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É necessário enfatizar o quanto todos podem ganhar com a redução das desigualdades – Entrevista com Cesar Zucco
Cesar Zucco, professor na FGV Ph.D. em Ciência Política pela UCLA, fala sobre ressentimento político e reflexos na sociedade.
Qual é a relação entre enfrentamento das desigualdades e ressentimento em âmbito social? Ainda que o nível exato da combinação entre ambas as variáveis ainda seja desconhecido, é correto considerar que elas se correlacionam. Como consequência, esse fenômeno, particularmente ligado à percepção sobre políticas afirmativas e reparatórias, entrou de vez no radar de profissionais atuantes na pesquisa acadêmica – e além.
Nesse sentido, uma pesquisa do Instituto Atlas-Intel e veiculada em artigo da piauí, de fevereiro de 2024, detalhou o panorama quando se fala em ressentimento e políticas de reparação. Segundo o levantamento, que mapeou percepções sobre políticas públicas destinadas a grupos vulnerabilizados nos últimos 20 anos e do qual participaram 2.037 pessoas, 43% declararam ter ganhado importância em duas décadas, enquanto 30% consideraram que perderam. Desse modo, mulheres, pessoas negras, habitantes do Nordeste e com renda mais baixa consideram que os seus respectivos status subiram. No entanto, a percepção oposta é majoritária entre homens brancos e mais velhos, que moram no Sudeste e têm renda média ou alta.
Para falar sobre o panorama sociopolítico resultante do ressentimento social, a entrevista de junho é com Cesar Zucco, professor na Fundação Getulio Vargas (FGV) e um dos autores do mesmo artigo. Zucco é também Ph.D. em Ciência Política pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). A conversa passou também por fatores que podem explicar esse cenário e caminhos possíveis para romper-se com essa perspectiva.
Confira o diálogo.
O ressentimento político de uma parcela populacional é canalizado por grupos antidemocráticos para atacar instituições de produção intelectual e também o campo progressista. Como o processo de identificação, cooptação e canalização do ressentimento é instrumentalizado pela extrema-direita?
Cesar Zucco: Na verdade, não há uma análise direta do ressentimento que medimos, à forma específica como o ressentimento se manifesta politicamente e por que ele reverbera em uma direção e não em outra. Isso desperta o interesse, mas é uma incógnita. Em âmbitos científico ou acadêmico, não tenho evidência para te dizer o porquê. Idem como esse ressentimento existente está associado a alguns elementos conhecidos, se manifesta dessa forma necessariamente pela extrema-direita.
Pode-se mostrar que existe no Brasil uma associação entre percepções de perda de status social e adesão à extrema-direita, sobre o que significa essa perda de status social e por que certos grupos são associados a ganhos. Isso pode ser um motor e nos ajudar a entender por quais motivos o ressentimento tem a expressão política vigente no Brasil. Dito isso, é um fenômeno que transcende o Brasil. A associação necessária do ressentimento com a extrema-direita é curiosa, pois não é absolutamente necessária. Ela parece necessária hoje, mas não seria do ponto de vista teórico: ela poderia ir para ambos os lados, mas não vai.
Um ponto do artigo passa pela questão de políticas públicas, pensando nos grupos que se sentiram privilegiados e escanteados, respectivamente. É possível pensar no ressentimento como uma força ou uma espécie de função para atacar o poder público?
Cesar Zucco: Esse é um desdobramento interessante, pois há alguma evidência – não a mais forte – de que as percepções de perda de status medidas parecem estar associadas a políticas públicas. Não diretamente pela perda, mas pelo lado do ganho. A percepção das pessoas é de haver consenso grande entre as identidades de quais grupos demográficos e socioculturais tiveram ganhos e quais outros perderam. Houve, nos últimos 20, 30 anos, grandes mudanças no país. Muitas delas foram em função de políticas públicas, que foram redistributivas não apenas de renda, mas também de status. Tanto quem perdeu, quanto quem ganhou, parece perceber isso.
