Quando falamos que coexistimos no ambiente, é por não sermos apartados da natureza – Entrevista com Maíra Rodrigues da Silva
Maíra Rodrigues da Silva, mestra e doutoranda no Instituto de Geociências da Unicamp, fala da importância dos saberes quilombolas na pesquisa científica
Para além de ser bióloga de formação, a acadêmica Maíra Rodrigues da Silva tem na origem quilombola um aspecto central e estruturante em sua atuação profissional. Maíra, que é também mestra e doutoranda pelo Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), compreende que a ciência não é neutra. A partir disso, o viés adotado por Maíra é, nas suas próprias palavras, “o investigativo, para entender o impacto sobre quem vive” em territórios quilombolas.
Essa lógica estende-se também para o trabalho que exerce no Instituto de Referência Negra Peregum, onde atua como coordenadora da área de Combate ao Racismo Ambiental, e no Fundo Agbara, onde é especialista em Clima e Território. Aqui é necessário fazer uma observação: Maíra faz questão de destacar a sua origem quilombola – vide o seu perfil no Instagram (@umacientistaquilombola). A confluência entre os saberes quilombola e acadêmico, que é expressa também em sua presença nas redes sociais, é um dos aspectos norteadores para a atuação de Maíra na academia e na sociedade civil.
Ao passo que a sua pesquisa passa por analisar caminhos para regenerar solos impactados por metais tóxicos por meio da fitorremediação, processo que consiste no uso de plantas para purificar ambientes contaminados, ela o faz para denunciar o histórico de opressão contra a população quilombola.
Essa abordagem evidencia como ela valoriza a herança quilombola na quebra paradigmas na academia e no ativismo climático. “Tenho muito orgulho de contar o primeiro entendimento sobre o meu contexto, inclusive para entendermos porque sou hoje uma cientista quilombola. Fui construída e lapidada para ser quem sou hoje, inclusive para ter lugar de fala e de incidência do que faço, graças à trajetória de luta de muitos dos nossos que conseguiram incidir lá atrás”, explica. Confira o diálogo com Maíra Rodrigues da Silva.
Um ponto que se destaca de modo definitivo em seu trabalho é o impacto da poluição e contaminação ambientais. Como a pesquisa acadêmica é estratégica para, ao mesmo tempo, apontar a urgência de se mudar a relação com o meio ambiente e denunciar a lógica de zonas de sacrifício e o racismo ambiental?
Maíra Rodrigues da Silva: Por um determinado momento, a ciência uniu-se ao processo de desenvolvimento do capitalismo e, principalmente, tecnológico. Há uma série de coisas essenciais, como a criação de vacinas, estudos sobre medicamentos e diversas tecnologias importantes para o desenvolvimento do nosso país como um todo. Mas elas estão mais associadas ao desenvolvimento do capital do que à população de modo geral.
Quando entrei na universidade, entendi o nosso potencial para entender a importância de um determinado uso de um aparelho para curar uma determinada doença, mas também dentro da minha área, compreender o que para nós, quilombolas e povos tradicionais, esse sistema já é integrado. Quando falamos que coexistimos no ambiente, isso é por não sermos apartados da natureza. Por muitas vezes, os territórios dos povos originários, quilombolas e tradicionais sofrem com impactos de empreendimentos que os transformam em zonas de sacrifício, ao trazer o conceito de racismo ambiental.
A construção do racismo aqui, no Brasil, foi proposicional. Há uma estrutura que nos faz acreditar que a ausência de políticas públicas determina e força mais o contexto do racismo ambiental. Mas ela é planejada na verdade. A ausência de moradia e de saneamento, a transformação urbana e as violências que a população negra sofre no ambiente urbano quando se fala em remoções e na questão habitacional são muito bem desenhadas. Isso ocorre por delimitação urbana de um plano diretor, ou por uma organização fundiária extremamente perigosa entre esses territórios que exigem o direito à terra.
Há, então, os povos indígenas com a questão da demarcação. Já as comunidades quilombolas têm a garantia desse direito pelo artigo 68 [da Constituição Federal de 1988]. Existe também a dificuldade de, ao mesmo tempo, efetivar-se essa ação. Isso causa maior vulnerabilidade, pois a ausência do título da terra faz com que esses territórios sejam mais violados.
