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Sobre origens e perspectivas

Programas de influência

28 de novembro de 2019
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Por Amauri Eugênio Jr. / Fotos: Gsé Silva / DiCampana Foto Coletivo
 
 
Quem viu de relance o que estava acontecendo na tenda central da Praça do Morumbizinho, em São Miguel Paulista, em 8 de novembro, poderia imaginar ali havia um evento que flertava com a banalidade – e o clima frio que fazia naquele dia reforçava essa impressão. Mas quem estava dentro do espaço pôde presenciar algo que seguia na contramão dessa premissa: o que se passava ali era uma espécie de culto às origens e às raízes, e um chamado para a quebra de paradigmas diversos, inclusive culturais.
 
A tenda central instalada na Praça do Morumbizinho estava recebendo mais do que atrações da edição de 2019 do Festival do Livro e da Literatura de São Miguel. Naquela noite, a escritora e slammer Patrícia Meira e o trio formado pela escritora Débora Garcia, idealizadora do Sarau das Pretas; o escritor Milton Hatoum, três vezes vencedor do Prêmio Jabuti; e Rafaela Deiab, coordenadora do departamento de Educação da Companhia das Letras, que fez a mediação com o público do bate-papo com Garcia e Hatoum.
 
Patrícia Meira abriu a noite apresentando o seu novo livro, Emaranhado, e recitando poemas em meio à interação com o público e a falas sobre a sua trajetória no mundo da literatura. Ao falar dos percalços enfrentados para conseguir se estabelecer no mercado literário, a autora e slammer relembrou o modo como sua mãe encarava a relação que ela tinha com a produção artística: a matriarca achava que escrever “não daria dinheiro e futuro para ninguém”.
 
Mas a artista conseguiu mostrar que a história poderia ser diferente. “Certo dia perguntei para a minha mãe se ela se lembrava de quando disse que a literatura não me daria nada. Ela me disse: ‘eu me lembro, mas tenho muito orgulho de você por isso, pois você vive da sua arte, ajuda a mim e ao seu pai, e vive disso.’ Contei para ela que há poesias minhas nos livros de língua portuguesa das escolas municipais em São Paulo.” E, ao completar a explicação, Patrícia Meira ressaltou o seguinte: “isso é muito difícil, pois a gente normalmente encontra [apenas] poesias de escritores famosos e de pessoas que morreram em livros escolares.”
 
 
 
Patrícia Meira fala sobre a sua trajetória e o livro Emaranhado (Gsé Silva / DiCampana Foto Coletivo)
 
 
A origem importa… 
 
Na sequência da participação emotiva de Patrícia, o duo composto por Débora Garcia e Milton Hatoum continuou, com a mediação de Rafaela Deiab, a ode às origens conforme cada um partia pela própria perspectiva.
 
Débora, que além de ser escritora e idealizadora do Sarau das Pretas, trabalha como assistente social em Suzano, cidade da Região Metropolitana de São Paulo, onde atua no atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica.
 
O primeiro contato da escritora com a literatura não foi o que se pode chamar de amor à primeira vista: tratava-se de uma relação mecânica, muito pelo fato de a dinâmica na época escolar ter sido desenvolvida de modo pouco convidativo, seja pela organização de espaços como a biblioteca, seja pelo modo como as aulas eram conduzidas. “A literatura é muito mais do que isto: deve haver diálogo e transformação, mas eu tinha a literatura [apenas como algo válido] para o vestibular. Embora eu lesse muito, não era uma leitora, pois a literatura não se comunicava comigo.”
 
Como é de se imaginar, a chave literária só foi virada para Débora muitos anos depois. Após ter se formado em serviço social, ela aproximou-se de saraus literários em territórios periféricos por meio de um coletivo em Suzano. Esse fato abriu um novo horizonte para ela, uma vez que passou a ver o trabalho de escritores como algo próximo de sua trajetória – antes, tratava-se de uma atividade idealizada e colocada em um pedestal.
 
 
Débora Garcia fala sobre como a leitura a ajudou a ressignificar a sua trajetória (Gsé Silva / DiCampana Foto Coletivo)
 
 
Além disso, ter conhecido a obra de Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo, lhe possibilitou entender que a literatura pode ser importante para dar protagonismo a vozes historicamente colocadas à margem. “A literatura não era para nós, pessoas negras, pois passei a minha vida escolar toda sem conhecer um autor negro ou discutir a questão racial na literatura. Ela também não era sobre nós, pois na literatura clássica brasileira, os personagens negros não têm complexidade e são estereotipados: ou é a mulata do samba, a prostituta, e o ladrão. E quando conheci a história de Carolina, eu me encantei com a história dela e comecei a pensar que, por meio das minhas narrativas, [poderia] transformar as vidas das pessoas como ela transformou a minha.”
 
