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Sustentabilidade fiscal, garantia de direitos e redução das desigualdades não são contraditórias – Fundação Tide Setubal entrevista Roseli Faria

Por Amauri Eugênio Jr.

 

 

Apesar de o senso comum induzir à lógica de que o orçamento público é um mero instrumento tributário, o que pode influenciar a criação de medidas baseadas na austeridade fiscal para reduzir a verba disponível para serviços básicos e essenciais para a população, a realidade mostra que o instrumento pode ter utilidade para além disso.

 

O orçamento público pode trazer consigo, ao mesmo tempo, a preocupação com a responsabilidade fiscal e o investimento em serviços elementares, com a finalidade de combate às múltiplas formas de desigualdades. A crise causada pela pandemia de Covid-19 mostrou que o Estado tem papel importante em dinâmicas diversas, inclusive fiscais, para garantir o bem-estar social e mitigar vulnerabilidades diversas.

 

Essa lógica fundamenta ações como o Iº Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades, iniciativa coidealizada pela Fundação Tide Setubal com a Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor), que visa identificar, sistematizar e divulgar formas inovadoras de pensar e fazer o orçamento público de forma comprometida com o desenvolvimento social do país. A iniciativa contemplará, com premiação em dinheiro, cinco projetos desenvolvidos de acordo com a temática principal e concederá menções honrosas para até três ações. Além disso, a premiação possibilitará que os artigos melhor desenvolvidos sejam publicados no Nexo Políticas Públicas.

 

Para falar sobre o tema e o concurso, a Fundação Tide Setubal entrevista Roseli Faria, economista e vice-presidente da Assecor. Confira o diálogo a seguir.

 

 

Quando se fala em orçamento público, um ponto que vem à mente é o modo como os recursos são destinados. Quais cuidados precisam ser tomados para não haver risco de o orçamento público retroalimentar desigualdades socioespaciais?

 

Esse é o grande desafio do Brasil. Temos um marco civilizatório na Constituição Federal de 1988, que reconhece um legado histórico de desigualdades e falta de garantia de direitos. Porém, a Constituição nasce em uma realidade na qual, em um contexto externo, há uma retomada da ideia de um Estado menor e de menos direitos e garantias para as pessoas. Estamos falando do que se convencionou chamar de neoliberalismo, era um momento no qual se falava da queda do Muro de Berlim, da Margareth Thatcher falando da redução do tamanho do Estado na Inglaterra, e de Ronald Reagan nos EUA.

 

Aquele mundo, no qual havíamos nos inspirado para fazermos a Constituição de 1988, estava seguindo um caminho inverso. E, em âmbito interno, havia um país com hiperinflação e uma crise econômica do Estado. Ela nasce em um contexto bastante complicado para a sua implementação. Mesmo assim, houve muitos avanços nos últimos 33 anos. No primeiro momento, o orçamento público era muito focado no controle de gastos para a estabilização econômica – pode-se dizer que, na década de 1990, esse foi o principal foco. Aí, nos anos 2000, conseguimos encontrar um pouco mais de espaço dentro do orçamento público para implementar os direitos que estão na Constituição de 1988.

 

O Benefício de Prestação Continuada foi um momento de construção e estruturação do Bolsa Família, que se tornou um dos grandes programas sociais de transferência de renda do Brasil. O SUS começou a ser estruturado na década de 1990, mas avançou nos anos 2000. O cuidado que devemos ter – nunca conseguimos um equilíbrio concreto e suficiente para garantirmos direitos e enfrentarmos as desigualdades – é entender o orçamento público não como um instrumento de controle de gastos, apenas de estabilização econômica e de queda da inflação, mas o equilíbrio dele para ser, ao mesmo tempo, um instrumento de sustentabilidade fiscal e de estabilidade econômica e de garantia de direitos. A ideia é taxar determinados grupos para alocar recursos para os serviços públicos e, dessa forma, garantir igualdade de oportunidades e um instrumento de redução das desigualdades.

 

 

Especificamente sobre a CF88, quais papéis o orçamento público pode exercer para aprimorar essa dinâmica e assegurar que os direitos previstos na carta magna sejam garantidos?

 

Não adianta haver na Constituição os direitos à saúde universal, à educação, à assistência social se não houver recursos que os garantam no lado do orçamento público.

 

O desafio agora é repensar essas regras fiscais. Junto com isso, temos também o desafio de rediscutir os nossos critérios alocativos. Por muitas vezes, embora saibamos que o nosso foco devesse ser saúde, educação, assistência social e investimento, em especial sociais, durante a alocação não há critérios e governança orçamentária para garantir a alocação de recursos para essas áreas no momento da priorização alocativa. Não adianta botar uma regra que não é cumprida depois, como o teto de gastos tem sido.

 

Ao mesmo tempo, é necessário repensar a estrutura do Estado para garantir a democratização dele e do orçamento público, para ele ser permeável às demandas da sociedade e, cada vez mais, ser possível encontrar espaço para alocar mais recursos às áreas estabelecidas pela Constituição como prioritárias: seguridade social, saúde e educação, assistência social, previdência e demais investimentos, principalmente, sociais. O desafio não é pequeno nos próximos anos, pois será necessário reconstruir o orçamento público fazendo o que nunca foi feito. Encontramos, a partir dos anos 2000, espaços maiores para políticas sociais, mas nunca houve reestruturação do orçamento público a partir dos objetivos constitucionais. Chegou a hora de fazê-lo para garantir direitos, prosperidade e bem-estar da maioria populacional.

