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Quem mais precisa da escola é quem recebe menos dela – Fundação Tide Setubal entrevista Mauricio Ernica

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27 de abril de 2021
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Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: Gsé Silva / DiCampana Foto Coletivo

 

 

O Brasil tem pouco ou quase nada a comemorar no Dia Mundial da Educação. Lembrada em 28 de abril, a data é uma oportunidade para, assim como nos demais dias do ano, a reflexão sobre os rumos da educação no país e sobre caminhos possíveis para torná-la de fato democrática e universal. A pandemia de Covid-19, inclusive, acirrou o debate feito por setores diversos da sociedade sobre o retorno ou não às aulas presenciais em meio ao pior momento da crise sanitária e humanitária.

 

Somam-se a esse aspecto dados que assustam quando vistos em conjunto. De acordo com estudo feito pelo Cebrap sobre a Covid-19, 4,3 milhões de alunos negros e indígenas ficaram sem atividades escolares desde a suspensão das aulas presenciais, por fatores como falta de acesso à internet ou ausência de equipamentos para assistir às aulas, enquanto cerca de 1,5 milhão de alunos brancos passaram pela mesma situação. Ainda, segundo o estudo Enfrentamento da Cultura do Fracasso Escolar, da Unicef, a evasão escolar decorrente da pandemia foi de quase 1,4 milhão de estudantes com idades entre 6 e 17 anos.

 

Tais dados reforçam um cenário que já era preocupante. Para se ter uma ideia, segundo o Indicador de Desigualdades e Aprendizagens (IDeA), a região Sudeste concentrava a maior proporção de municípios com qualidade alta de aprendizado em Matemática para o 5º ano (72%) – mas, desse total, 50% possuíam desigualdade alta de raça e apenas 6%, equidade. E tamanha disparidade tende a aumentar a pandemia de Covid-19: em artigo escrito para a Folha de S.Paulo, Michael França, doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Insper, apontou como a desigualdade educacional e social é reverberada na vida adulta: aproximadamente 4% de filhos de pais sem instrução conseguiram completar o Ensino Superior, enquanto era quase inexistente a relação entre pais que completaram a graduação e filhos sem instrução.

 

Para falar sobre essa realidade, quais reflexos esses aspectos poderão ter em curto e médio prazos e caminhos possíveis para reduzir disparidades educacionais, a Fundação Tide Setubal entrevista Mauricio Ernica. Ernica é professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), conselheiro consultivo da Fundação Tide Setubal e coordenador da equipe que desenvolveu o IDeA.

 

Confira a seguir a entrevista.

 

 

Como a pandemia intensificou as desigualdades no ensino, ao pensar nas redes pública e privada? Quais serão os danos consequentes pelo aumento dessas disparidades, em especial para jovens das periferias urbanas e com recorte de raça e gênero?

 

A primeira coisa a ter em mente é que todo o mundo vai perder com a pandemia e a interrupção das atividades escolares presenciais. As perdas são generalizadas e são muito diversas. Há um conjunto enorme de estudantes que terá, em sua história, pelo menos um ano e meio de suspensão de vida escolar presencial. Isso tem um impacto enorme sobre todos e em muitas dimensões: na sociabilidade, nas trocas intelectuais e culturais existentes na escola e na construção das subjetividades.

 

Se restringirmos a discussão à permanência e aos aprendizados curriculares, podemos prever que alguns grupos devem perder muito mais do que outros. Não sabemos exatamente o que acontecerá e não temos a dimensão disso, pois ainda não há dados. Podemos construir uma hipótese apoiada no que conhecemos sobre o sistema até 2019 e nas notícias ao longo desse período.

