A África nas escolas
Em 2017, a Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história da África e das culturas africana e afro-brasileira no currículo da educação básica, fez 14 anos. Fruto de uma longa luta do movimento negro contra o racismo, ela enfatiza que africanos e seus descendentes foram e são sujeitos importantes na formação […]
Em 2017, a Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história da África e das culturas africana e afro-brasileira no currículo da educação básica, fez 14 anos. Fruto de uma longa luta do movimento negro contra o racismo, ela enfatiza que africanos e seus descendentes foram e são sujeitos importantes na formação do país, dotados de saberes, valores e histórias, contrariando a abordagem eurocêntrica adotada até então, na qual os negros só eram citados nas aulas de história ao falar-se da escravidão.
“A rigor, a lei é um avanço significativo no que diz respeito a reformular a visão sobre África e os negros no Brasil. Agora, entre a promulgação da lei e se ela está sendo implementada, é um outro debate. Estamos em um momento de transição entre o que a lei promete e o que as escolas aplicam”, afirma Amailton Magno Azevedo, professor do programa de estudos pós graduados em História da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
Embora a maior parte dos livros didáticos brasileiros esteja de acordo com a lei, nas escolas frequentemente a iniciativa de abordar a cultura e história afro-brasileira para além das apostilas parte de ações individuais de professores com apreço pela temática. Para mudar esse quadro, formações continuadas e eventos que trabalham o assunto são importantes.
Na edição de 2017 do Festival do Livro e da Literatura de São Miguel, realizado pela Fundação Tide Setubal, o tema Letras Pretas envolveu 29 escolas públicas da zona leste de São Paulo no trabalho de atividades sobre a literatura, a cultura e a história afro-brasileira. Em formações, professores e coordenadores trabalharam conceitos como o letramento racial, que traz abordagens para o combate ao racismo nas escolas, e a literatura negra, ainda ignorada por muitos.
Este ano, 29 escolas públicas e 15 instituições socioeducativas desenvolveram atividades para o Festival. Dentre elas, estavam peças, apresentações musicais, contação de história, produção literária e rodas de conversa entre os alunos e com a participação de artistas e autores locais. Mas a participação das escolas não é restrita aos dias do evento. Desde o planejamento das ações, as instituições de ensino são protagonistas. “A participação da escola foi muito efetiva desde o momento de planejamento do Festival, quando pudemos até mesmo sugerir atividades, pois a temática da cultura afro-brasileira já tinha sendo abordada em um trabalho dentro da escola”, diz Maria Cristina Antoniarque, coordenadora da EMEF José Honório Rodrigues.
Algumas das atividades realizadas pela escola foram jogos típicos da África e uma roda de conversa sobre a influência da música daquele continente na MPB. Mas o maior sucesso ficou com a oficina de tranças afro, comandada pela professora de português Senilda Conceição Santana, que faz mais de 60 penteados nos alunos e até mesmo outros educadores na escola. A atividade sinalizou o fechamento de um ciclo de leituras de obras sobre a realidade da negritude que veio trabalhando desde o primeiro bimestre com estudantes do quinto ano. "Leciono há 20 anos e plantei muitas sementes, sempre falando que nossa luta é por igualdade de direitos", lembra Senilda. "Agora, essa semente tem que ser irrigada".
Alguns meses antes do festival, a Fundação Tide Setubal oferece aos educadores envolvidos formações sobre a temática trabalhada, nas quais a importância do assunto é discutida e são sugeridas formas de trabalhá-lo em sala de aula.
“Este é o quarto ano que participamos do Festival do Livro. Muitas vezes, as temáticas do festival já eram discutidas no dia-a-dia da escola, mas essa é sempre uma oportunidade de aprofundarmos a conversa. Este ano, notamos como muitas crianças ainda não tinham uma visão clara sobre a importância da cultura africana e da valorização da identidade negra”, diz Ângela Idelzuita Gonçalves de Oliveira, professora responsável pela sala de leitura da EMEF Dr. Pedro Aleixo. A escola foi em duas formações externas para trabalhar a temática, e depois os professores que haviam participado fizeram uma formação interna com todos os docentes, para compartilhar o que aprenderam. “Nos dias do festival, alguns alunos ficaram o dia todo na escola, mesmo não sendo obrigatório. Recebemos também escritores, estudantes de outras escolas e muitas atividades. As que mais fizeram sucesso foram a roda de conversa sobre o racismo e a oficina de turbantes – todo mundo participou e quis aprender”, conta a professora.
O desafio da temática
Os temas escolhidos pelo Festival costumam ser bem aceitos pelas escolas. “O Festival do livro, sobretudo nos últimos dois anos, lidou com temas latentes em nossa sociedade e no mundo, como o feminismo e a questão racial. Em nossas avaliações, consideramos que discutir esses assuntos é algo prioritário para a escola, e dialoga com nosso Projeto Político Pedagógico. Durante o Festival trabalhamos também com agentes da comunidade que não são alunos: com os pais e artistas locais. Isso é muito importante pois mostra a arte como algo conectado ao território”, afirma Josafá Rehem Nascimento Vieira, diretor da EMEF Pedro Fukuyei Yamaguchi Ferreira. Além de preparar peças teatrais sobre o tema, a escola levou a poesia negra para as ruas na ação PoetizaAÇÃO, na qual ofereciam a quem passava pela esquina da escola versos declamados pelos alunos.
“Já participamos do Festival no ano passado, e este ano achei o tema muito útil e desafiador. O racismo infelizmente ainda acontece, mas muitas vezes é visto como brincadeira. Optamos por trabalhar o tema por meio das linguagem da música e da performance, que envolvem muito os alunos, e nos aprofundamos também no estudo da cultura e literatura negra. Acredito que ao trabalhar a temática do racismo, contribuímos para melhorar o clima na escola e até mesmo nas casas dos alunos”, diz Renata Spott, professora de Artes da EE Deputado João Dória. A escola foi uma das instituições de ensino com mais atividades durante esta edição do festival, contando com apresentações de dança, rodas de discussão, produção literária dos alunos e muito teatro. “Uma das peças que produzimos foi tão bem recebida que, depois do festival, já recebemos convites para apresenta-la em três lugares diferentes”, conta a professora.
O protagonismo dos alunos também é tradição no festival, e muitas vezes as iniciativas de realizar algumas atividades parte deles. Na EMEF Euzébio Rocha Filho, na Vila Conceição, cinco estudantes do quarto e do quinto ano que frequentam a sala de leitura foram longe: publicaram o próprio livro – "Bela, a garota nos contos de fadas". Letícia Mirallas, de 11 anos, tomou coragem quando viu um poema de um menino mais novo que ela publicado no livro de português. Se baseou em contos de fadas e, com a ajuda das amigas Anabel Brigido e Raíssa Ferreira, elaborou sua história. O resultado? "Surpreendente. A Anabel sempre está me surpreendendo. Espero que ela vá longe", diz a mãe Beatriz de Melo Aquino. Para Anabel, que quer ser professora, "a sala de leitura é importante porque tem muitas coisas interessantes pra gente fazer".
Na EE Pedro Moreira Matos, a produção dos alunos também surpreendeu a professora de história, Luzia Souza. “Em sala de aula, dizemos debates e lemos textos para desmontar a ideia de que a África é só pobreza, fome, sem belezas. Pedi para que os alunos fizessem bonecas para trabalhar a representatividade das mulheres africanas e ficaram ainda mais lindas que o esperado, me impressionou”, diz a professora. Os alunos também trabalharam o grafite e fizeram bandeiras de diferentes países africanos.
Com informações de Periferia em Movimento