É necessário haver mais evidências sobre a política das emendas orçamentárias e seus impactos no bem-estar – Entrevista com Maria Dominguez
A pesquisadora e consultora Maria Dominguez analisou o status de emendas orçamentárias individuais entre 2003 e 2023


O que os padrões na destinação de emendas parlamentares contam sobre a relação de repasses desse teor com o enfrentamento das desigualdades sociais? Este é o ponto de partida do artigo Qual a lógica parlamentar? Vinte anos de alocação de emendas orçamentárias no Brasil, de autoria de Maria Dominguez. A consultora e pesquisadora, que é também doutoranda em Ciência Política, mestra em Comunicação, conquistou o segundo lugar no III Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades.
Em seu manuscrito, Maria Dominguez analisou o status de duas décadas de emendas orçamentárias individuais – ou seja, entre 2003 e 2023. Para tanto, a pesquisadora usou como base mais de 160 mil emendas parlamentares durante esse período.
Por meio do levantamento, a pesquisadora detectou que a alocação de tais verbas tinha, na média, os mesmos destinos em termos de políticas públicas independentemente do perfil da pessoa parlamentar. Nesse sentido, quase não houve mudanças quanto a fatores como gênero e raça, uma vez que tais repasses tinham como destino as mesmas políticas públicas consideradas prioritárias. Ainda, as taxas de pagamentos dessas mesmas emendas eram similares independentemente dessas mesmas variáveis demográficas. No entanto, o artigo identificou que mulheres tinham 7% menos chances de suas emendas serem de fato pagas.
Em entrevista à Fundação Tide Setubal, Maria Dominguez falou do estudo e os desafios para criar a base de dados com fontes de informações dispersas. A pesquisadora falou também sobre o que os resultados identificados mostram quando quanto ao enfrentamento ou aprofundamento das desigualdades e caminhos para mudar esse cenário. Ainda, o diálogo passou também pela tensa relação entre os poderes Executivo e Legislativo, que passou a ter poder continuamente maior sobre o orçamento público por meio de emendas impositivas e demais mecanismos que indicam questões significativas quando se fala em falta de transparência na destinação de tais verbas.
Confira a entrevista.
Com base nesse levantamento, é possível considerar que o repasse de emendas – inclusive individuais – aprofundam, com base na dinâmica atual, desigualdades raciais e de gênero? Por quais motivos?
Maria Dominguez: A ideia de analisar esse período longitudinal de 20 anos foi, justamente, identificar padrões. Por muitas vezes, análises no debate público focam no último período. De fato, viu-se que nos últimos 10 anos houve muitas mudanças no processo orçamentário brasileiro, sobretudo no que diz respeito às emendas individuais e de bancada. Pôde-se ver a aprovação da impositividade dessas modalidades de emendas, o surgimento das emendas PIX e o orçamento secreto – que foi um caso atípico, um desvio na finalidade de uso das emendas de relator. Quis aumentar esse período de análise e coletar e analisar dados relacionados aos últimos 20 anos para ver quais outros possíveis padrões de alocação existiram e continuam existindo ou não, e o que é que mudou de forma mais apurada.
A partir da coleta de dados, focando nas emendas individuais, e como o interesse no meu trabalho foi identificar padrões de alocação e entender a lógica de alocação dessas emendas, principalmente em áreas de políticas públicas, pois se sabe que cada emenda individual precisa ser alocada e é executada por um ministério, busquei identificar se havia diferenças nessa escolha na preferência do ou da parlamentar quando se avalia e controla por gênero e raça. Incluí nesse banco de dados informações sobre raça e gênero desses parlamentares e busquei avaliar se havia um comportamento diferente de acordo com gênero e raça.
O que vi como resultados principais: a preferência pela área onde a política pública, que a emenda é alocada, varia muito pouco. Então, não se distingue por gênero e por raça. Ao olhar para gênero, há algumas diferenças, mas muito sutis. Por exemplo, parlamentares mulheres alocam mais emendas em educação e cultura do que homens, enquanto eles alocam bem mais no Ministério das Cidades – e há relação grande com pequenas obras. Grosso modo, o comportamento parlamentar quanto à locação de emendas em diferentes áreas de políticas públicas é muito parecido entre homens e mulheres. Mas, em algumas áreas específicas, há diferença de comportamento mais notável. Como o foco do artigo era no combate às desigualdades e a promoção de direitos humanos, dei destaque específico nas emendas alocadas nos Ministérios, nos órgãos associados a direitos humanos, nos últimos 20 anos.
Maria Dominguez fala sobre padrões e diferenças na alocação de emendas parlamentares relacionadas a fatores como gênero e raça
Com a menor participação do poder Executivo na distribuição de emendas, o que se pode interpretar sobre a nível dessa ferramenta orçamentária no enfrentamento – ou, se for caso, aprofundamento – das desigualdades?