A percepção de perda de status não necessariamente está ligada à parte econômica verdadeira ou de status real – basta percebê-la. Um grupo considera que houve políticas governamentais por meio das quais outros grupos ganharam muito mais em comparação a ele – e houve perda de status. Logo, talvez a ação governamental não seja algo que esse grupo apoie. É factível imaginar que grupos que perderam com políticas públicas podem ter certa aversão de ações estatais, pelo menos no campo dessas políticas. Isso porque parecem ter privilegiado outros.
Essa não é a única opção disponível para quem perdeu status. Uma hipótese é participar da política e modificar as políticas públicas para elas serem menos favoráveis a outros grupos emergentes – não contra qualquer intervenção estatal. Outra possibilidade é ser contra a intervenção estatal e modificá-la para não ser tão favorável aos outros grupos. Ambas estão abertas aos grupos que se sentiram prejudicados ou perderam algum status social com as mudanças via políticas públicas implementadas no Brasil nos últimos 30 anos.
Cesar Zucco fala sobre o ressentimento contra a atuação do Estado e a adesão a discursos que levam a negar a sua importância
Em cima da ideia de deslegitimação, também vêm à tona pontos como os ataques recorrentes à liberdade de imprensa e à academia. É possível pensar uma relação de causa e efeito entre ressentimento contra instituições de produção de conhecimento?
Cesar Zucco: Sabe-se que há percepções mais ou menos coerentes e compartilhadas sobre a identidade de quem ganhou ou perdeu status nos últimos anos. Assim sendo, essas associações e percepções associam-se também a uma adesão à direita e à esquerda. Grupos que ganharam status ou entendem nessa situação, ou que sejam percebidos como ganhadores de status, tendem a se associar à esquerda. Já grupos que percebem perdas de status tendem a se associar à direita – isso não é verdade sempre. Além disso, medimos que grupos associados à direita pontuam alto em escalas de ressentimento.
Medimos três tipos de ressentimentos: racial, de gênero e o que chamamos de socioeconômico em relação aos menos afortunados. Há associação entre percepções de ganho e perda de status, adesão à esquerda e à direita e ressentimento em relação aos três grupos vistos como tendo ganho de status. O que medimos pode ser sintomático de outro ressentimento mais geral? Pode, mas não sei dizer por não termos medido.
Uma possibilidade é de não ser um ressentimento independente – contra a mídia e o conhecimento. No caso de quem perdeu status, a mídia pode ser vista como um elemento catalisador ou apoiador do projeto de políticas públicas para diminuir desigualdades e favorecer outros grupos. Talvez acadêmicos e intelectuais sejam também vistos assim.
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É possível pensar o ressentimento dentro da chave de raça e gênero como um ataque ao que se convenciona chamar de politicamente correto e à ascensão de grupos até então invisibilizados ou minorizados?
Cesar Zucco: Sim. O processo parece ser de certo ressentimento contra grupos vistos como favorecidos por políticas públicas nos últimos 30 anos. Passa a haver associação entre esse governo como o deles – ao se ver como perdedor, adere-se à alternativa. A adesão à extrema-direita, a qual medimos como antipetismo, está fortemente associada a um maior ressentimento em relação a pretos e pardos, à população não branca e às mulheres. Medimos isso como um construto chamado de machismo hostil, também em relação a ideias de merecimento da população pobre. Nesse caso, relaciona-se à ideia de a população mais pobre merecer ser tratada de forma diferenciada pelo poder público por meio de políticas públicas.
Essas três ideias, usadas como proxies para a extrema-direita, pontuam muito alto nesses três índices. No caso, trata-se de ressentimento de racial implícito, machismo hostil e não merecimento, e quanto à percepção de que pobres não são particularmente merecedores de apoio do governo. Como isso se desenrolará em médio e longo prazos? Se for uma construção retórica política, ou se a construção retórica política captou esse ressentimento, são perguntas sobre as quais podemos conjecturar. Mas não há resposta direta. Ambas são possibilidades bastante razoáveis.
