Uma organização que se coloca como diversa precisa ser diversa – Fundação Tide Setubal entrevista Lucas Bulgarelli
Por Amauri Eugênio Jr. Apesar de o Mês do Orgulho LGBTQIA+ levantar, ano após ano, uma série de debates e reflexões sobre a promoção de iniciativas para a inclusão social de pessoas pertencentes a esse grupo e para combater a opressão sofrida por eles, a realidade enfrentada por cidadãs(ãos) LGBTQIA+ revela que há […]
Por Amauri Eugênio Jr.
Apesar de o Mês do Orgulho LGBTQIA+ levantar, ano após ano, uma série de debates e reflexões sobre a promoção de iniciativas para a inclusão social de pessoas pertencentes a esse grupo e para combater a opressão sofrida por eles, a realidade enfrentada por cidadãs(ãos) LGBTQIA+ revela que há muita coisa a ser feita para acolhê-las(os). E isso diz respeito também ao trabalho desenvolvido por organizações da sociedade civil.
De acordo com o Censo Gife 2018, 22% das organizações do investimento social privado desenvolveram políticas para promoção da diversidade e inclusão voltadas à população LGBTQIA+, ao passo que apenas 5% metas ou cotas para contratá-las. Essa lógica se coloca também no trabalho desenvolvido por elas: ainda de acordo com o mesmo estudo, 95% dos institutos e organizações não tinham projetos ou programas com foco nesse público.
Em entrevista à Fundação Tide Setubal, Lucas Bulgarelli, diretor do Instituto Matizes – Pesquisa e Educação para Equidade, mestre em Antropologia, coordenador do núcleo de estudos em diversidade da OAB-SP e membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da mesma instituição, fala sobre esse panorama e como OSCs podem atuar, inclusive da porta para dentro, para contorná-lo e desenvolver iniciativas mais inclusivas para a população LGBTQIA+. Confira a seguir o bate-papo.
Apesar de associarmos a diversidade a aspectos raciais e sexuais, como podemos defini-la?
Quando falamos de diversidade, falamos de um conjunto de lutas sociais desenvolvidas há 40 ou 50 anos no Brasil e de lutas que envolvem raça, gênero, orientação sexual e identidade de gênero – as lutas LGBTQIA+. Diversidade é, também, outra forma de dizer desigualdade e é uma forma de afirmarmos positivamente o que tem sido reivindicado por movimentos sociais aqui no Brasil. Quando mencionamos diversidade, nos referimos a essas lutas, mas elas próprias também desenvolveram as suas ideias e articulações ao longo do tempo de modo a nos deixar como legados essas noções como interseccionalidade.
Falamos de pessoas marcadas racialmente, por gênero, orientação sexual e identidade de gênero. É importante dizer isso porque parece que diversidade é um papo apenas sobre pessoas negras, mulheres e LGBTQIA+, mas é sobre a diferença entre elas. Quando esses movimentos começam a produzir ideias qvue buscam interseccionar essas experiências, temos a produção de conhecimento, de noção em diversidade, que é mais abrangente do que as lutas que possibilitam esse debate. É a partir disso que começamos a ver a ampliação mais recente do debate no mundo corporativo, no setor público e nas organizações do terceiro setor.
Percebemos que o debate não se restringe a uma ou outra luta. Ainda assim, ele visa ser mais amplo porque, conforme entendemos quais são as relações de desigualdade, sejam relações profissionais ou mesmo pessoais, começamos a entender outras formas de diversidade. É importante também mencionar que diversidade não significa qualquer diferença entre pessoas, pois a queremos no sentido da redução das desigualdades. Esse é o ponto quando discutimos diversidade e inclusão dentro do mundo do trabalho.
Como pode ser feito o diálogo com a sociedade civil sobre a importância e a urgência de expandir a quantidade e a intensidade de iniciativas para reduzir a desigualdade de grupos minorizados?
Esse é um debate que articula diferentes setores da sociedade. É nesse sentido que podemos pensar o debate sobre diversidade como a busca por um piso mínimo por meio do qual as pessoas consigam ter as suas características e divergências. É importante frisar: é um debate em que ainda discutimos a redução de desigualdades e a reparação de desigualdades históricas.
É nesse sentido que as empresas e o terceiro setor têm começado a se mobilizar e se posicionar. Isso gera custos e desgastes para ambos os lados. Se você vir bem, uma iniciativa empresarial que tentará implementar uma iniciativa para pessoas negras será criticada por setores que discordam da implementação dessas políticas, por entenderem como um favorecimento indevido ou mesmo um posicionamento político da empresa, e haverá críticas de setores sociais que não concordarão com esse tipo de debate. Existem diálogos que já têm sido feitos e precisamos adotar perspectiva de compreensão da pluralidade – costumamos “achatar” um pouco o que reconhecemos como movimento social e lutas políticas. Conforme “achatamos”, reduzimos a diversidade interna desses movimentos.
