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No Circuito Literário nas Periferias, a literatura em que todos cabem

Por Tony Marlon / Ilustração: Camila Ribeiro

 

 

Naná DeLuca ficou por cinco anos se arrodeando com uma história que existia dentro dela, mas que sempre pareceu inacabada quando vinha para a palavra escrita. Soube, ela contou durante a mesa Literatura Trans, na Feira Literária Independente da Tapera Taperá, que alguns e algumas de todos e todas nós têm existência que a linguagem não suporta. Vidas para as quais a língua não construiu vocabulário, longe de ser coincidência que as coisas sejam exatamente assim.

 

“A língua e a linguagem são também instâncias de opressão, campos de batalha. Portanto, a gente precisa buscar as nossas emancipações também nelas”, explicou para se apresentar ao público do encontro. “Quando se é uma pessoa trans na sociedade, você muito rapidamente percebe a língua como algo violento que te mina, que te rui. Que não fala de você. Existe um esforço constante pra se caber nessa língua que nem sequer é sua”.

 

Naná seguiu contando que “O Sexo dos Tubarões” nasceu quando ela percebeu que não era a falta, mas o excesso de palavras que não deixava o seu conto emergir. Retirou todas as que indicavam gênero, perdeu por conta disso alguns bocados de adjetivos, e descreveu dessa maneira para o público da feira como narrou a história de uma criança que sonhava ser tubarão, sem precisar dizer se ela era um homem ou uma mulher. Cis ou transgênero. “Neste movimento todo surgiu um esforço quase que de engenharia com as palavras. De tencionar, de quebrar a língua até achar um caminho de escrita em que todos coubessem”, como couberam. Publicado pela Editora Patuá, o livro pode ser conferido mais de perto por aqui. 

 

Escute o que Nana DeLuca escreveu sobre “O Sexo dos Tubarões”

 

Recomendável para ouvidos sensíveis em tempos difíceis.
 

 

A mesa Literatura Trans foi apenas uma dos 14 eventos e atividades em 2018 que compõem o Circuito Literário das Periferias – CLIPE, iniciativa da Fundação Tide Setubal para impulsionar a democratização de produção e acesso à literatura a partir das periferias de São Paulo.  Teo Martins, Preto Teo, ainda em descobrimento sobre o nome que quer carregar, ator por formação, e um dos escritores ao lado de Naná no bate-papo, esticou a palavra periferia, e problematizou que para além daqueles e daqueles moram longe, o termo conta sobre aquelas e aqueles que moram fora do que a sociedade convencionou nomear e reconhecer.

 

“As nossas vivências são periferias. A gente está acostumado com as periferias geográficas, mas há também as existências que estão nas periferias. As periferias de gênero, de saúde, as periferias biológicas. Então a Literatura Trans se propõe a registrar essa narrativa, feita por um tipo específico de pessoas”, definiu.

 

Teo contou que sempre foi apaixonado por livros, teve acesso a eles, porém, nunca havia se imaginado um escritor, se enxergado dessa maneira. “Dentro dessa educação que eu tive acesso, eu fui acreditando que escritor é aquele tipo de cara, com aquele tipo de estudo que fala sobre aquele tipo de coisa”, revelou, emendando que escrever foi apenas seu primeiro passo, desafio, pode se assim dizer: “Nossos títulos, as nossas possibilidades dependem, na maioria das vezes, da validação de terceiros. É o famoso ter a autoestima de um homem hétero branco que muito facilmente se posiciona dentro de suas profissões, dos seus fazeres. Isso acontece diferente com a gente”.

 

Lançado recentemente pela Padê Editorial, dentro da Cole-sã Escrevivências, EP, o livro de estreia de Teo traz uma poesia que não brota apenas da boca, do que é escrito pela palavra, de uma originalidade em enxergar o mesmo mundo que o mundo enxerga, todos os dias. Nasce, antes de tudo, de um lugar próprio neste mesmo mundo. É uma literatura, como trouxe Erick Grener, que também compôs a mesa, de contar o mundo com um olhar original que não poderia nascer, nunca, de outra pessoa a não ser quem é este próprio mundo.

 

“Os exemplos que a gente tem na literatura mais veiculada contam sempre sobre a transição, como se ser uma pessoa trans se resumisse a isso, a essa transição com hormônios. Não se reflete, por exemplo, que existe uma construção sobre essa masculinidade, como é o caso dos poemas que o Teo traz”, problematizou Erick, que apontou que muitas pessoas cisgênero vem escrevendo de maneira desastrosa sobre pessoas trans. Especialmente nas universidades, espaço de sua luta pessoal. “Dentro da academia eu sinto que existe uma curiosidade sobre a pessoa trans. As pessoas vão te ouvir, escutar a sua história, mas é para contar para os amigos depois, não é pra refletir e lidar com isso como parte da própria vida”.

 

 

O MEU OLHAR NASCE DAQUI

 

Bibi Abigail trouxe um olhar mais biográfico para a mesa já no fim da tarde do sábado, seis de outubro, quando toda essa conversa aconteceu, no Tapera Taperá. Recém poeta, se arriscou em contar o que andava sentido e sendo, em poemas, apenas no começo de 2018, apesar de acreditar que faz isso tem umas duas vidas e meia. Foi se encontrando com a literatura de Tatiana Nascimento, Idianara Siqueira, ou com coletivos como o argentino Luditas Sensuales, que Bibi foi descobrindo na poesia um canto de manifestação de humanidade que não encontrava nos textos científicos que vivia escrevendo como filósofa. Aí veio a Susy Shock:

 

 

Foi com a argentina Suzy que Bibi chegou até aqui: “As pessoas Trans não balançam apenas o binarismo homem e mulher. Elas também abalam, estremecem, fraturam o binarismo humano e animal. No sentido pejorativo mesmo, de você ser expulso do campo do humano. Por isso que travestis e pessoas trans podem ser mortas a Deus dará e com requintes de crueldade. E também com este olhar de reinvindicação, mesmo. Se a humanidade é isso, obrigado, não quero ser isso. Sou monstra mesmo”.  Para ela, contou no encontro, “a escrita é um ato para além de entrar em contato com o outro, de se fazer compreender, mas é algo, “aprendeu com Tatiana Nascimento, “como algo que eu faço para entrar em contato comigo mesmo e vomitar alguma coisa que está em mim, que naturalmente irá afetar outras pessoas também”.

 

De leitura em leitura, ocupando com seu zine-livro espaços como TranSarau, o Dominação – A Batalha, ali no Largo São Bento, que Bibi foi, palavras dela, flertando com a poesia mais e mais de perto até chegar ao lugar em que se encontra hoje, uma das pessoas que puxam o Slam Marginália. E como toda boa literatura, a linha da história não foi única, não foi reta, e contou com dezenas de tramas, subtramas, dentro do enredo principal. Como a que encerra essa reportagem: “a transição dessa crença (da poesia como ferramenta de transformação da realidade) aconteceu comigo paralelo a minha transição de gênero. Eu ainda não elaborei essa conexão, mas sei que não é uma coincidência”, finalizou a filósofa e poeta.

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