regiões e os diversos imigrantes, que também marcam a vida paulistana e de São Miguel, relacionam-se no dia a dia com esse encontro caipira-nordestino. O exemplo de Luar do Sertão, portanto, aponta para um universo de trocas muito mais vasto e profundo.
É chegada a hora das festas juninas dedicadas aos santos católicos São João, São Pedro e Santo Antônio. De origem portuguesa, essas festas ganharam outros significados em nossa história. No mundo rural, associam-se ao tempo da colheita. Na cidade, elas reascendem e reafirmam os elos que emendam nossas vidas de hoje com a vida no Brasil de forte influência rural: celebram, portanto, o laço do presente com o legado de nossos antepassados.
Estas são festas importantes no nordeste e também no mundo caipira. Mas o que queremos salientar é que elas são também festas de todos aqueles que, no cotidiano da metrópole, se deixarem encontrar com esses elementos de nosso patrimônio que formaram nossa pele e nossa alma, mas que, no entanto, parecem encobertos pelo ritmo acelerado da vida paulistana. Evocado pelas festas e celebrado, todo esse patrimônio pode encontrar caminhos para, a partir da saudade idealizada, encontrarem meios de afirmação no curso de nosso dia-a-dia.