por Daniel Cerqueira
Falar de um jeito simples o que para muita gente parece difícil. A entrevistada desse mês é conhecida nos meios que circula por essa habilidade. Desde 1990, Bel Santos Mayer se dedica a apoiar a criação e a gestão de bibliotecas comunitárias em áreas periféricas da cidade de São Paulo.
Nesta conversa, Bel conta sua trajetória e os desafios enfrentados por ser mulher e negra, especialmente quando resolveu licenciar-se em Ciências/Matemática, uma área onde meninas da periferia não são incentivadas a seguir. Destaca a educação popular como base para que coordenadora o Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – Ibeac encontrasse maneiras de contribuir para a democracia brasileira e o desenvolvimento de quem, como diz a poetisa Audre Lorde, costuma se ver num espelho distorcido.
A Rede LiteraSampa é um dos trabalhos desenvolvidos nesse sentido. Nela, reunem-se onze bibliotecas comunitárias e duas escolares que buscam contribuir para a efetivação de políticas públicas de fomento à leitura, para a formação de leitores e a articulação das comunidades na valorização da leitura por meio de oficinas e mediações de leitura, saraus literários, bate papo com autores e ilustradores e seminários.
Nos últimos tempos, esta educadora social tem estado bem próxima a Fundação Tide Setubal. Participou como convidada da última edição do projeto Vozes Urbanas, tem contato diário com Bruno Souza, da biblioteca comunitária de Parelheiros e um dos personagens da série Enfrente e articula com o Circuito Literário das Periferias, Clipe, ações neste território.
Vale a pena acompanhar como ela descreve cada uma dessas experiências!
Poderia começar nos contando um pouco como foi fazer matemática sendo mulher e negra?
Minha família, ao contrário do que ocorre, tem cinco mulheres que gostam dos números. Porém, a matemática sempre foi um espaço muito marcado pelos homens e impensável para uma menina da periferia. E, além de ser um espaço masculino, a universidade também não era para uma menina da periferia, que tinha de trabalhar e morava longe. Para quem está na periferia, a matemática é vista como a ciência do fracasso, pois sempre acharam que a gente não tinha cabeça boa para isso. Puro preconceito. Como as pessoas constroem suas casas? Como elas vendem suas coisas? Como elas dão conta de administrar a própria vida sem a matemática?
Como foi a sua aproximação com a Educação Popular e no que essa experiência transformou o seu jeito de ser educadora?
Eu vivia num bairro não letrado e onde as pessoas só estudavam o básico. Neste lugar chegam os padres com as ideias das comunidades eclesiais de base e as ideias de Paulo Freire. O lema era ver, julgar e agir. Para agir é preciso alfabetizar. Por isso, me aprofundo nas ideias de Paulo e vou pra favela onde moro para levar aos adultos a possibilidade das pessoas decifrarem o mundo. O L antes de ser de laranja é de luta. O que eu aprendi nessa experiência foi pegar tudo o que está na prateleira da estante e trazer pra baixo, ou seja, falar de um jeito que as pessoas entendam o conhecimento já produzido pela humanidade.
Você declarou uma vez para a jornalista Fernanda Pompeu que “a literatura é um porto de onde o barquinho da nossa imaginação zarpa para o mundo” Em que sentido o seu trabalho com as Bibliotecas Comunitárias possibilita que mais pessoas entrem nesse barco?
Hoje, essa ideia é a base da pesquisa do meu mestrado. Ler e viajar são verbos que se conjugam juntos. A literatura nos permite viajar para outros lugares e ocupá-los também com o nosso corpo. Quando lemos, podemos encontrar num parágrafo quatro séculos de existência que nos ajuda a pensar no futuro. As bibliotecas comunitárias nos permitem viajar metaforicamente, mas também fisicamente, porque nos possibilita visitar outros lugares onde as pessoas colocaram na literatura histórias que nos trazem afinidades.
Em 2009, o Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – Ibeac, onde você é coordenadora, lançou uma biblioteca comunitária no cemitério da Colônia. Que lição você tira dessa experiência?
Aqui no Ibeac, a gente decidiu que toda a ação está pautada pela formação e transformação. Em 2006, começamos a pensar em formas de levar a experiência que já tínhamos para o que era considerado “o pior lugar para se viver”. Naquele ano, Parelheiros era considerada a última subprefeitura da cidade pelo índice de desenvolvimento humano (IDH). Lá encontramos um grupo de jovens que queria abrir a biblioteca e, juntos, criamos o projeto “pílulas de leitura”, dentro de uma unidade básica de saúde. Um dia, precisaram do nosso espaço para trazer um dentista para ubs. A casa do coveiro era o lugar que estava desocupada. Fomos para lá por necessidade, mas foi interessante transformar um lugar onde a vida acabou num lugar onde a vida começa. Daí nasce o projeto “Caminhos da Leitura”, onde a gente diz que vai de Parelheiros para o mundo.
