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Comprometer-se com a luta antirracista é entender-se como parte do problema – Fundação Tide Setubal entrevista Cléa Maria Ferreira

Por Amauri Eugênio Jr.

 

 

A promoção de práticas educacionais antirracistas e que fujam da lógica eurocêntrica é um assunto que tem se tornado recorrente entre profissionais da educação. Parte significativa dessa lógica deve-se à Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade da inclusão do ensino da história e cultura afro-brasileira no currículo escolar, e à Lei 11.645/08, que estende essa lógica à história e à cultura indígena brasileira.

 

Apesar de ambas as leis estabelecerem diretrizes para a educação brasileira incorporar os saberes e criações de ambos os grupos, elas e os seus respectivos tópicos principais têm sido alvos de resistência e de ataques de grupos para os quais qualquer tentativa de ruptura com a lógica educacional, inclusive usada na formação de professores, se trata de doutrinação.

 

Em virtude do mês das(os) professoras(es), lembrado em outubro, e da reflexão sobre a urgência da implementação de práticas antirracistas na formação de docentes e gestores educacionais, assim como a importância das leis 10.639/03 e 11.645/08 nesse cenário, a Fundação Tide Setubal entrevista Cléa Maria Ferreira, doutora em Educação, pesquisadora de questões raciais e pedagogias decoloniais e gerente de Currículo e Formação do Instituto Reúna, organização sem fins lucrativos que trabalha em prol da qualidade e da equidade educacional e que visa colaborar com a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

 

Confira o diálogo a seguir.

 

 

De modo geral, como a perspectiva antirracista na educação pode ser um elemento fundamental para o combate ao racismo na sociedade?

 

Educação forma os sujeitos transformadores da sociedade – é um caminho para a transformação estrutural. Não é possível pensar a transformação e a reconfiguração da sociedade, assim como na eliminação do racismo e de toda forma de discriminação e preconceito, sem envolver a educação. Ela é um pilar fundamental das transformações sociais, mas serviu como forma de disseminação e manutenção da lógica racista. Para desconstruirmos essa perspectiva, mudar as práticas pedagógicas, é necessário reconfigurar as relações de poder estabelecidas.

 

Sem mudar as relações com o conhecimento e entre as pessoas, que acontecem no microcosmo no qual as nossas subjetividades são formadas, é impossível falar em educação antirracista, eliminação do racismo e de toda forma de preconceito. Não à toa, os movimentos negros historicamente reivindicaram mudanças nas leis e políticas educacionais convergentes com a perspectiva antirracista, pois é necessário haver atuação em diversas frentes.

 

 

Como você avalia que a Lei 10.639/03 pode ser aplicada como elemento estratégico para sensibilizar docentes a adotar práticas antirracistas em sala de aula?

 

É fundamental situar a Lei 10.639/03 como elemento fundamental na luta antirracista no campo das políticas públicas, sobretudo na educação. Ela é resultado de uma luta histórica dos movimentos negros. Ela abre caminhos para a discussão sobre o antirracismo na educação, traz elementos fundamentais para a escola se pensar dentro dessa estrutura que reproduz o racismo e aponta, sobretudo, caminhos para desconstruir o racismo na educação e para uma formação efetivamente cidadã e para justiça cognitiva.

 

A Lei 10.639, embora ainda não tenha conseguido se estabelecer como farol fundamental de todas as políticas e práticas educacionais, é um passo fundamental e foi responsável por grande parte das transformações ocorridas. Há educadores que consideram a importância da lei, mas talvez ela não tenha tido os efeitos esperados, principalmente por ter sido implementada há quase 20 anos. As resistências à lei são frutos do racismo que perpassa, permeia e estrutura a sociedade. Durante muito tempo, a lei foi fundamental para subsidiar os educadores que, comprometidos com a luta antirracista, tiveram respaldo legal para dar passos importantes dentro dos contextos educacionais.

 

Ela é um elemento fundamental, abre caminho e dá pistas para educadores comprometidos com a luta antirracista, embora ainda seja subaproveitada e subrepresentada nos projetos político-pedagógicos de organizações educacionais. Mas é uma brecha fundamental para romper a estrutura sedimentada da educação que não reconhece, ou reconhece e valoriza pouco, as diferenças e os saberes produzidos por esses outros sujeitos. A mesma coisa vale para a reconfiguração do papel da população negra e indígena, pois ela abre caminho para a Lei 11.645/08, a qual inclui as culturas e histórias dos indígenas nos currículos escolares.

 

 

Quais são as possibilidades para professores e gestores dialogarem com setores conservadores ou sensibilizá-los sobre a adoção antirracista no ensino?

 

Há, primeiro, um processo de sensibilização dos próprios atores escolares. Quando pensamos que a Lei 10.639 é de 2003 e a Lei 11.645 é de 2008 e falamos sobre a necessidade e a importância do cumprimento previsto na lei em 2021, que alterou a LDB e já avalie, trazendo como premissa fundamental reconfigurar o tratamento da história e da cultura afro-brasileira, africana e indígena nos currículos escolares.

 

Quando falei da importância do trabalho com a educação, pois ela transforma as pessoas e as pessoas transformam o mundo, como já dizia Paulo Freire, é sobre um processo para sensibilizar atores escolares. Falar sobre racismo é de hierarquia e relações de poder em um dado momento para justificar a exploração e a desumanização desses sujeitos – esses grupos foram colocados como subalternizados. Por isso usamos a expressão subalternizados e minorizados, pois eles não são minoria. Esses grupos são desumanizados enquanto as culturas branca, europeia e do norte são colocadas como referências e lentes para olhar o mundo.