 

Vamos começar com o que tínhamos como escola até o ano letivo de 2019. Temos no Brasil um sistema de educação básica fortemente segregado social e racialmente. Por um lado, há o setor privado, que reúne, majoritariamente, famílias não apenas de maior renda, mas também que são mais escolarizadas e que dominam as ocupações do mundo do trabalho que exigem ensino superior – famílias que são, majoritariamente, brancas. As crianças e adolescentes dessas famílias também perderam, mas não só essas famílias possuem mais recursos para lidar com essas perdas como as escolas privadas, de modo geral, também têm melhores meios e mais flexibilidade para se ajustar aos desafios impostos pela pandemia.

 

 


Mauricio Ernica fala sobre o panorama da educação no Brasil

 

 

Por outro lado, no sistema público regular, onde aquele perfil de família praticamente não está presente, há uma parcela enorme de estudantes que simplesmente perderam o contato com a escola. Quem está mais exposto a esse risco de perda de vínculo com a escola são as pessoas com trajetórias escolares mais tumultuadas, com mais intercorrências e conflitos, que já seriam mais propensas à interrupção dos estudos e à reprovação. São justamente pessoas de famílias mais pobres, que têm mais necessidades e que agora se viram perdendo renda, precisando se desdobrar no mundo do trabalho, tendo que se ver com as novas necessidades impostas à vida familiar, que estão com a rotina doméstica de ponta-cabeça.

 

O que temos, então, é que os mais favorecidos terão melhores meios para lidar com os problemas enquanto que os grupos que mais precisam da escola – que mais dependem da escola para ter acesso aos saberes que ela transmite – serão aqueles grupos que mais ficarão mais afastados da escola e que terão menos condições para manejar esse problema. O que sairá disso? Seguramente, um sistema em que todos terão perdido, mas no qual alguns terão perdido muito mais do que outros. Não só aprendizagem, insisto, mas também a qualidade de sua relação com a escola e, mesmo, o vínculo com a escolarização.

 

Nós poderemos ter um retrocesso nos ganhos de permanência de estudantes na escola. Acho que as pessoas continuarão a terminar o Ensino Fundamental I, mas haverá perdas enormes a partir do Fundamental II e no Médio. Destaco ainda o problema da alfabetização, onde já tínhamos problemas: há uma parcela enorme das crianças que chegam ao final do Ensino Fundamental I não tendo competências leitoras bem desenvolvidas. Se tínhamos dificuldade para assegurar esses conhecimentos com o ensino presencial, como garantiremos isso no ensino remoto, sabendo que os grupos mais desfavorecidos é que devem sofrer muito mais com as consequências da pandemia? Então, quando voltarmos às atividades presenciais, teremos muita gente que permanecerá na escola, mas que terá aprendido pouco durante esse período e terá retrocedido em suas aprendizagens, o que prejudicará a qualidade da continuação de sua escolarização.

 

Há um discurso segundo o qual aprendizagem se recupera. Não estou de acordo, isso me lembra uma concepção bancária de educação. A aprendizagem não é que algo podemos parar e retomar quando der no ponto em que foi deixada. Há perdas que ficarão sempre como lacunas na história das pessoas. Há aprendizagens que serão esquecidas. E há outras perdas: de experiência escolar, convívio, relação com os outros, vínculo com a escola, relação com os saberes. E isso será mais grave para aqueles grupos que mais precisam da escola, que, paradoxalmente, são os grupos que, quando a escola está funcionando, são os mais desfavorecidos. Esse é o nosso paradoxo: quem mais depende da escola para ter acesso aos saberes é, relativamente, quem recebe menos dela quando ela funciona normalmente e é quem mais perderá durante a pandemia, quando suas atividades presenciais estiverem suspensas.

 

 

Quais reflexos o momento atual tende a deixar nos próximos anos e décadas?

 

Quero responder fazendo um recuo histórico. A partir da Independência, o Brasil foi construindo um sistema educacional de cima para baixo, a partir do Ensino Superior. Em associação ao Ensino Superior, também se definiu, nesse período, o Secundário propedêutico ao Superior. Esse sistema secundário-superior era destinado a formar internamente as elites locais, isto é, aqueles que ocupariam as posições dirigentes nos diferentes setores da sociedade: na economia, na política, sistema judiciário etc.