Teve alguma dificuldade para a comunidade frequentar a biblioteca?
O Elder Oliveira, um grafiteiro da região, fez com a gente um projeto que começou desenhando as lápides do cemitério de azul e branco e depois, com um estêncil das lápides, levamos para os postes e os muros mensagens de vida. Um pouco depois, os e as jovens criaram o sarau do terror, realizado no sábado seguinte ao dia dos mortos. Fomos ressignificando aquele lugar e a comunidade veio.
O LiteraSampa, rede de leitura que o IBEAC integra, se propõe a contribuir para a efetivação de políticas públicas de fomento à leitura, para a formação de leitores e a articulação das comunidades na valorização da leitura. O que já foi possível fazer nesse sentido?
Desde 2009, já conseguimos trabalhar com a gestão de 13 espaços de leitura comunitários sendo que, muitas das vezes, somos a única biblioteca do território. Conseguimos articular em nosso espaço o grupo de trabalho do plano municipal do livro e da literatura discutindo quais as políticas a sociedade quer para a cidade de São Paulo e, por três anos e meio, realizamos estudos e escutas públicas, incluindo crianças. Inclusive uma das propostas delas é a de os ônibus que hoje trazem indicações de shoppings centers também tenha indicações de bibliotecas. Agora é acompanhar para ver se o poder público coloca o plano municipal em prática.
No Vozes Urbanas, projeto da Fundação Tide Setubal (leia aqui mais), você chamou a atenção para a importância da periferia também ler os cânones da literatura. Pode nos dar mais detalhes sobre esta provocação?
O Antonio Candido fala que a literatura é um direito humano porque a gente precisa dela como precisa da vida, de trabalho, do estudo, do sonho e da metáfora. Tudo que já está escrito pertence à humanidade, ou seja, pertence à todo mundo. O jovem da periferia deve ter acesso à eles, assim como os autores e autoras da periferia precisam ser lidos e respeitados como os clássicos. É claro que, quando nós lemos os nossos, em princípio, eles nos fazem mais sentido porque espelham a nossa vida. Mas, precisamos “pegar os cânones pela unha” e ver o que eles têm a dizer sobre a nossa vida.
O Circuito Literário das Periferias (Clipe) tem investido, em parceria com as bibliotecas comunitárias, nos clubes de leitura. Como você vê a relação do investimento social privado com projetos literários?
É importantíssimo que o setor privado invista em literatura, pois, dentre outras coisas, existem muitas pesquisas e estudos mostrando como ler afeta a área da saúde, como as pessoas vivem mais e melhor por lerem, por exemplo. Não é só uma questão do estado investir, é preciso todo mundo se sensibilizar e investir na leitura e no letramento. O Clipe nos ajuda a fortalecer o papel da literatura nas periferias. Precisamos investir em mais Festas Literários como essas que o clipe organiza. Nosso país mudaria.
No Canal Enfrente (www.youtube.com/CanalEnfrente ), temos aberto o espaço para histórias de vida de pessoas que, em geral, não têm espaço nos meio de comunicação. Como você vê um espaço desses na relação da construção das identidades?
Contar as nossas histórias e perceber que nós somos agentes dela e não só resultado de um destino dado. Estes espaços permitem que as pessoas vejam quais são os seus lugares no mundo. A poeta Audre Lorde escreveu em “Bons espelhos não são baratos”. Nos vemos o tempo todo em espelhos distorcidos, nos dizendo que somos feios, incapazes e que a vida é assim mesmo. Quando podemos contar as nossas histórias e como nos vemos no mundo, isso cria conexão com outras pessoas. É em primeiro lugar acolher-se e depois dizer ao outro: você também!”
Por fim, no seu artigo que foi republicado pela revista Emília você ressalta a importância de enfrentar o racismo pela educação, substituindo a folclorização da cultura negra e valorizando a problematização das questões estruturais. Aproveitando a citação que você faz do professor Kabengele Munanga, em que sentido tratar do racismo na educação pode contribuir para a construção da democracia brasileira?
É impossível construir um país democrático se a gente não enfrentar a questão do racismo. Mais de 50% da população brasileira não é branca e teve na sua vida uma construção do imaginário de que não era gente, mas coisa. Como a gente chegará a um país democrático se não tocarmos na ferida de que a cada cinco anos da nossa história, quatro foram vividos sob o regime de escravização. Ninguém nasceu escravo. A gente precisa saber de onde vem nossa bisavó e não saber apenas que é de África, o continente. Qual o seu lugar num país racista e racializado? Ou você é vítima, ou autor ou espectador desta situação problemática. Precisamos lidar com isso para avançar.