Uma hipótese: esse ressentimento estava latente na população e alguém percebeu, ativou e o tornou uma força política. A outra é de que não estava ali tão forte, nem latente, mas o discurso político e a polarização no nível da elite política podem tê-lo ativado e criado tais animosidades e percepções de ressentimento e de merecimento ou não merecimento – e estamos na situação atual.
Ambos os caminhos são plausíveis e têm análogos históricos em diferentes momentos da humanidade que seriam razoáveis de se supor, e é um debate ainda em aberto. Em ambos os casos, a comunicação política tem o papel de trazer à tona uma coisa já existente ou o de criar algo que não existia antes. Sem dúvida, passa pela comunicação política, mas qual o caminho seguido é uma questão sobre a qual ainda será necessário gastar pesquisa e tinta para entender como funciona a mecânica disso.
Também pode entrar a questão de vieses, assim como a necessidade se quebrar essa dinâmica para despolarizar ou até mesmo romper o círculo de ressentimento?
Cesar Zucco: Aqui é interessante. Se o discurso político captou algo latente, talvez o problema seja até mais grave. Isso porque teríamos de trabalhar e pensar em como as políticas públicas que podem ter causado esse ressentimento poderiam ser feitas ou modificadas para atingir os objetivos de redução das desigualdades do país. Idem fornecer oportunidades para todos sem necessariamente alimentar essa animosidade.
Se acreditamos que isso vem da política pública e dos resultados efetivos, e a comunicação política descobriu isso e inflou, deveríamos pensar em como talvez modificar as políticas. A mesma coisa vale para como veicular de outra forma para diminuir o ressentimento. Por outro lado, se acreditamos que o problema não começou daí, mas no discurso político e na elite polarizante, talvez a solução passe por um trabalho de amenizar discursos de ódio. Não se trata apenas de discussão acadêmica para entender o que veio antes. Fazê-lo nos levará a soluções ou ênfases um pouco diferentes para tentarmos amenizar o problema vigente.
Cesar Zucco analisa como reduzir o ressentimento político pode se refletir em maneiras para combater a polarização política
Como os demais entes da sociedade civil podem atuar e tentar reverter a perspectiva do ressentimento?
Cesar Zucco: Se o ressentimento estiver associado a percepções de perda, talvez o caminho seja menos atuar direto sobre ele e mais na percepção de perda. Um ponto interessante da política: ela sempre pode ser caracterizada como um jogo de soma zero. Há, em muitos aspectos, alguém ganhando ao fazer isso. O soma zero ocorre quando o ganho significa perda para outro grupo – quase tudo em política pode ser vendido dessa forma. Mesmo que todo mundo tenha melhorado, se alguém melhorar mais do que outro, pode vir alguém e dizer que um grupo ficou para trás, logo, o ganho de outro segmento significou perda para ele.
Uma maneira de tentar desarmar essa bomba é o contrário: enfatizar o quanto o país é melhor para todo mundo com menos desigualdade e mais oportunidades para todas e todos. Ao invés de pensar que o filho não terá uma vaga na universidade pública por haver cotas, a ideia a ser vendida é a de que um país com mais gente na universidade e acesso à educação será um país com menos crime, mais produção de riqueza e com mais gente satisfeita.
Aqui é narrativa mesmo. O fato é: se olhar para o ganho relativo, sempre haverá alguém que perdeu. Ao enfatizar o ganho absoluto, pode ser que todo mundo ganhe. Aqui é a arte da coisa: enfatizar o quanto todos podem ganhar com a redução das desigualdades e políticas públicas que tornam o país mais equitativo. Não é fácil, pois o instinto é apelar para o soma zero, principalmente na política. Ao estar do lado de quem ganha fomentando a visão de soma zero, é mais fácil empacotar o discurso para mostrar isso. Talvez o ponto passe por aí.
Cesar Zucco pondera sobre o papel da comunicação como uma ferramenta aliada para reduzir o ressentimento político
Entrevista: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Divulgação / FGV