Formação no Galpão ZL trabalha com a saúde mental nas periferias
Em resposta a um diagnóstico que revelou altos índices de sofrimento psíquico no Jardim Lapenna, iniciativa da Fundação Tide Setubal e Casa de Marias forma rede local de profissionais e lideranças para oferecer acolhimento; ação alinha-se aos dados que mostram a sobrecarga mental que atinge as mulheres periféricas
O Jardim Lapenna tem visto, nos últimos anos, grandes transformações estruturais e na cultura do território, fruto de uma população cada vez mais articulada e que vem demonstrando a força e os saberes em diversas áreas. No entanto, há também no bairro enormes desafios ainda a serem enfrentados, inclusive quando se fala no acesso a serviços voltados à saúde mental nas periferias.
Um desses desafios vem gerando uma mobilização que está preparando, por meio de um curso realizado no Galpão ZL, núcleo de Prática de Desenvolvimento Local da Fundação Tide Setubal, em parceria com a Casa de Marias, profissionais e lideranças comunitárias para oferecer escuta qualificada e acolhimento em saúde mental. Essa abordagem vem como resposta a um diagnóstico territorial que revelou altos índices de sofrimento psíquico.
A ação é uma frente do Programa Saúde Mental e Territórios Periféricos da Fundação. O programa atua para democratizar o acesso à saúde mental nas periferias e busca instrumentalizar a rede local para lidar com demandas que, segundo reportagem da Agência Mural, sobrecarregam especialmente as mulheres periféricas, que se sentem “sozinhas, esgotadas e sem amparo.”
Da escuta do território à ação formativa
O objetivo de democratizar o acesso à saúde mental nas periferias – ou seja, em territórios onde os serviços públicos especializados são escassos – ganhou contornos precisos após um diagnóstico realizado pela Casa de Marias no final de 2024. A diretora geral da organização parceira, Ana Carolina Barros Silva, explica as principais demandas identificadas.
“A gente escutou bastante a necessidade do bairro de [haver] espaços para as crianças estarem para além da escola. A ausência desses espaços de contraturno escolar são lidos pelo território como um fator de adoecimento para elas”, comenta. Além da escassez de espaços de escuta psicológica, o diagnóstico apontou para a grande demanda das próprias instituições locais, que relatavam sobrecarga e adoecimento de suas equipes.
Essa realidade dialoga diretamente com os dados do Programa Saúde Mental e Territórios Periféricos da Fundação Tide Setubal. A saber, o diagnóstico parte do princípio de que “marcadores como raça, classe, gênero e território influenciam diretamente quem está mais ou menos exposto à precariedade da vida material, reprodutora de muito sofrimento psíquico”. A formação, portanto, surge como uma estratégia para fortalecer a rede existente. E essa lógica alinha-se à proposta do programa, que consiste na “valorização das potencialidades locais e das iniciativas territoriais”.
Enchente de 2025: a crise que demandou ação imediata
O plano original de formação, porém, sofreu o impacto de um episódio de emergência climática. “Em fevereiro, o Lapenna passou por uma enchente muito forte que mexeu muito com as pessoas”, relata Mauricélia Martins, analista de Programas e Projetos da Fundação Tide Setubal.
A crise exigiu uma ação imediata que antecipou e reconfigurou o projeto. Ana Carolina detalha a resposta. “A gente decidiu antecipar o trabalho, fazendo quatro grupos de acolhimento e de escuta, sendo dois para mulheres adultas e dois para crianças. Isso porque era, realmente, uma situação emergencial e de crise que precisava de uma resposta muito rápida.”
A sobrecarga relatada pelas instituições locais, agravada pela enchente, ecoou o cenário descrito na reportagem da Agência Mural, onde mulheres relatam viver imersas “em receios e preocupações”, uma realidade que a formação busca ajudar a enfrentar.
Multiplicar o cuidado: a formação em escuta e acolhimento
Após o atendimento emergencial, a formação teve início em agosto de 2025. O curso reúne cerca de 25 pessoas de instituições como escolas, Centros de Educação Infantil (CEIs), lideranças do grupo Guardiãs do Território e do próprio Galpão ZL. A proposta, como explica Mauricélia, é de multiplicação.
“As pessoas representantes de cada instituição participam da formação e devem retornar com esse material e com esse conhecimento para sua instituição e replicá-la.” Ela ressalta, então, a importância de preparar quem já está na linha de frente: “A gente identificou no processo de diagnóstico que há muitos profissionais que lidam com as questões bem sensíveis de um território de alta vulnerabilidade.”
A formação, que acontece mensalmente, é complementada por mentorias personalizadas para cada instituição, conduzidas por terapeutas da Casa de Marias. A construção do conteúdo ocorre de forma coletiva, adaptando-se às necessidades que surgem. “Percebemos que havia profissionais que trabalhavam com crianças que traziam, com frequência, a questão da infância e da adolescência. Então adaptamos um pouco o percurso”, conta Mauricélia.
Casa de Marias: lugar de escuta
A parceria com a Casa de Marias não é ocasional. A organização, que completa seis anos em 2025, tem a saúde mental de mulheres negras, periféricas e indígenas como missão central.
“É uma equipe hoje formada por várias profissionais, psicólogas, psicanalistas, musicoterapeutas, artes terapeutas, assistentes sociais que trabalham fazendo atendimento multiprofissional, acolhimento, acompanhamento e escuta”, explica Ana Carolina Barro Silva, diretora-geral da instituição.
Com sede na Vila Esperança, bairro da zona leste de São Paulo, a Casa de Marias é composta majoritariamente por mulheres advindas de territórios periféricos. Segundo Ana Carolina, esse fato influencia diretamente na sua atuação. “Isso faz com que também exista uma escolha. Para além das opções coletiva e institucional, há também escolhas individuais de essas profissionais quererem e desejarem pela sua experiência de vida e trajetória, atuar em espaços assim.”
Justiça social e saúde mental nas periferias: um diálogo inseparável
A iniciativa para promoção de serviços com foco em saúde mental nas periferias alinha-se à missão da Fundação Tide Setubal de enfrentar desigualdades socioespaciais. Para Mauricélia Martins, a saúde mental é um pilar da justiça social. “Não tem como a gente pensar em justiça social e não olhar o quanto as pessoas estão adoecidas, porque a injustiça adoece.”
Esta visão é, desse modo, corroborada pelos dados. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que uma em cada oito pessoas no mundo convive com algum transtorno mental, com incidência agravada nas periferias.
A psicóloga Karine Lima, entrevistada pela Agência Mural, reforça essa tese ao afirmar que “a falta de direitos básicos adoece, a falta de dinheiro adoece”. É nesse contexto que a formação no Galpão ZL ganha outros significados, atuando como um contraponto à precariedade territorial. Ana Carolina Barros Silva reconhece que a ação não resolve todas as demandas do bairro, mas vê seu valor. “Em termos ampliados, pensando no território como um todo, a gente está falando de um grãozinho de areia. Mas acompanhar essas mulheres e famílias gera uma série de movimentações positivas na vida dessas pessoas.”
Após o encontro de novembro, as instituições irão retomar a formação em 2026 para ingressar na fase de implementação dos projetos que elas construíram. O processo representa, enfim, um passo concreto na construção de uma rede de cuidado que, partindo das necessidades reais do território e fortalecendo os agentes locais, busca tecer uma comunidade mais acolhedora e saudável.