Lucas Bulgarelli fala sobre o trabalho das OSCs pela promoção da diversidade em seus respectivos quadros e na sociedade civil
Pensando no trabalho das organizações e institutos, é possível traçar uma relação direta entre a construção de equipes plurais dessas organizações e os projetos desenvolvidos por elas terem maior efetividade, capilaridade e abrangência?
O debate sobre a diversidade no terceiro setor tem revelado alguns pontos e entraves interessantes. É notável por um lado a participação bastante massiva de mulheres nas OSCs, mas isso não acontece da mesma forma com pessoas negras. Quando falamos de diversidade, falamos dessas desigualdades que se conformam de forma bastante relacional. É quase como se um critério dependesse do outro para podermos ler o contexto como um todo. Por outro lado, há o histórico das OSCs de defesa dos direitos e das garantias democráticas. Quando falamos dessas organizações, muitas delas compuseram o que reconhecemos como movimento social.
Não é apenas sobre recursos humanos e quem deve compor as organizações. Ainda não há nas organizações do terceiro setor um reflexo da sociedade brasileira como ela é. Para além disso, podemos pensar a dimensão material, ou seja, o que as OSCs têm promovido ou o que muda quando elas abarcam no debate sobre diversidade. Há experiências muito bem-sucedidas nesse sentido, em que quanto mais encaramos o desafio de trazer pessoas com trajetórias diversas das nossas, encaramos também o desafio de nos abrirmos ao conhecimento.
Há ainda a noção de que é necessário estar totalmente preparado para tornar uma organização mais inclusiva. Na verdade, é um processo que acontece no meio do caminho. Conforme ações e mecanismos são produzidos para permitir que a composição daquelas pessoas esteja um pouco mais refletida no que a nossa sociedade é, aprende-se quais desafios isso traz e o quanto a ausência de diversidade trazia também limitações que criaram costumes e hábitos.
Lucas Bulgarelli fala sobre a influência da pluralidade na atuação de institutos e fundações no enfrentamento das desigualdades
Quais são os cuidados necessários para evitar o risco de esvaziar pautas ligadas à questão racial, identidade e equidade de gêneros por fatores mercadológicos, além de mantê-las orgânicas?
Podemos descrever o histórico de ações de diversidade no campo empresarial do Brasil, o que se dá por volta de dez ou vinte anos. O primeiro momento foi atrelado às políticas de diversidade empregadas por empresas multinacionais com filiais no país. É a partir disso que o debate começa mais nas ações de diversidade. Ocorre o que no movimento LGBTQIA+ chama de pink money ou pinkwashing, ou seja, a ideia de que se utiliza de lutas sociais com baixo investimento, porque uma ação de publicidade custa muito menos do que fortalecer direitos da população LGBTQIA+ e os recursos necessários para isso. Com isso é possível limpar [a imagem].
Houve um ou outro momento já marcado por ações atreladas à inclusão e à empregabilidade. É um pouco aí que temos visto outras ações e estratégias mais recentes – por volta de dez anos – que têm buscado focar não apenas nessas ações pontuais, tópicas e de publicidade, mas que envolvam o recrutamento e a seleção de forma mais diversa e inclusiva – temos conseguido bons resultados. Ainda assim, existe a preocupação legítima dos movimentos sociais sobre o esvaziamento das suas pautas e demandas. Esse é um debate muito delicado, mas precisa ser cada vez mais visibilizado.
Se uma organização se coloca como diversa, ela será cobrada por isso e com uma extensão de responsabilidade que ela mesma não prevê muitas vezes, porque a área jurídica delas não prevê que um funcionário possa agir de forma preconceituosa na rua ou em uma rede social. Uma organização que se coloca como diversa precisa ser diversa. Estimulamos que esse trabalho seja, ao mesmo tempo, da porta para fora e da porta para dentro. Esse contexto nos diz o quanto a sociedade hoje tem cobrado ações e posicionamentos de agentes sociais.
Por fim, quando se pensa em ações de diversidade, é fundamental pensar em ações que derivem de debate construído por movimentos sociais. É essencial isso estar claro, pois é possível o debate ser torcido para campos que podem torná-lo algo diferente do objetivo: reduzir e atenuar desigualdades. Esse é um debate em construção, com idas e vindas. O importante é a disposição das empresas e das organizações para assumir e reparar erros para a construção de ações mais inclusivas. Isso me parece primordial e talvez seja algo quase consensual entre as lutas que buscam a ampliação de direitos e da democracia.