 

Somente muito depois, na República, é que haverá a expansão da educação para o conjunto da população, especialmente a partir dos anos de 1930. Em 1950 ainda não tínhamos mais da metade da população alfabetizada. E apenas comemoramos quase 100% das crianças no Ensino Fundamental no fim dos anos 1990.

 

Fizemos outra coisa: o Ensino Secundário, no Brasil foi, por muitos anos, majoritariamente oferecido por escolas privadas. As matrículas públicas no secundário só ultrapassam as matrículas privadas nos anos 1960. Mesmo depois disso, o secundário privado foi o setor que continuou a dar maiores chances de entrada no Ensino Superior. Ora, uma vez que uma família já era mais escolarizada e já possuía ocupações de nível superior, o que lhe assegurava maior renda, ela praticamente assegurava as melhores oportunidades educacionais para seus filhos e, por consequência, a maior chance para eles chegarem ao Ensino Superior. Esse é o caráter elitista de nosso sistema de ensino.

 

O que fizemos para democratizar essa estrutura elitista foi, progressivamente, expandir o acesso e melhorar a permanência na educação básica, além de criar políticas de ação afirmativa para acesso ano Ensino Superior, em benefício dos grupos tradicionalmente mais afastados dele. Então, o que acho que ficará como consequência desse período que estamos vivendo, é o retrocesso dos avanços democratizadores de nosso sistema de ensino e, portanto, o recrudescimento de seu caráter elitista.

 


Mauricio Ernica fala sobre os reflexos da pandemia na educação brasileira

 

 

É possível dizer que o debate sobre o retorno presencial das aulas ou a manutenção do ensino remoto, mesmo no pior momento da pandemia, é um reflexo da alta demanda para as famílias e de problemas estruturais na educação, em especial a pública?

 

Falo com base nas notícias que li. As disputas sobre o retorno ou não das atividades presenciais nas escolas se organizou, grosso modo, do seguinte modo. O docentes e suas organizações sindicais se posicionaram contra o retorno, com um argumento super importante: o da garantia da saúde, da vida dos profissionais da educação. Ora, estamos no meio de uma pandemia descontrolada, matando muita gente, e essa é uma demanda óbvia.

 

Tivemos, por outro lado, uma pressão muito forte para o retorno das atividades presenciais vinda de dois grupos: de proprietários de escolas privadas, especialmente as menores, que sofreram muito e perderam alunos e faturamento, e de famílias, em especial as de classes mais altas, que têm poder de lobby e influência. O nosso debate ficou tensionado entre esses dois segmentos, todos eles contando a parte da história mais relevante a partir da sua posição.

 

 

Mauricio Ernica comenta sobre os desdobramentos da pandemia de Covid-19 no Brasil e como isso se relaciona com a educação

 

 

É natural que, agora, todos os grupos entrem no debate procurando fazer com que o aspecto do problema que mais lhe é caro seja considerado o aspecto prioritário. Porém, não tivemos instâncias de mediação das preocupações, das demandas todas, dos conflitos em jogo, instâncias capazes de criar soluções de compromisso aceitáveis. Ora, o Brasil fez tudo errado durante a pandemia e a educação não foi exceção. O resultado, então, é um sistema de ensino à deriva, entregue a esses conflitos abertos e sem mediação e que, como resultado, produzirá um aumento enorme das desigualdades, como vínhamos conversando até aqui.

 

Não sairemos melhores da pandemia nem no que diz respeito aos padrões de desigualdade educacional, nem no que diz respeito ao debate público amadurecido. O nosso cenário é de retrocessos no que tivemos de avanços democráticos e de deterioração no que diz respeito à qualidade das instituições e do debate público.

 

 

Mauricio Ernica destaca os papéis que organizações da sociedade civil e o campo do ISP podem exercer em favor da educação no Brasil

 


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