Maria Dominguez: Vejo dois grandes problemas associados às mudanças no processo orçamentário nos últimos dez anos. Um problema importante é o da transparência, rastreabilidade e dificuldade de acesso nos dados. Um dos maiores desafios na minha pesquisa para escrever o artigo do prêmio foi encontrar, coletar e sistematizar os dados. Isso porque são distribuídos entre vários bancos de dados, sistemas orçamentários do governo, do Senado, do Congresso etc. Outro grande problema é o equilíbrio entre poderes. Nesse problema de equilíbrio entre poderes Executivo e Legislativo e quem tem maior gestão sobre os gastos discricionários, o STF tem atuado de forma incisiva para tentar resolvê-lo. Ainda assim, não há solução aparente. Mas, sobre o equilíbrio de poderes, o STF não pode fazer nada e não terá nenhum tipo de atuação. A resolução deverá passar por algum tipo de negociação e encontro de ponto médio de equilíbrio entre Executivo e Legislativo.
Dificilmente haverá alguma saída como a criação de regras que criem critérios de raça e gênero para alocação dessas emendas. Não se pode perder de vista que há um problema grande de endogeneidade quanto às emendas parlamentares. [N.R.: a endogeneidade ocorre quando variáveis independentes se correlacionam com um termo de erro em um determinado modelo de regressão, resultando em vieses tendenciosos e inconsistentes.] Ou seja, isso é um problema de autorregulação. Esse é um caso em que os próprios reguladores – parlamentares neste caso – criarão regras às quais eles mesmos estarão submetidos.
Então, em todo tipo de solução pensada para essa questão das emendas, vira e mexe aparecem sugestões muito boas para soluções. Nesse sentido, algumas consistem na criação de um portfólio em que as emendas precisarão ser alocadas em apenas algumas opções, ou de critérios mais rígidos para alocá-las que respeitem e busquem resolver as desigualdades de raça e gênero. Outra solução que aparece é a erradicação de alguma modalidade de emendas. A saber, há quatro: individuais, de bancada, relatório de comissão. E propõe-se, desse modo, deixar somente uma ou duas.
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Pode-se pensar na criação de mecanismos constitucionais para estipular um percentual obrigatório de destinação de emendas parlamentares com base em gênero e raça? Por quais motivos?
Maria Dominguez: Apesar de haver literatura vasta e muitos autores, pesquisadores e cientistas políticos se dedicando a avaliar o impacto das emendas parlamentares para políticas públicas, eleições e reeleição, a maioria desses estudos é de 10, 20 anos atrás. É necessário haver mais evidências sobre a política das emendas orçamentárias. Idem sobre a lógica de alocação do gasto por emendas e os impactos das emendas para o bem-estar. Os municípios que recebem emendas orçamentárias têm, de fato, melhores indicadores socioeconômicos, resolvem problemas de saúde e educação e são capazes de fazer esse investimento em políticas e serviços públicos que atendem a população ou não? Essa literatura precisa contemplar o contexto atual, que é de maior protagonismo do Congresso na execução do orçamento.
Precisamos de novos estudos. Sem dúvidas, prêmios e publicações como a que a Fundação Tide Setubal promove são alguns dos maiores estímulos para a criação desses novos estudos. Mas precisamos também de melhores dados e mais transparência sobre as emendas orçamentárias. Um dos principais desafios da minha pesquisa foi fazer um quebra-cabeça imenso e combinar dados de várias fontes de dados. Eu os coletei do Siope, do Siga Brasil, da Comissão Mista de Orçamento (CMO), dos portais da Câmara e do Senado. Precisei fazer um verdadeiro quebra-cabeça para ter esse banco de dados que criei com mais de 160 mil informações sobre dados. Isso para fazer sentido e começar a investigar sobre esses padrões, diferenças na alocação por raça, por gênero.
Quanto mais transparência houver, tenho certeza de que será possível criar novos estudos para avaliar os efeitos e impactos do gasto via emendas orçamentárias. Há muitas perguntas ainda em aberto. Por exemplo, prefeitos de municípios que recebem emendas conseguem se reeleger com mais facilidade ou não? Parlamentares que executam esse volume cada vez maior de emendas têm mais facilidade para se reeleger? Municípios que recebem essas emendas apresentam melhores indicadores socioeconômicos e entregam melhores serviços e políticas para a população local? Alguns estudos já começaram a responder essas perguntas, mas quanto mais houver evidências robustas, melhor. Poderemos entender melhor o fenômeno e oferecer soluções apropriadas para essa questão. Isso vale, inclusive, no quesito de resolução de desigualdades sociais, regionais, econômicas de gênero e de raça.
Entrevista: Amauri Eugênio Jr.