Isso causa o que Robert Bullard chama de zonas de sacrifício. Ou seja, trata-se de áreas de exclusividade onde existe um planejamento e a população é sacrificada em diferentes contextos. Isso pode ocorrer pela ausência de água potável e de ar mais limpo, por exemplo. Isso porque há desde projetos de mineração e de barragem, principalmente dentro do setor do agronegócio. Esse setor é um dos campeões quando se fala na emissão de gases de efeito estufa no Brasil com a questão do desmatamento e das queimadas. Houve, por esses dias, as queimadas no território quilombola Kalunga. Isso compõe essas áreas de sacrifício. Por outro lado, essas comunidades desempenham o que se constitui como ecologias negras. Ou seja, trata-se de áreas onde a população desempenha uma forma de manejo de proteção e em favor da vida e da biodiversidade.
Ao considerarem-se os saberes das populações originárias quando se fala no meio ambiente, como a fitorremediação pode ser uma aliada estratégica para a regeneração de ambientes poluídos e contaminados e, desse modo, funcionar como contraponto para práticas ambientalmente predatórias e monocultoras?
Maíra Rodrigues da Silva: A minha crítica à academia está neste ponto. Por diversas vezes, colegas dessas áreas fazem trabalhos e não veem quem mora ali e qual é o impacto sobre aquela população. Utiliza-se a ideia de que a ciência é neutra, mas isso não existe. Dizemos que há sempre um viés – o que utilizo é o viés investigativo, para entender o impacto sobre quem vive naquele território. Isso compreende o modo como a população utiliza aquele ambiente, come um determinado alimento. Vale também, por outro lado, para qual é a qualidade do ambiente dos alimentos plantados. Estudei, na minha pesquisa de graduação, como a contaminação do rio pode afetar as roças de mandioca. Já no mestrado, fui para a ideia de limpar essa área – como se poderia usar fitotecnologias que possam limpar. Isso é o que chamamos de fitorremediação.
Sabe-se que comunidades usavam o feijão-de-porco, um adubo verde utilizado na agroecologia em diversos povos para adubar o solo, e que na academia tem potencial de absorver metais pesados como chumbo, zinco e arsênio. O meu problema [de estudo] era o chumbo. Unimos os métodos tradicional e científico para limpar aquela área. Poderíamos ter, assim, uma possibilidade de projetos que ajudassem na restauração florestal e de áreas degradadas. Isso compreende também para haver mais respostas científicas sobre quais processos acontecem ali. Isso porque, na literatura, dificilmente haverá conexão de processos que precisamos entender na academia e acontecerão in loco. Isso contribui para o pensamento acadêmico científico.
Ao mesmo tempo, conseguimos acessar provas sobre o dano comprovado. Tive experiências em Brumadinho de fazer laudos para juízes e consultorias para saber a qualidade da água e quais foram os impactos no patrimônio natural. Por exemplo, pude fazer levantamento da agrobiodiversidade de um quilombo e mostrar a produção de um determinado alimento. Pude mostrar além de que houve interferência ali após o desastre para além do impacto direto da barragem e sobre não ter o direito de ir e vir. E essas comunidades não conseguem escoar a produção. O que tenho construído do lado de cá é para podermos estruturar essas evidências e o arcabouço jurídico para defendermos esses territórios. Para além disso, temos produzido também conhecimentos importantes para a academia.
Enquanto você falava, vieram à tona reflexões que Nêgo Bispo fazia sobre fugir da lógica do desenvolvimento e para se pensar na cooperação em que todos estamos no mesmo contexto. É por aí?
Maíra Rodrigues da Silva: Costumo dizer – e tenho discutido isso na minha tese – que a geologia faz também parte desse princípio de transferências energéticas de materiais entre compartimentos e esferas. O solo, o ar e um ciclo biogeoquímico estão em funcionamento, e são evidenciados e constatados pela ciência. Por outro lado, como Nêgo Bispo fala sobre confluência, não somos seres à parte.
Todos os seres, de moléculas a átomos, transferem energia a todo momento e isso faz parte da nossa cosmopercepção. Gosto [da teoria do filósofo] Eduardo Oliveira, que faz a metáfora da teia de aranha quando fala de cosmovisão africana. Se houver uma teia de aranha esticada e eu encostar de um lado, isso ressoará do outro lado. A ciência já comprova isso. Os nossos mais velhos também diziam, por exemplo, que o pulsar do nosso coração tem o mesmo sentido vibracional de uma transferência de energia entre um ecossistema aquático ou terrestre.
