Números não traduzem os múltiplos efeitos e o tamanho das desigualdades no Brasil – em especial nas vidas de quem as sofre de maneira severa. Todavia, eles ajudam a dar dimensão de seu alcance e, em algum nível, a sensibilizar quem é indiferente às suas consequências extremas. Um exemplo: cerca de 16 milhões de pessoas vivem, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 11,4 mil favelas Brasil adentro. Para efeito de comparação, a população dos Países Baixos é de 17,1 milhões de pessoas e a do Chile, 19,1 milhões.
Esse indicador torna-se ainda mais emblemático ao considerar-se que 33 milhões de pessoas viviam em insegurança alimentar absoluta em 2022. A população do Peru, como parâmetro, é ligeiramente menor, com 32,9 milhões de cidadãs e cidadãos.
Ainda que esses números não deem rosto e possam até mesmo causar sensação de distanciamento, eles ajudam a colocar em perspectiva a gritante desigualdade social. Isso torna-se ainda mais veemente ao considerar-se que o país apresentou o nono maior Produto Interno Bruto (PIB) mundial em 2022, enquanto é também um dos países mais desiguais em escala global.
Tamanhas disparidades e a extrema urgência para enfrentá-las compuseram o chamado feito por Hélio Santos, doutor em Administração pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Conselho da Oxfam Brasil, durante o lançamento do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades. Esse processo passa pela promoção da equidade em âmbitos racial e de gênero, logo, projetos que não as contemplem tendem a ser ineficazes.
“Chega de band-aid para curar a fratura exposta. Este país perde por não cuidar das suas maiorias. Mais da metade dos lares brasileiros é liderada por mulheres. Consequentemente, qualquer projeto que não transversalize esses dois itens não cuidará das minorias. Sustentabilidade social, ambiental e econômica são fundamentais, mas é imoral o tamanho das nossas desigualdades.”
Dos números à ação
Falar sobre a interseção de números que descrevem disparidades de raça e gênero é fundamental para compreender o tamanho das desigualdade no Brasil. Idem para considerar ações são necessárias para se colocar em prática e guiar o desenvolvimento de políticas públicas voltadas ao bem comum.
Para se ter uma ideia, conforme o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), uma em cada cinco famílias sofre com a fome. Esse cenário, que é o dobro em comparação com lares chefiados por pessoas brancas (10,6%), ganha tons mais assustadores quando integrados ao gênero. Nesse sentido, 22% dos lares comandados por mulheres negras lidam com esse cenário.
Além disso, as disparidades são nítidas quando a questão salarial entra na história. Segundo o Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), rendimentos médios de mulheres negras abrangem 48% dos salários de homens não negros. Tais dados dão dimensão, de modo inequívoco, do tamanho das desigualdades no Brasil.
Para Tomás Wissenbach, doutor em administração pública e governo e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), observar tais informações e números é possível graças à existência de instituições consolidadas de pesquisa e produção de dados públicos. Todavia, há pontos importantes de atenção para fortalecê-las e, consequentemente, melhorar a efetividade de políticas públicas.
“É necessário fortalecer a produção de dados públicos. Isso não somente no nível federal, com a reconstrução do IBGE e do IPEC, que sofreram ataques constantes nos últimos anos. Mas também nos estados, que vários deles desmontaram e extinguiram as suas agências estaduais de estatística e produção de informações públicas, e principalmente nos municípios, que não só estão muito mal estruturados em termos de produção de dados, como têm feito algumas opções e prioridades erradas”, ressalta.
Observar para evitar o ponto de não retorno
O acesso a dados e números para a visualização de problemas existentes e o desenvolvimento de ações para enfrentá-los está no radar do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades. Esse ponto compreende a criação do Observatório Brasileiro das Desigualdades. O projeto visa realizar diagnóstico da situação atual do tamanho das desigualdades no Brasil a partir do levantamento de dados relativos a indicadores em 12 áreas.
Para Maria Alice Setubal, presidente do Conselho Curador da Fundação Tide Setubal, o acesso a tais dados, por meio do Observatório, fomenta o senso de autorresponsabilização na sociedade civil. “Não é somente teoria, tampouco apenas discurso. Estamos, em conjunto, nos responsabilizando para atuar, cada um nos seus setores e áreas, com ações concretas, nos responsabilizando para mudar esses indicadores.”
Por fim, a análise de tais números e dados permite a busca por novas e melhores soluções antes de haver o risco do surgimento de um cenário incontornável. “A área ambiental tem um conceito que considero superimportante: o do não retorno. Se não mudarmos tudo o que foi falado aqui hoje, chegaremos ao ponto do não retorno social, pois o tecido social estará tão esgarçado que nós não mais conseguiremos retornar. As desigualdades estarão em um ponto que nós não vamos mais conseguir retornar.”
Evitar a chegada ao ponto de não retorno social é uma missão de todos os atores da sociedade civil. Para isso, os números e dados são aliados estratégicos para virar o jogo das desigualdades.
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Texto: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Tânia Rego / Agência Brasil