Se a gente não se relacionar com quem pensa diferente, a gente perde a chance de se expor ao contraditório – Fundação Tide Setubal entrevista Rafael Poço
Por Amauri Eugênio Jr. Dizer que o debate político está polarizado não se trata de exagero. De acordo com pesquisa feita em 2019 pelo Instituto Ipsos, 32% dos brasileiros consideram que não vale a pena conversar com quem pensa diferente deles quando o assunto é o contexto político. Dentro desse cenário, o papel das […]
Por Amauri Eugênio Jr.
Dizer que o debate político está polarizado não se trata de exagero. De acordo com pesquisa feita em 2019 pelo Instituto Ipsos, 32% dos brasileiros consideram que não vale a pena conversar com quem pensa diferente deles quando o assunto é o contexto político. Dentro desse cenário, o papel das redes sociais para acirrar os ânimos entre quem tem visões de mundo distintas é significativo.
Diante desse panorama, iniciativas para reduzir a polarização e melhorar o nível de diálogo, inclusive político, são necessárias. Em entrevista à Fundação Tide Setubal, o advogado e ativista Rafael Poço, idealizador do Despolarize, projeto voltado à ampliação de repertório para lidar com conflitos e estimular melhores experiências de diálogo entre pessoas com posicionamentos políticos diferentes, fala sobre a iniciativa, a importância de contato com quem pensa para ampliar horizontes e como a polarização causa danos importantes para a democracia.
Confira a entrevista a seguir.
O que o Despolarize propõe para melhorar o nível do debate sociopolítico, indo além do processo eleitoral?
O Despolarize é inspirado em algumas iniciativas de outros países que buscavam melhorar o ambiente democrático, estimulando as pessoas a dialogar, trocar as suas percepções e a se aproximar. Adaptamos isso junto ao Politize e criamos o projeto com o objetivo de melhorar a qualidade do debate público no país e, desse modo, o ambiente democrático.
Isso foi feito de algumas maneiras: produzimos conteúdos para facilitar o acesso de mais pessoas a conhecimentos sobre polarização e quais impactos têm, sobre técnicas para dialogar e sobre como é possível conviver e negociar os nossos conflitos quando falamos com alguém que pensa diferente.
O Despolarize produz conteúdos baseados nos conhecimentos sobre neurociência, comunicação não violenta e negociação de conflitos, com linguagem mais simples e acessível para as redes sociais, para mais pessoas terem acesso. Temos algumas ações de formação, como workshops, cartilhas sobre como fazer atividades de diálogo e que a gente chama de despolarização. Haverá produtos para candidatos que querem ter comportamento menos polarizado e produtos focados em eleitores, sobre como é possível atuar a partir da mudança de comportamento como pode influenciar o ambiente democrático.
Isso remete também à cultura do cancelamento. Quais são os perigos de colocar em equivalência o discurso de ódio e declarações feitas por falta de informação?
As redes sociais não são os ambientes mais favoráveis para separar o que é discurso de ódio do o que é uma pessoa mal informada ou com outras referências. As redes favorecem que a gente nutra estereótipos sobre os outros. Muitas vezes, é necessário dialogar com uma pessoa para entender qual é a intenção dela.
Falar sobre isso é muito difícil neste contexto atual. Existem, de fato, pessoas que perderam a vergonha de defender ideias criminosas, preconceituosas e violentas. O primeiro grande desafio é conseguir identificar as pessoas que, independentemente das posições políticas, estão dentro do campo democrático e não defendem violência contra quem pensa diferente.
Para quem tem como objetivo agredir, o tratamento que deve ser dado é o da lei. É necessário separar um posicionamento que decorre da intenção de propagar violência daquele que vem de outro entendimento ou percepção da realidade, em que essa pessoa não dá muita atenção para determinadas expressões ou palavras utilizadas, mas pode ser o símbolo de rejeição, descaso ou mesmo de preconceito para determinado segmento.
A gente propõe haver diálogo para fazer isso. Ao ler uma postagem e, de imediato, não se sentir diretamente representado ou sentir-se impactado de forma negativa, já se presume uma série de coisas sobre todas as pessoas que pensam daquela forma ou compartilham daquela opinião. São gerados estereótipos a partir disso e há aumento da agressividade nesse caso, pois não existe abertura de nenhum dos lados. Com o Despolarize, queremos contribuir para quem estiver no campo democrático, seja com posições mais conservadoras ou progressistas, nutrir um debate público menos tóxico e mais respeitoso e construtivo.
Trata-se de estabelecer limites claros, inclusive judiciais, entre liberdade de expressão e discurso de ódio, correto?
