Analista de comunicação e produtor de conteúdo do site da Fundação Tide Setubal
As pessoas querem se perceber bem representadas e vistas no debate público – Entrevista com Camila Rocha
Camila Rocha, doutora em ciência política pela USP, pesquisadora do Cebrap e autora do livro "Menos Marx, Mais Mises", fala sobre juventudes e conservadorismo.
De acordo com estudo do King’s College London, homens jovens têm se identificado mais com perspectiva socialmente conservadora em comparação com gerações anteriores. Desta forma, mulheres e homens da geração Z têm mostrado compreensão sobre o mundo cada vez mais dividida.
A partir de questões sobre ser mais difícil ser homem ou mulher hoje em dia, se o termo “masculinidade tóxica” é ou não pertinente e qual era a percepção sobre o impacto social do feminismo, as respostas médias entre ambos os grupos pesquisados mostram que há clivagem segundo a qual mulheres jovens têm mais proximidade com valores progressistas, enquanto os homens se identificam com ideais conservadores.
Ao mesmo tempo em que tais resultados mostram sintomas sociais com proximidade do conservadorismo – ou até mesmo de visão reacionária, até em que ponto é esse mesmo o caso? Essa dúvida foi um dos pontos de partida para a entrevista com Camila Rocha, doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e autora do livro Menos Marx, Mais Mises.
Durante o diálogo, Camila Rocha retratou aspectos para além dos identificados na pesquisa. A entrevista passou por aspectos como a falta de perspectiva em âmbitos profissional e pessoal, por fatores socioeconômicos, pode induzir ao radicalismo político. Idem sobre o debate a respeito do conceito de liberdade de expressão e o risco de normalização de discurso de ódio, inclusive nas redes sociais, e caminhos possíveis para haver diálogos entre campos políticos cada vez mais afetados pela calcificação política – mas sem cair no reducionismo de falsas equivalências. Confira a entrevista a seguir.
Estudos que foram divulgados recentemente pela Universidade de Stanford e pela King’s College London reforçaram uma clivagem de gênero entre jovens e a geração Z. Como o debate sobre combate às desigualdades estruturais e a intersecção racial e de gênero têm influência nesse cenário?
Camila Rocha: A primeira coisa importante para dizer é: a divulgação desse estudo foi bem grande, circulou bastante. Ocorreu extrapolação dos dados, a respeito do que se poderia concluir. Logo, é para as pessoas não levarem essas conclusões tão a ferro e fogo. Dito isso, um ponto sobre o qual precisamos pensar diz respeito à posição de classe desses jovens ou às possibilidades de ascensão social que um jovem tem hoje, não só no Brasil, mas em vários países do mundo. Isso é fundamental para entendermos o comportamento da juventude.
Diversos estudos têm mapeado isso. O que se destaca mais é o pessimismo dos jovens em relação ao próprio futuro. Boa parte deles, em diversos países, entende e sente que não conseguirá reproduzir as mesmas condições sociais dos pais, da família de origem – superar, nem pensar. Isso, por exemplo, de reproduzir o padrão de ter a própria casa, eventualmente ter um carro, ter filhos, o que é muito associado, inclusive, a um padrão de classe média.
Mesmo se pensarmos em um padrão de trabalhadores, por exemplo, dos anos 1980 e 1970, as condições para reproduzi-lo são extremamente limitadas. Esse é um dos fatores que mais influenciam no comportamento e nas visões que os jovens têm sobre diversos assuntos
Por consequência, é correto pensar que o debate sobre desigualdades, do modo como é feito hoje, não contempla os jovens, em especial os homens jovens, e a realidade em que eles se veem é um terreno fértil para discursos masculinistas e antidemocráticos?
Camila Rocha: Precisamos ter certo cuidado com essa afirmação. Na verdade, existem vários movimentos e fenômenos sociais acontecendo de forma concomitante. Por um lado, detectamos que boa parte da juventude, em vários países, tende a ser, tanto homens quanto mulheres, mais progressista em relação a costumes, por exemplo. Isso abrange temas como a aceitação de casais LGBTQIAP+, inclusive quanto à adoção de crianças, ou mesmo questões relacionadas a pessoas transgênero. Essas pautas tendem a ter aceitação muito maior pelos jovens do que por pessoas com mais de 40 anos. Isso é nítido.
Ao mesmo tempo, observamos um fenômeno, o qual é qualificado como novo ativismo feminista e uma nova primavera feminista. Trata-se de um novo momento de ativismo feminista em vários países do mundo, inclusive no Brasil. Isso mexe com visões e percepções que as pessoas têm, como sobre a ideia sobre o que é feminismo e quem é feminista ter impacto bastante grande, principalmente entre jovens, nos últimos anos. É interessante observar que é muito mais frequente mulheres jovens se afirmarem feministas em comparação com quem tem mais de 40 anos, pois o feminismo está muito mais presente entre as jovens.
Camila Rocha fala sobre o modo como homens jovens lidam com o debate sobre equidade de gêneros
Como a instrumentalização do debate sobre liberdade de expressão pode funcionar como uma espécie de caldo cultural para o público jovem, independentemente do gênero, se sentir mais à vontade para propagar discursos intolerantes de ódio? Como funciona essa dinâmica de acordo com o que você vê com as pesquisas com jovens?