Nêgo Bispo já dizia que não falamos de ecologia, mas sim de roça de quilombo. Essa é a forma como entendemos o mundo não apenas a partir de categorias. Ao mesmo tempo, levar para a academia esse pensamento que não é cartesiano – ou seja, é contracolonizado – significa para nós que, mesmo vivendo em um sistema colonizado e no qual dependemos de um Estado colonizado para haver regulação fundiária e direito de usufruto, conforme o artigo 225 da CF88, de um ambiente ecologicamente equilibrado, a nossa forma de pensar e as nossas ações, por mais que sofram com efeitos da colonização, não são colonizadas.
Por exemplo, por mais que eu tenha precisado ir à escola, eu ia à tarde para [a região do] rio com o meu avô para cortar cana, por exemplo. Ou hoje mesmo, quando vou ao território, minha mãe me chama para colhermos verduras e legumes. Mesmo que eu não esteja lá o tempo todo, a divisão do alimento é coletiva. Isso porque entendemos que todas as pessoas devem estar bem nutridas, comendo bem e saudável, até para seguirmos [em frente]. Essas relações são circulares, pois quando se fala de que processo não é geracional, uma criança pode ter a sabedoria de ensinar ao mais velho – e vice-versa. É isso o que Bispo fala do pensamento contracolonial. Ou seja, podem haver processos de colonização, mas o nosso pensamento não será colonizado.
Acredito que para a construção, ao pensarmos nos momentos de crise pelos quais passamos, como climáticas e uma série de outras, a relação que ele traz do rio e a comparação da confluência são muito importantes. Por um lado, vivemos um período de greenwashing, muito na pauta da COP 30 [30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima]. Pôde-se ver, por outro, que menos de 60 países entre mais de 170 entregaram as suas NDCs. [N.R.: até 21 de outubro, data em que a entrevista ocorreu, somente 62 países haviam enviado as suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, em tradução livre). Trata-se, então, das metas de cada país para redução de emissões de gases do efeito estufa e para combate às mudanças climáticas.] Mas a Conaq, por meio da organização quilombola, construiu a sua própria NDC.
Como o apoio a projetos elaborados por pessoas pesquisadoras negras, quilombolas e habitantes de territórios vulnerabilizados é estratégico para que vozes e saberes desenvolvidos por esse mesmo grupo ganhem evidência e protagonismo no desenvolvimento de projetos e políticas na área socioambiental?
Maíra Rodrigues da Silva: Tenho dois exemplos muito bons de ações. Eu mesma sou fruto da importância da filantropia. Primeiro, no sentido da educação pública, de a universidade fazer o seu trabalho. Nós nos referimos a isso como tripé – a parte de ensino, pesquisa e extensão. Isso passa, por exemplo, por estudar a nossa região do ponto de vista do processo de como as comunidades salvaguardam o bioma e o protegem.
Pude fazer três meses de cursinho, o que mudou a minha vida. Eu era uma jovem que vivia na militância, mas não tinha nenhuma perspectiva, muito pela questão financeira, de imaginar que eu poderia estudar. Penso também sobre como consolidamos, por exemplo, a luta pelas cotas – no meu caso, dentro da Unicamp. Entrei na universidade por meio do ProUni. Mas antes disso trabalhei na extensão universitária na Unicamp, onde tive acesso à universidade pública, e consegui depois ir para o cursinho e para o ProUni. Nesse processo, o nosso poder quanto às políticas públicas e aos instrumentos do Estado é fundamental.
Do lado da filantropia, quando comecei o meu primeiro ano de graduação, antes mesmo de eu morar na cidade, consegui uma bolsa do Instituto Socioambiental (ISA) – era de uns R$ 125, que me auxiliavam. Eu fazia também banana chips com a minha mãe [para vendê-las], o que ajudava a cobrir o resto, e atuava na Apae como voluntária. Esse foi o processo em 2009 para uma quilombola do interior de São Paulo conseguir entrar na universidade. Ao fazer essa travessia e depois estar neste lugar, como especialista e pesquisadora, observo quão importantes esses projetos são.
Há o Fundo Agbara, que apoia o trabalho e o desenvolvimento econômico de mulheres negras no país, ou, por exemplo, o Instituto Peregum. Entro na organização como coordenadora da área de Combate ao Racismo Ambiental, mas vinculada a um projeto para jovens negros que estão na universidade em parceria com a Unifesp, e fazemos a formação de cerca de 30 a 50 jovens que estão na universidade. Eles têm um curso extenso com módulos falando sobre racismo ambiental, aprendem a fazer processos de incidência no território e a levar isso para a academia – racializar o debate climático e ambiental em diversas áreas do conhecimento dentro da academia.
Entrevista: Amauri Eugênio Jr.