 

Se não reconhecermos a perversidade do racismo e o quanto ele provoca desigualdade e engendra processos de invisibilização e subalternização desses sujeitos, será muito difícil incorporar isso à prática e atuação consistente para eliminar o racismo. Falar sobre essas leis é também sobre reconfigurar a formação dos professores, que se passa nas universidades, na formação inicial e continuada. Quando se pensa nessa estrutura racista, a universidade é um espaço que reproduz essas relações de poder nos currículos.

 

 

 

Cléa Maria Ferreira fala sobre a urgência da inclusão da perspectiva afro-brasileira em planos de ensino

 

 

 

Você acredita que adotar a perspectiva antirracista na educação ajuda a romper com a lógica eurocêntrica nas ciências humanas e na construção de conceitos nas exatas?

 

Falamos da dinâmica de reconfiguração dos currículos. Falar de práticas educacionais antirracistas é falar de algo muito simples: reconhecer os efeitos do racismo na produção de disseminação do conhecimento e de reparar a invisibilização que marcou a produção de conhecimento na educação formal. Quando olhamos para as ciências humanas e exatas, falamos de negligenciar as contribuições de cientistas e intelectuais negros ao longo da história da ciência.

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Usarei um exemplo muito emblemático para mim. O professor Milton Santos é um dos intelectuais mais importantes das ciências humanas no Brasil, como geógrafo e intelectual que pensa a sociedade como um todo. Quem não é da área específica da geografia pouco ouve falar sobre ele e das suas contribuições para pensar a sociedade. Fora do Brasil ele já foi reconhecido e premiado internacionalmente, mas não se ouve falar aqui sobre suas contribuições para as ciências. Não é nem sobre olhar a geografia em perspectiva negra, mas para o pensamento sobre as ciências humanas e trazer à luz a produção de conhecimento e a relevância sócio-histórica de um intelectual negro. Há exemplos em inúmeras áreas.

 

 

 

Cléa Maria Ferreira comenta sobre a invisibilização sofrida por intelectuais negras(os) no Brasil

 

 

A discussão sobre os aliados, pessoas dispostas a implicar-se na luta antirracista, mas têm postura passiva e usam do discurso do dar espaço e voz como a grande contribuição para a luta antirracista – essa é uma abordagem absolutamente equivocada. Comprometer-se com a luta antirracista é entender-se como parte do problema, alguém que perpetua, vive e goza desses privilégios, tem dificuldade de abrir mão deles e não opera em lógica de extrativismo ainda com a população negra por meio do extrativismo intelectual, expropriação e de colocar sob os nossos ombros a responsabilidade de romper e desconstruir um problema criado pela população branca.

 

O educador que pretende ser antirracista e aliado precisa implicar-se nesse processo, reconhecer e confrontar os seus privilégios e colocá-los a serviço da luta e entender-se como parte fundamental do problema e precisa ser parte da solução. É responsabilizar-se com o preenchimento dessas lacunas históricas, em que ponto deixou de buscar, conhecer, reconhecer e visibilizar esses outros conhecimentos e como usar o espaço de privilégio para evidenciar e reapresentar esses sujeitos e saberes marginalizados historicamente.

 

 

Na sua experiência, como a formação de professores e gestores em temas ligados à equidade racial podem auxiliá-los a tornarem-se cidadãos mais conscientes dos seus papéis na sociedade para formar novos cidadãos, isso para além do ambiente escolar?

 

Essa é uma pergunta difícil de responder, pois estamos nesta luta há bastante tempo. Um dos primeiros passos fundamentais nesse processo é ratificar o trabalho dos movimentos negros como espaços educativos. A professora Nilma Lino Gomes discorre brilhantemente sobre os movimentos negros como espaços educativos e de militância, de pensar sobre a questão negra no Brasil, de disputar isso dentro dos processos legais e da formação de intelectuais negros, da primeira grande geração de intelectuais negros que adentraram nos espaços formais e deram legitimidade, digamos assim, para as nossas discussões, que é a universidade.

 

Os poucos frutos colhidos são consequências da luta e do investimento dos movimentos negros históricos e do entendimento da importância de ocupar a escola e a universidade, espaços de poder no lugar de liderança. O simples fato de uma pessoa ser negra não necessariamente a habilita ou a coloca na posição de luta contra o racismo e reconhecê-lo. Um dos primeiros passos é entender e reconhecer os efeitos do racismo na sociedade e as consequências nocivas na sociedade sob o ponto de vista dos indivíduos e da coletividade.

 

Mobilizar e sensibilizar educadores para reconhecer os efeitos do racismo é o primeiro passo para a transformação. Quando pensamos, por exemplo, no movimento ocorrido a partir de junho do ano passado, é sintomático para mim, pois sofremos com o extermínio a violência contra a população negra no Brasil. Um evento nos EUA provocou o despertar, digamos assim, para a questão racial para além dos movimentos negros que há anos discutem a perversidade do racismo, os seus efeitos e consequências nocivas não só para a população negra, mas para a sociedade em geral – todos perdemos. Obviamente, nós, negros, perdemos muito mais: com o racismo perdemos a vida, a possibilidade do sonho e de futuro.

 

 

 

Cléa Maria Ferreira destaca possibilidades para a aplicação de perspectivas antirracistas no sistema educacional

 

 

A disposição do professor, para desaprender a lógica racista e aprender a perspectiva antirracista e as pedagogias decoloniais permitirá educação seguir no caminho da formação cidadã e para podermos falar em cidadania plena e em informação crítica, integral e integrada. Enquanto operarmos na perspectiva de desigualdade nos currículos e nas práticas curriculares, não poderemos falar em formação cidadã e integral. Enquanto houver racismo não haverá cidadania e não haverá democracia. Ao entendermos isso, seguir a passos largos e rápidos em direção da construção de uma sociedade equânime e justa – o que vem muito no discurso, mas está longe das nossas práticas.

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