O plano inicial era redigir este texto em formato jornalístico, para ser um relato do que Angela Davis diria. Mas, dias antes da coletiva que ela concederia à imprensa, eu estava conversando sobre a condução da pauta com Fernanda Nobre, gerente de comunicação da Fundação Tide Setubal, quando ela me sugeriu para escrever um relato com as minhas impressões sobre as declarações que Angela daria e, quem sabe, sobre o que ela responderia aos questionamentos que eu poderia fazer.
O sentimento sobre a mudança na pauta e o modo como eu iria escrever foi, ao mesmo tempo, de empolgação e apreensão. Afinal, estamos falando de uma das maiores referências vivas da luta antirracista em todo o mundo e que inspirou muita gente a lutar pelos valores de equidade e justiça – e qualquer descrição adicional sobre quem ela é ou representa tende a ser redundante. Esses são os motivos pelos quais este texto foi escrito em primeira pessoa.
OK, a vinda de Angela Davis ao Brasil teve como um dos motivos o lançamento de sua autobiografia, mas o momento em que ela decidiu pisar novamente em nosso solo foi extremamente oportuno, para dizer o mínimo: estamos passando, sem eufemismos, por um momento em que as instituições democráticas estão sendo colocadas em xeque, direitos básicos estão sendo sucateados e setores populacionais mais vulneráveis temem pela própria sobrevivência.
A sensação que tive ao vê-la a poucas fileiras de separação na coletiva de 21 de outubro, assim como na palestra realizada no mesmo dia à noite, no Parque do Ibirapuera, e na que aconteceu no dia 19, durante o encerramento do seminário internacional Democracia em Colapso, foi de que todos que puderam – e me incluo nisso – ouvir a história falar ao vivo. Foi vê-la apoiar, como se fosse uma missão, Preta Ferreira e a sua luta pelo direito à moradia, o direito ao acesso à terra, e vê-la incomodada com a reverência que lhe foi concedida, por mais que ela de fato mereça todo o reconhecimento e admiração que lhe são dados.
Aula magna
A impressão que tive durante a coletiva de imprensa era de que ela estava, ao mesmo tempo, incrédula por precisar falar sobre as mesmas coisas há quase meio século, mas era justamente isso o que lhe dava forças para incentivar os públicos que compareceram – e quem mais tivesse a chance de ler e ouvir a respeito – a resistir e lutar contra o recrudescimento de atores potencialmente totalitários e contra o status quo desigual e excludente da sociedade. Não, não dá para achar normal e aceitável que pessoas tenham oportunidades reduzidas ou dizimadas na vida por causa dos locais onde vivem, pelas etnias das quais fazem parte ou da cor da pele, pelo gênero ou pela orientação e identidade de gênero. (Parêntese meu: a única ideologia de gênero existente é aquela que normaliza a barbárie, a exclusão e a morte de pessoas que não se enquadram em um padrão social e religioso que uns e outros querem transformar em lei.)
A coletiva de imprensa concedida por Angela Davis não foi apenas uma coletiva, mas sim uma aula sobre luta e resistência. Inclusive, o formato coletivo não foi aleatório – ela mesma explicou, ainda no início, que o Brasil é um país muito grande, assim como é a cidade de São Paulo, e ela conseguiria falar apenas com uma pequena fração dos profissionais presentes ao encontro, mesmo que fosse fascinante a ponto de poder falar por mais tempo com jornalistas. Sejamos francos: ela falaria por mais tempo, mas com muito menos profissionais da imprensa.
As perguntas que eu pretendia fazer a ela, sobre o sistema prisional ser usado como mecanismo de controle de setores mais vulneráveis e que retroalimenta a desigualdade sociorracial no Brasil e nos EUA, e sobre semelhanças na luta antirracista atual e na época em que ela militou, assim como grupos identitários podem mostrar para setores sociais mais resistentes a essas causas que defendê-las será benéfico para todos, não puderam ser feitas em virtude do (pouco) tempo para a coletiva. De qualquer maneira, foi inspirador ouvi-la falar sobre ser impossível escolher uma causa identitária em detrimento a outras – afinal, não é razoável hierarquizar dores e modalidades de exclusão, pois todas retroalimentam a estrutura desigual da sociedade.
É impossível falar sobre igualdade racial sem falar sobre igualdade de gêneros e combate à discriminação contra pessoas homossexuais, trans e não-binárias. Não é possível falar sobre esses aspectos sem pensar em desigualdade social e na naturalização da barbárie. Essa é a raiz, por exemplo, da sua ampla defesa em favor do feminismo negro, uma vez que contempla o combate à desigualdade em âmbitos social, racial e de gêneros. Em algum momento todos esses pontos se cruzam e, mais do que se tornarem dados estatísticos, afetam de modo definitivo vidas. E esse é ponto central aqui: defender o direito à vida.
Ouvir Angela Davis falar sobre todos esses aspectos durante a coletiva, ainda que sob diversas perspectivas, foi um privilégio e, repito, uma grande aula. Poder presenciá-la falar para um público enorme durante a palestra no Parque do Ibirapuera, que chegou a lembrar, numericamente, multidões que comparecem a shows e festivais musicais, era como estar em uma pregação na qual a consciência e a compreensão eram expandidas. Independentemente do posicionamento político, o ideal de Angela Davis é inspirador pela luta pela equidade e contra modalidades diversas de injustiças. E, mais do que reforçar a aura ao seu redor, cada fala dela enfatiza a necessidade da luta coletiva e enaltece as trajetórias de muitos outros atores políticos e intelectuais importantes, como nos casos de Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Marielle Franco, entre muitos outros ícones.
A moral da história sobre a aula de humanidade dada por Angela Davis pode ser explicada pela seguinte fala dela durante a coletiva de imprensa: “a minha responsabilidade é continuar a encorajar pessoas para se juntarem à causa e a defenderem para poderem seguir em frente.”