Camila Rocha: Em virtude do processo de radicalização política pelo qual passamos, com brigas em família e no ambiente de trabalho, por exemplo, jovens falam que tentam se abster de falar sobre política nas redes sociais ou fazer comentários que podem ser muito polêmicos. Elas e eles têm medo de ser alvo de algum tipo de discurso de ódio ou mesmo de descrédito nas redes sociais – ou, como eles dizem, de hate. Existe essa questão, mais ligada à LGBTIfobia, transfobia, racismo e misoginia, que de fato precisa ter regulamentação específica para isso. Esses discursos não podem circular livremente, da forma como circulam atualmente.
Ainda, jovens têm pavor de sofrer hate, pois isso significa quase um apagamento da sua vivência nas redes sociais – mas tem impacto na sua vida real. Houve um caso recente de um influencer que cometeu suicídio, ou de pessoas que perdem o emprego. Jovens são muito sensíveis e muito ligados nisso, e têm procurado moderar bastante para não ser alvos de algum tipo de campanha de apagamento, hate ou de cancelamento.
Camila Rocha fala sobre o risco de atores antidemocráticos cooptarem jovens
Lembra os pontos que você mencionou em Menos Marx, Mais Mises, sobre como houve um projeto para conquista de corações e mentes mesmo. Trata-se de propor projetos que entrem na chave da esperança em vez da coerção?
Camila Rocha: Há um aspecto muito forte na extrema direita: a ideia de que ela pensa em termos revolucionários, mesmo sendo uma revolução da ordem e reacionária. Fizemos muitas entrevistas com eleitores fiéis do Bolsonaro: eles falam sobre o termo revolução e usam isso – “a nossa revolução”. Era um termo historicamente associado à esquerda. Imagina para um jovem, quando ouve que é necessário haver uma revolução. Isso tem apelo muito grande – inclusive emocional, pois se pensa na própria vida, que precisa de revolução. Isso estende-se para a sua comunidade e seu país, pois as pessoas não veem saída para elas, para a comunidade e o próprio país onde vivem.
Isso é muito difícil. É só pensarmos que mesmo com as alternativas à esquerda que surgiram em alguns países ou mesmo no Chile, com Gabriel Boric, há limites muito grandes para implementar um programa reformista forte. À medida em que não há mudanças estruturais e as pessoas têm pioras cada vez maiores das condições sociais e econômicas das populações, a demanda por esse tipo de discurso cresce – e quem oferece a oferta está do lado da extrema direita.
Jovens certamente são, eu diria, o público mais sensível e fragilizado. Para você ter uma ideia, uma jovem que entrevistei, e para quem perguntei como ela se via no futuro respondeu que só de eu perguntar isso dava gatilho e começara a ficar ansiosa. Esse caso ilustra o que esses jovens estão vivenciando. É um desespero completo.
Em cima da perspectiva de um futuro horizonte possível, como a comunicação pode ter um papel estratégico nesse sentido?
Camila Rocha: Apareceu com muita força entre jovens, sejam de esquerda e progressistas, ou conservadores e de direita, é a preocupação com o meio ambiente. Isso ultrapassa a dimensão individual, pois se pensa em termos de comunidade planetária. Todos têm preocupação bastante acentuada com a crise climática e a deterioração do meio ambiente. Essa é, certamente, uma pauta que une bastante.
Quanto a termos e expressões que podem reduzir o diálogo, as pessoas tendem a ser muito mais agressivas nas redes do que ao vivo, pois se sentem livres para ser mais agressivas por não precisar olhar no olho do interlocutor. Quando as pessoas percebem o uso de xingamentos ou expressões que denotem desprezo pelos outros, isso as afasta da construção desses possíveis pontos de diálogo. Algo que notamos muito, como no caso de pessoas evangélicas, elas têm a impressão de que quem não é evangélico as veem como manipuladas e ignorantes. Isso pode ser com outras identidades ou outros pertencimentos, mas esse tipo de percepção dificulta a criação de diálogo.
As pessoas falam que querem se perceber bem representadas e vistas no debate público. Isso é muito importante. Eu me lembro de uma vez fui testar uma propaganda com mulheres evangélicas – e alguém falava nessa propaganda “Graças a Deus aconteceu tal coisa” ou usava uma expressão de que a pessoa era cristã. Elas ficaram felizes, pois relataram nunca terem se sentido representadas por propagandas.
Esse tipo de representação, que pode ser para vários tipos de identidade, com pessoas se sentindo representadas no debate público, mídia e redes sociais, e sem tamanho desprezo, rótulos e preconceitos, é muito importante para criar pontes. Pessoas não querem entrar em diálogos ou construir pontes com quem acha que te despreza ou acha que você não merece atenção. Esse é o primeiro passo.
A questão de se sentir representado e ver que tem protagonismo político também é uma maneira de fortalecer o tecido democrático também?
Camila Rocha: Exatamente. Se pensarmos em mulheres, que são metade da população e do eleitorado, é isso o que você falou. Mesmo hoje, elas são representadas de forma preconceituosa e ainda há desprezo por mulheres em vários ambientes. Isso faz muitas sentirem que um determinado ambiente não é para elas e, por isso, é melhor não se exporem tanto. Qualquer mulher que tenha passado por uma situação na qual se sentiu desprezada e menosprezada pode entender que um determinado ambiente não é para ela. Como conversar com o outro se você se sente menor? Para haver diálogo, os dois polos precisam estar em pé de igualdade e respeito.
Camila Rocha retrata a urgência para acolher jovens e afastá-los de discursos extremistas
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: Mathilde Missioneiro