O discurso de ódio precisa ser tratado com punição. É necessário separá-lo de um posicionamento infeliz, que decorre de outro repertório de vida. Para quem não quer anular os outros ou causar dor, é necessário estabelecer relações e conversar, pois elas são as pessoas que compõem o campo democrático – e que aceitam as diferenças. É necessário buscar diálogo com elas, e não importa se forem do campo progressista ou mais conservadoras.
Até porque a polarização tende a desumanizar a pessoa com quem se tenta dialogar, correto?
Por causa dos estereótipos, a polarização impede hoje que as ideias se encontrem. É como se a gente dissesse: o que deveria ser o fundamento da democracia, que é a convivência das ideias diferentes, está se tornando algo negativo para boa parte das pessoas. Dependendo do radicalismo, conversar com alguém de outro campo político é visto quase como uma traição. Ou seja, perde-se o valor do fundamento da democracia que é, em última análise, a tolerância mútua e a capacidade de, no mínimo, conviver e aceitar diferenças.
Os estereótipos, que consistem em percepção distorcida sobre quem pensa diferente, alimentam, em muitas vezes, uma percepção de ameaça. Conviver menos resulta em entender menos o que uma pessoa pensa, o que é importante para ela e o que a motiva a ter certas posições. Somado a um contexto em que as fake news criam percepções da realidade segmentadas, ao dividir a própria percepção da sociedade, isso gera uma sensação de risco muito presente para boa parte das pessoas.
Não conhecer uma pessoa e ouvir e ler o tempo todo sobre haver alguma conspiração por trás, além de que elas são mal intencionadas, podem gerar uma percepção de ameaça e risco para elas. O funcionamento cerebral muda e passa a prevalecer o estado de defesa. Se a percepção é de risco, o nosso cérebro ativa mecanismos de defesa, que nos levam a priorizar menos, a focar em se fechar cada vez mais, e a contra-atacar imediatamente.
Qual é a importância de ter em mente que não será possível convencer uma pessoa de imediato, pois é um processo contínuo para chegar a algo próximo do consenso?
Ser escutado e construir argumentos é muito mais fácil com um amigo do que com alguém que você considera inimigo. O ponto é que se a gente não nutrir relações e convivência entre pessoas que pensam diferente, a gente perde a possibilidade de, inclusive, mudar de opinião e se expor ao contraditório. A polarização isola pessoas em grupos e narrativas e impede o encontro das ideias e que as pessoas se abram, inclusive para a mudança de opinião.
O alinhamento é feito de forma automática. Existem muitas nuances dentro de um mesmo campo político, em que há pessoas com dúvidas e com diferenças consideráveis. Mas tudo se anula porque a polarização requer alinhamento automático em torno de narrativas para, em geral, deslegitimar e atacar os outros, que são desumanizados – deixaram de ser pessoas com suas posições, complexidades e contradições, e passaram a ser um estereótipo.
Se uma pessoa tem percepção de que o outro não tem compromisso com o país, isso faz aumentar a aceitação de medidas extremas e até de violência. Quanto menos convivemos, menos entendemos as pessoas. Quanto mais houver fake news, discurso de ódio e manipulação, tendemos a ter percepção ainda mais extrema sobre as outras pessoas que pensam diferente, pois não convivemos com elas. Em muitas vezes, o passo seguinte é tolerarmos mais violência, perseguição e termos menos cuidado recíproco, já que aquelas pessoas [supostamente] têm alguma intenção oculta e são maliciosas.
Estar em contato com pessoas de outro espectro político ajuda, ao furar a própria bolha, a ter mais sensibilidade para dialogar e separar um discurso contrário, mas dentro do campo democrático, do discurso de ódio?
Sim. As bolhas cumprem um papel importante, que é o de organizar pessoas, ideias, grupos de discussão em torno delas, aprofundar a reflexão e elaborar propostas para determinados grupos sobre determinadas ideias. Isso é natural e saudável que aconteça. É necessário as ideias nessas bolhas conviverem. Para isso acontecer, as pessoas precisam conviver. Quando convivem de forma saudável e dialogam, as pessoas conseguem encontrar motivações e experiências em comum. Conviver ajuda a entender as posições de quem pensa diferente. Isso é suficiente para não atribuir intenções negativas e não deslegitimar posições alheias.
É saber respeitar e discordar ao mesmo tempo, correto?
É saber discordar e reconhecer na divergência um valor para conviver e dialogar, e mudar a forma como a gente encara conflito. No fundo, é sobre como a gente transforma conflitos e não como a gente os demoniza. Haver conflitos é muito importante e muito saudável, mas como encontro das diferenças. Isso é o que precisa ser estimulado. O que não pode acontecer o uso da violência como forma de de lidar com o conflito. É isso o que vem acontecendo cada vez mais, estimulado por fake news, discurso de ódio e polarização.