 

 

Em São Paulo, o PPA 2022-5 prevê a destinação de R$ 5 bilhões em investimentos com base em critérios relacionados à vulnerabilidade social, demografia e infraestrutura urbana. Ações como essa podem mostrar caminhos para enfrentar desigualdades estruturais?

 

Acredito que sim. Lembremos de que em geral, no debate público, ficamos muito focados no orçamento da União, do Governo Federal. Faz sentido de certa forma, porque é o maior orçamento e a União não tem um limite fixo de gastos – é o ente federativo que pode, muitas vezes, tocar políticas sociais de grande monta. Porém, se não tivermos os orçamentos também de outros entes federados nos estados e municípios, também comprometidos com a redução das desigualdades, haverá um avanço muito limitado.

 

Considero fundamental repensarmos os orçamentos, principalmente municipais, a partir da redução das desigualdades. Vamos lembrar que boa parte dos direitos sociais refletidos em políticas sociais e em serviços públicos é tocada no nível do município. A construção de metodologias e a garantia de compromissos dos municípios para buscar também a redução das desigualdades se tornam cruciais. Caso contrário, não conseguiremos alcançar o objetivo de redução das desigualdades sociais.

 

Quando falo em desigualdades sociais, é sobre as suas múltiplas dimensões – territoriais, de gênero, raciais, etárias. Acho fundamental repensarmos o orçamento local a partir do seu território, onde, efetivamente, pode-se fazer a diferença e a grande mudança. Vejo com muitos bons olhos essas iniciativas locais de territorialização e construção do PPA – a partir do PPA do orçamento público – para a redução das desigualdades.

 

 

De que forma iniciativas como o 1° Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades visam colocar as variáveis relativas a raça, gênero, renda e garantia de direitos no centro da realização de projetos nesse campo?

 

O prêmio foi construído para garantir que consigamos equilibrar papéis do orçamento público e para o debate público ser um pouquinho mais plural. Ele vem nesse sentido: há outros muito bem-sucedidos de monografias, já conhecidos a respeito, que colocam o orçamento público como objeto dele. Porém, buscamos, com o nosso, dar um pouco mais de pluralidade ao debate público, trazendo desde uma discussão de metodologias, como orçamento público sensível a gênero e raça, orçamento e territorialização para redução de desigualdades.

 

Esperamos receber também manuscritos com reflexões interessantes a respeito de regras fiscais e redução de desigualdades, de governança orçamentária, para garantirmos que o estabelecido no planejamento setorial seja concretizado pelos sucessivos orçamentos. Esperamos receber ideias, em particular no nível municipal, de arranjos financeiros ou orçamentários que garantiram a construção de novas políticas públicas. Todos esses assuntos, incluindo participação social e transparência pública na construção da peça orçamentária e na sua gestão, são importantes para a construção de um orçamento público que garanta estabilidade econômica e estabilidade financeira do Estado, assim como direitos e a redução de desigualdades sociais em todas as suas dimensões.

 

Conseguimos que os premiados possam escrever artigos sobre os seus trabalhos no Nexo Políticas Públicas. Pretendemos, caso a Covid-19 permita, fazer uma premiação presencial – se possível, em Brasília -, para garantir mais divulgação das ideias dos manuscritos premiados. Temos também como objetivo gerar uma publicação – um livro – para garantir alcance ainda maior das ideias. Tenho certeza de que teremos várias edições e de que seremos muito bem-sucedidos com o nosso objetivo.

 

Fica aqui o convite para que todos participem desse debate e submetam trabalhos até 6 de março. Não precisa ser especialista somente em finanças públicas ou economia: quando falamos de direitos, queremos trabalhos bem transversais e multissetoriais.

 

 

Pode-se pensar que para haver responsabilidade fiscal é fundamental pensar na população e no combate às desigualdades, pois um fator retroalimenta o outro?

 

É exatamente isso. Não há contradição entre a busca por sustentabilidade fiscal, a garantia de direitos e a redução das desigualdades. Pelo contrário: uma vez que direitos sejam garantidos e desigualdades sejam reduzidas, a igualdade de oportunidades passa a ser garantida.

 

A igualdade de oportunidades em um país tão desigual como o Brasil retroalimentará o desenvolvimento econômico com a sustentabilidade fiscal do Estado. Achamos que o debate público está muito focado nessa parte quando deveríamos discuti-la com os outros pilares do orçamento público.

 

Tenho muita esperança de que haja muitos trabalhos interessantes, pois essa é uma discussão que está acontecendo e, muitas vezes, ela só não consegue ter destaque, em particular no debate público. O prêmio busca o que as pessoas estão discutindo na academia, no serviço público, nas organizações e sociais, e fazer um grande debate, em especial este ano, no qual haverá eleições nas quais, acho, o orçamento público estará como uma das questões centrais do debate.

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