Analista de comunicação e produtor de conteúdo do site da Fundação Tide Setubal
O viés racial das desigualdades
Dos 165 autores publicados entre 1990 e 2004 pelas principais editoras do Brasil, 93,9% eram brancos, segundo levantamento da pesquisadora Regina Dalcastagnè. Nos livros, as pesonagens brancas aparecem dez vezes mais que as negras, e em 56,6% dos romances, não há nenhuma personagem não-branca. A disparidade racial no mercado editorial e na representação das personagens […]
Dos 165 autores publicados entre 1990 e 2004 pelas principais editoras do Brasil, 93,9% eram brancos, segundo levantamento da pesquisadora Regina Dalcastagnè. Nos livros, as pesonagens brancas aparecem dez vezes mais que as negras, e em 56,6% dos romances, não há nenhuma personagem não-branca. A disparidade racial no mercado editorial e na representação das personagens literárias reflete um padrão de nossa sociedade. A desigualdade no Brasil tem cor.
No país, os negros representam 54% da população, segundo dados de 2015 da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). No grupo dos 10% mais pobres, os negros representam 75% das pessoas, mas entre o 1% mais rico, somam apenas 17,8% dos integrantes.
Embora nos dados o viés racial da desigualdade seja claro, a teoria de que no Brasil a desigualdade é somente social, e não racial, ainda é defendida por muitos. A tese sustentada é de que, se a população negra possui menor renda, piores trabalhos e menor escolaridade, isso se dá apenas por ocuparem historicamente posições sociais mais baixas, sem que haja qualquer conexão com sua cor.
A crença de que o Brasil escapou do racismo e da discriminação racial vista em outros países é um dos pilares do mito da Democracia Racial, teoria que surgiu no final do Segundo Império e defendia que, graças à miscigenação e a um espírito de tolerância e harmonia, aqui haveria a ausência de preconceito e discriminação racial. Deste modo, enquanto a mobilidade social dos brasileiros poderia ser reduzida por vários fatores, como sexo e classe social, a discriminação racial seria considerada irrelevante.
O mito da Democracia Racial foi posto por água abaixo por diversos antropólogos e sociólogos no século XX, e passou-se a reconhecer que houve uma política de incentivo ao branqueamento da população na América Latina, baseada na presunção da superioridade branca. Mas o racismo persiste, reproduzido em uma estrutura de privilégios.
“Hoje vemos outro mito, o da meritocracia, que olha para as situações de forma estática, não percebendo a bagagem histórica de cada grupo, os pontos de partida e as características das trajetórias”, afirma Daniel Teixeira, diretor de projetos do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades). “A meritocracia é, na verdade, uma faceta do racismo institucional, de medidas que são aparentemente neutras mas que retroalimentam a exclusão dos negros dos espaços de poder e de decisão”.
Nem sempre escancarada, a discriminação racial exerce seu poder sobretudo pela criação de obstáculos, muitas vezes imperceptíveis aos detentores de privilégios. Tais barreiras podem ser concretas, como maiores dificuldades de acesso a saúde, educação de qualidade ou boas posições profissionais, ou mesmo psicológicas, como a autoexclusão ou o sofrimento psíquico, fruto do racismo.
Menos renda e piores trabalhos
No mercado de trabalho, por décadas sustentou-se a tese de que os negros ocupariam posições de menor prestígio devido à falta de profissionais qualificados. Mas nos últimos 15 anos, graças ao avanço das políticas afirmativas de ingresso no ensino superior, o argumento da falta de mão de obra qualificada tornou-se mais difícil de sustentar.
O estudo “A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras”, divulgado este ano pela Oxfam, deixa claro como as desigualdades raciais no mercado de trabalho de fato existem. Segundo dados levantados pela ONG, negros e mulheres tendem a ganhar menos que brancos e homens, mesmo nas mesmas carreiras e posições hierárquicas. Dentre os negros que concluíram o ensino médio, o rendimento é, em média, de R$ 1.497,00, o que significa 76% do rendimento médio de brancos da mesma faixa educacional. Para o ensino superior, negros com diploma ganham 75% do que ganham brancos com diplomas – R$ 3.144,00 e R$ 4.185,00 em média, respectivamente.
Empresas começam a adotar programas para tentar criar ambientes mais diversos, mas mesmo nestes programas, muitas vezes o racismo é negado. Uma pesquisa do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e do Instituto Ethos analisou as 500 maiores empresas brasileiras em 2016, e enquanto 41% delas têm políticas para pessoas com deficiência, 28% incluem as mulheres e apenas 8% têm ações afirmativas para negros. Outro problema presente em ações deste tipo é o fato de limitarem-se ao momento da contratação dos funcionários, sem quebrar barreiras que prejudicam o seu desenvolvimento profissional.
