Fazer com a comunidade é fundamental
Por Fernanda Nobre e Amauri Eugênio Jr. O ano 2021 ainda está no primeiro semestre, mas já pode ser considerado marcante na trajetória de Maria Alice Setubal – ou Neca, como é também conhecida. Presidente do conselho curador da Fundação Tide Setubal, fundação que leva o nome de sua mãe e que chega […]
Por Fernanda Nobre e Amauri Eugênio Jr.
O ano 2021 ainda está no primeiro semestre, mas já pode ser considerado marcante na trajetória de Maria Alice Setubal – ou Neca, como é também conhecida. Presidente do conselho curador da Fundação Tide Setubal, fundação que leva o nome de sua mãe e que chega aos 15 anos de atuação, Maria Alice completa 70 anos, em 29 de março, refletindo sobre a sua história até aqui e sobre maneiras para continuar em constante evolução.
O passado está presente como um referencial, tal como os diários deixados por sua mãe relativos à época em que fundou o Corpo Municipal de Voluntários (CMV) – “fiquei muito surpreendida com a visão que ela tinha do que seria um trabalho de impacto social”, relata, sobre a inspiração para criar a fundação que atua há 15 anos no Jardim Lapena, na zona leste de São Paulo. Tal como o trabalho da fundação, os horizontes para a atuação social de Maria Alice foram expandidos por meio do período em que presidiu o conselho do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), cargo que deixou no início deste ano.
Confira a seguir o que Maria Alice Setubal tem a dizer sobre o trabalho pela promoção da equidade e combate a modalidades diversas de opressões, o trabalho em conjunto e em rede para atingir esses objetivos, por que o território importa e qual legado quer deixar.
Quem era Maria Alice quando criou a Fundação Tide Setubal, em 2006, e quem é Maria Alice em 2021, após 15 anos de atuação nesse campo?
A Maria Alice de 2006 queria muito ressignificar o trabalho de minha mãe. Descobri a atuação dela na década de 1970, quando o meu pai foi prefeito de São Paulo. Em 2004, resolvi olhar todas as coisas que ela havia escrito e resgatar todos os escritos dela, diários, cartas – ela escrevia muito – e discursos da época em que criou o Corpo Municipal de Voluntários em São Paulo.
Ao mergulhar na história de minha mãe, pois eu queria escrever um livro para os meus filhos e sobrinhos, ressignifiquei muito o papel dela como uma pessoa que atuou na área social, especialmente em São Miguel Paulista. Fiquei muito surpreendida com a visão que ela tinha do que seria um trabalho de impacto social, com centralidade no desenvolvimento humano, que deveria trazer junto a comunidade e se articular com as políticas públicas da periferia. Quis, junta com os meus irmãos, criar uma fundação familiar que tivesse o nome dela e na qual atuássemos em territórios onde havia equipamentos que levavam o nome Tide Setubal.
A Neca que chegou em São Miguel, em 2006, era essa pessoa. Eu trazia a experiência do Cenpec, que criei em 1987, com o qual viajei pelo Brasil inteiro, em cidades no meio da Amazônia, no interior de Goiás, no Nordeste e muito em periferias de cidades. Foi essa experiência que eu trouxe quando criei a Fundação Tide Setubal.
Maria Alice Setubal explica o processo para criar a Fundação Tide Setubal
Aprendemos todos os dias na Fundação e há algumas viradas muito importantes que tive com o trabalho. A principal: quando eu atuava no Cenpec, era sempre sair da matriz e ir em direção a um município rural, periferia, a regiões quilombolas ou ribeirinhas e voltar ao centro. A Fundação me fez olhar a partir da periferia – sem me colocar como uma pessoa periférica, obviamente. Isso faz muita diferença.
Como você se vê hoje como liderança no campo do Investimento Social Privado? Quais janelas você acha que abriu nesse universo durante as duas gestões à frente do Gife?
Foi mais uma janela que abri. Claro que eu já conhecia e dialogava, mas ter a visão do todo foi superimportante e interessante, pois ampliou muito o meu olhar para trazer esses temas. Assumi o Gife dentro de um contexto de crise, em 2016. Estamos vivendo um contexto com várias crises – institucional, econômica, social, política e, agora, de saúde. [Tive] de ter de puxar a liderança em que o ISP não poderia se omitir.
Temos o papel de conscientizar a sociedade sobre a importância de se pensarmos em questões fundamentais no Brasil e, talvez, no mundo. O tema das desigualdades sociais é superimportante no Brasil hoje e, dentro dele, deve-se pensar nas questões raciais e de gênero. Começamos a pautar a questão da democracia. Nem tínhamos ideia do que iria acontecer, mas tínhamos bastante clareza de que era um tema no qual já deveríamos atuar.
Pensar no campo do ISP é pensar no diálogo, pois estamos entre o setor privado e quem está na ponta. Temos de aprender muito com o território e com o setor privado, pois ele traz questões importantes de sistematização, avaliação, monitoramento, que são fundamentais para medirmos o impacto e entendermos quais iniciativas e políticas deram certo e quais não deram certo, por que e em quais condições, e quais iniciativas têm capacidade de ser escaladas. Ao mesmo tempo, o ISP pode e deve dialogar com as políticas públicas, como um alavancador e interlocutor de políticas públicas e como uma organização que possa fazer advocacy por elas.