Já no caso de Hatoum, o contato com o universo literário teve outra perspectiva. Ainda na infância em Manaus (AM), o autor encantava-se com as histórias contadas pelo avô, um imigrante libanês radicado no Brasil – “eu esperava ansiosamente os domingos para ouvir as histórias do meu avô, elas me encantavam e me levavam para outro mundo.”
 
Outro ponto a ser considerado diz respeito à formação escolar: enquanto a relação que Garcia teve com a literatura à época havia sido burocrática e alheia à realidade, no caso de Hatoum, a formação como leitor e alguém apaixonado pela literatura ocorreu nos anos 1960, quando estava na escola pública – aqui vale uma ressalva: à época, o acesso à educação ainda não era ampliado para a população inteira a ponto de quase 40% das crianças naquele período serem analfabetas. Ainda, o autor traçou um paralelo entre o período, quando, de acordo com ele, crianças de classes sociais distintas iam à mesma escola, com os dias atuais, quando isso não acontece. “Em uma democracia de verdade, as crianças pobres convivem e estudam com os filhos dos ricos e da classe média. Assim é na França, Alemanha, Inglaterra, Espanha e em países desenvolvidos, e aí, sim, as oportunidades são as mesmas. Quando se fala em mérito, isso só existe quando as oportunidades são as mesmas.”
 
 
… E a perspectiva também
 
A reaproximação de Débora com o mundo literário e a sua descoberta enquanto escritora tem relação direta com o seu processo de autodescoberta e autoafirmação enquanto mulher negra, o que coincidiu com a produção da obra Coroações – Aurora de Poemas. “Quando comecei a escrever esse livro, eu estava em processo de aceitação e compreender a beleza da minha história, e fazendo transição capilar – não era só pela estética, mas era uma questão que oprimia. O último capítulo é uma exaltação da minha história: falo das mulheres negras, da exaltação ao meu povo. Hoje sou muito bem resolvida com isso.”
 
Ainda, outro ponto fundamental de sua obra está relacionado a retratar a condição da mulher, em especial por causa de seu trabalho com mulheres que dão entradas em pedidos de proteção por meio da Lei Maria da Penha. “Tenho lido muitas mulheres feministas. Por exemplo, Simone de Beauvoir é uma referência importantíssima, mas a referência assusta. Como vou transcrever isso [a obra dela] de forma que elas irão entender e como essa mensagem vai chegar? Procuro trazer as referências de leitura técnica e literária para reflexão nos espaços onde atuo e para cura acima de tudo. A literatura tem sido o ambiente de cura para mim.”
 
 
Milton Hatoum descreve a sua transição da arquitetura para a literatura (Gsé Silva / DiCampana Foto Coletivo)
 
 
Já para Hatoum, mesmo que o contato com o mundo das letras e das histórias o encantasse desde a infância, a entrada ocorreu relativamente tarde. O autor decidira estudar arquitetura e o fez na Universidade de São Paulo (USP), mas o contato com o geógrafo Milton Santos, um dos geógrafos mais importantes do mundo e que revolucionou o modo como a geografia era vista no Brasil, foi determinante para a mudança de rumo em sua carreira – e em sua vida. “Tive a sorte de ele ter sido o meu orientador para uma bolsa que ganhei do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Ele me dizia que eu não seria arquiteto, pois eu seria um arquiteto frustrado, e que deveria ser escritor. Perguntei para ele como seria escritor no Brasil e ele respondeu: ‘Bom, você pode ser professor. Depois você escreve’. Foi o que fiz: fui ser professor e [somente] depois comecei a escrever, pois é muito raro um professor viver de literatura no Brasil.”
 
A vivência como professor na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) deu a Hatoum experiência para começar a escrever – ele tinha 37 anos quando publicou o seu primeiro livro, Relato de um Certo Oriente. E é justamente a vivência o fator-chave citado pelo autor. “Incentivo as pessoas à leitura, pois na verdade, a gente só se liberta quando aprende e lê. Você deve entender o que está acontecendo e, para isso, precisa se informar para não ser enganado neste mundo de fake news. Este é o meu recado para os jovens.”

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