Ainda segundo o estudo do BID e do Instituto Ethos, somente 4,7% dos cargos executivos são ocupados por profissionais negros, contra 94,2% de brancos. Entre funcionários acima apenas de estagiários e trainees, o número de brancos é de 62,8% e de negros, 35,7%. Ao olharmos para posições hierárquicas mais altas, vemos que 72,2% dos cargos de supervisão são ocupados por profissionais brancos, e 25,9% por negros.
As barreiras e o racismo institucional não ocorrem apenas no mundo do trabalho. Segundo números da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2015, a discriminação no sistema público de saúde é mais sentida por negros do que brancos. De toda a população branca atendida pelo SUS, 9,5% saem da unidade hospitalar com o sentimento de discriminação, percentual menor que entre pretos (11,9%) e pardos (11,4%). Os números ainda revelam que negros têm desvantagem em todos os quesitos pesquisados pela PNS: consultam menos médicos e dentistas, têm menos acesso a remédios receitados no atendimento, tiveram mais dengue, têm mais problemas de saúde que impedem alimentação, têm menos planos de saúde (exceto quando o empregador paga a conta, outro sinal de desigualdade), usam menos escova, pasta e fio dental.
Outro fator preocupante é a violência contra negros, que avançou entre 2005 e 2015. Enquanto houve um crescimento de 18,2% na taxa de homicídio de negros, a mortalidade de não negros diminuiu 12,2%. O Atlas da Violência 2017, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, chama a situação de violência seletiva, e muitos do movimento negro e de organizações do terceiro setor afirmam se tratar de um caso de genocídio.
“Historicamente, temos uma violação de direitos sofrida de forma exponencialmente maior pela população negra. É um problema muito grave, mas ainda bastante incompreendido e não contemplado nas políticas públicas para que elas, de fato, se tornem para todos, atendendo o impacto da ausência de direitos para cada grupo que faz parte da sociedade. Não é uma questão apenas dos negros, mas sim da sociedade brasileira. Precisamos de um projeto de desenvolvimento que não deixe metade de sua população de fora”, diz Daniel Teixeira.
Desigualdades socioespaciais e a população negra
O viés racial das desigualdades brasileiras também está presente quando falamos de moradia. Segundo dados da última Pnad, pretos ou pardos estavam 73,5% mais expostos a viver em um domicílio com condições precárias do que brancos. Embora os números tenham melhorado na última década, a população negra ainda é a mais prejudicada: a porcentagem de lares negros atendidos por saneamento subiu de 44,2% para 55,3% desde 2005, enquanto o atendimento em lares brancos aumentou de 64,8% para 71,9% no mesmo período.
Engana-se quem pensa que os números refletem apenas o fato de a população negra ser também a mais pobre, sem que haja um viés racial na desigualdade. Na pesquisa de doutorado que resultou na tese “Segregação Racial em São Paulo: Residências, redes pessoais e trajetórias urbanas de negros e brancos no século XXI”, o sociólogo Danilo França argumenta que há segregação residencial por raça nos diferentes estratos sociais da população paulistana. Na pesquisa, Danilo optou por focar-se em pessoas brancas e negras de classe média, com situações financeiras que lhes dariam a oportunidade de escolher em que bairro viver. Foi observado que embora os indicadores de segregação racial sejam menores entre os pobres, com negros e brancos vivendo em proximidade, os indicadores de segregação residencial cresciam significativamente nas camadas da população com maior poder aquisitivo: os negros de classes médias e altas residiam mais próximos dos pobres, enquanto os brancos de mesma posição social moravam nas áreas mais privilegiadas da cidade.
“Outro ponto para o qual é importante chamar a atenção é que, ao fazer um recorte das áreas nobres, vemos mais brancos pobres residindo lá do que negros de qualquer nível social. São áreas marcadas não apenas por características socioeconômicas dos moradores, mas também pelo fato de estes moradores serem brancos”, afirma Danilo.
Segundo o sociólogo, como as pessoas tendem a construir relacionamentos e frequentar locais no entorno das regiões da cidade em que residem, a sobreposição desses fatores fará não só com que as áreas nobres sejam locais de moradia majoritariamente dos brancos, mas também áreas de sua circulação e construção de relações. “Eu diria até que isso se torna concentração de referenciais identitários, levando os brancos a terem maior familiaridade com locais que estão nessas áreas nobres. Assim, um cinema da Avenida Paulista é super familiar para um branco que mora nos jardins, mas não é tão familiar para um negro que mora em São Miguel Paulista. A soma desses fatores ajuda a constituir uma coesão do grupo, e isso dificulta ainda mais a inserção dos negros nessas camadas sociais”, diz Danilo França.