Neca destaca as diferenças na atuação dos institutos nos EUA e no Brasil, assim como as particularidades visualizadas no panorama nacional
No início da entrevista, você havia citado a premissa de que o território importa, o que tem papel fundamental para o trabalho da Fundação. Para você, por quais motivos o território importa?
São vários. No começo da Fundação, olhávamos para o desenvolvimento local e, para isso, precisávamos entender qual era o contexto e sobre as pessoas. O território não é só geográfico ou histórico, mas também sociológico, psicológico, cultural. Entendemos de modo muito mais concreto e profundo, ao longo dos anos, a importância de olhar para esses setores e dimensões do território. Isso traz uma riqueza e uma experiência incrível e muito importante.
Quando mudamos a missão da Fundação, focando nas desigualdades socioespaciais das grandes cidades, não quisemos perder o foco do território. Estar na periferia de São Paulo é totalmente diferente de estar no centro e estar na periferia da periferia, como é o caso do Jardim Lapena, é muito diferente de estar no centro de São Miguel. Quanto mais conseguimos entender e aprofundar nesses territórios específicos e diversos, maiores são as possibilidades de o impacto ser mais positivo.
Neca explica por que o território importa, uma das premissas do trabalho da Fundação Tide Setubal
Quais são os desafios que você vê na relação com o poder público para mostrar como as causas relevantes para o trabalho da Fundação, como o combate à desigualdade racial e de gênero, precisam ser tratadas simultaneamente, por estarem interconectadas?
É sempre desafiador atuar com o poder público, pois há muitas mudanças entre os profissionais que estão à frente – políticos e secretários – não só de uma gestão para a outra, mas dentro da mesma gestão. Isso lembrando também de que quando falamos de políticas públicas, estamos falando do executivo, legislativo e judiciário. Temos uma lição de casa, enquanto campo das fundações e institutos: aprender o funcionamento do poder público. Por muitas vezes falamos que não quiseram fazer tal projeto ou que há muita burocracia.
De novo, é fazer com: conversar, trazer os secretários e as equipes deles, ir ao legislativo e conversar com os vereadores e assessores – é a mesma coisa no judiciário. O tempo da política do tempo do setor privado e das fundações. É necessário ter clareza do que é possível escalar para política pública e qual é o trabalho de uma fundação, por que determinado político é contra aquilo, ou porque o projeto em si não tem escala maior para virar uma política pública, pois se trata de um assunto muito específico.
Maria Alice Setubal fala sobre o panorama racial e de gênero no Brasil
O evento George Floyd potencializou o desvelamento das desigualdades e das questões raciais no Brasil, pois a sociedade passou a enxergar e se colocar como racista. Há uma conscientização que eu nunca havia visto na história do Brasil: saímos de uma democracia racial para assumirmos que somos um país racista. Claro, existe um longo caminho e, sem dúvida, governos de direita, especialmente de extrema-direita, têm dificuldade de lidar com essas questões. Isso dificulta ainda mais a relação com o setor público.
Com tudo isso, acho que caminhamos bastante nos últimos anos e aceleramos essa questão ano passado. Vejo muitas empresas que passaram a olhar para a questão racial de forma mais concreta, trazendo para dentro esse debate. Lógico, o caminho é longo e não basta colocar estagiários e trainees, pois precisa haver um encarreiramento e mudar a forma de seleção das pessoas, e a forma de se chegar aos postos de diretoria e conselhos.
A minha sensação é de que esse caminho vinha muito por algumas empresas e fundações mais abertas e identificadas com o campo mais progressista, em que se trazia o debate das desigualdades raciais e de gênero – idem com algumas empresas, incorporando [as pautas] LGBTQIA+ e de pessoas com deficiência. É um movimento, mas é muito mais lento do que gostaríamos. O Brasil mudou a chave e isso é importante, pois passamos a enxergar. Por mais que houvesse dados, estudos e pesquisas falando sobre desigualdade e questões raciais, isso não era visto sequer nas universidades. Mas, acho, isso tudo está mudando.
Quando você pensa em legado, qual você construiu e quer construir? O que vem à sua cabeça quando pensa em legado?
A minha história sempre foi um pouco intuitiva nas iniciativas que liderei. 2015 foi a primeira vez em que pensei sobre qual legado queria deixar, o que eu queria para os 10 anos seguintes de forma mais estruturada. Fiquei bem feliz com o resultado e sobre como caminhamos nessa direção, quando vejo como estamos atuando e o que estamos construindo enquanto equipe. Estou pensando no legado que posso deixar para os meus filhos e netos sobre valores de vida, visão de mundo e como atuar. Para os meus sobrinhos também: estou me vendo no papel de mentoria, ao ser muito procurada por eles para contar histórias, ouvir, pensar junto a eles.
Estou também em um momento no qual comecei, pela experiência de ler muito sobre as questões dos negros, da diáspora e da África, a olhar o que a cultura negra traz sobre a ancestralidade. Comecei a olhar de novo – reli tudo o que escrevi à época em que criei a Fundação – e estou indo atrás das histórias da minha avó e da minha bisavó – não sei nada sobre ela. Li por estes dias uma coluna de Djamila Ribeiro na qual dizia que estava escrevendo cartas para a avó. Adorei e acho que copiarei: vou escrever cartas para a minha bisavó e avó. É outro legado que, quem sabe, eu possa deixar. Vamos ver.