Fundação Tide Setubal reúne especialistas dos campos da pesquisa, sociedade civil, poder público e jornalismo para debater democracia, educação e equidade
Para a promoção da justiça social, é urgente a caracterização de desigualdades educacionais e a discussão sobre suas causas e implicações, bem como a formulação de políticas e programas especificamente voltados a reduzi-las. Com o objetivo de fortalecer esse debate, relacionando-o à agenda global, a Fundação Tide Setubal reuniu, nos dias 25 e 26 […]
Para a promoção da justiça social, é urgente a caracterização de desigualdades educacionais e a discussão sobre suas causas e implicações, bem como a formulação de políticas e programas especificamente voltados a reduzi-las.
Com o objetivo de fortalecer esse debate, relacionando-o à agenda global, a Fundação Tide Setubal reuniu, nos dias 25 e 26 de junho, em São Paulo, pesquisadores, representantes de organizações da sociedade civil, gestores públicos e profissionais do jornalismo no Seminário “Democracia, Educação e Equidade: uma agenda para todos”. A iniciativa foi realizada em parceria com o Insper e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) Brasil e com o apoio dos jornais Valor Econômico e Nexo.
“Valorizamos muito a presença dos secretários de educação e dos professores e pesquisadores para debatermos a partir de estudos e pesquisas e, também, práticas e experiências nacionais e internacionais. A implementação de políticas públicas na educação tem a ver com a possibilidade de fazermos essa ponte entre a universidade e a gestão pública. Já a parceria com Nexo e Valor Econômico reafirma a importância de uma mídia comprometida com a verdade, o fato e a produção de conhecimento frente ao contexto da política educacional brasileira”, salientou Neca Setubal, presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal.
Para Marlova Jovchelovitch, diretora e representante da UNESCO no Brasil, só é possível falar de democracia e equidade quando há educação de qualidade para todos.
“O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 4 deixa claro: não é qualquer educação que nos serve, mas a de qualidade. Se nos perguntarmos de qual maneira nossas crianças estão aprendendo, quem ainda está ficando sem educação, quem ainda não conseguiu ultrapassar essa fronteira entre estar e aprender, percebemos que a inclusão intraescolar é uma agenda que traz com força todas as nuances do conceito de equidade, igualdade de oportunidades. Quem cabe no ‘todos’? Para a UNESCO, estamos falando literalmente de todos: dos adolescentes em conflito com a lei, dos jovens negros que são mortos a cada 23 minutos no Brasil, das crianças com algum tipo de deficiência, de todos aqueles que, por alguma razão, chegam à escola, mas uma vez lá, não aprendem.”
Indicador de Desigualdades e Aprendizagens
A mesa “Definição e medidas de qualidade, equidade e desigualdade em educação” abriu os trabalhos do seminário com o lançamento do Indicador de Desigualdades e Aprendizagens (IDeA). Desenvolvido para medir a terceira dimensão do direito à educação, a aprendizagem, a ferramenta ajuda a apontar situações em que os alunos não aprenderam o que deveriam, junto com aquelas em que indivíduos de um grupo aprenderam menos que os de outro. Ou seja, leva em conta a qualidade da aprendizagem e, ao mesmo tempo, as desigualdades entre grupos de nível socioeconômico, raça e gênero.
O IDeA foi calculado para os municípios brasileiros e está restrito à descrição da aprendizagem dos alunos que cumprem as etapas da escolarização analisadas, isto é, o primeiro e o segundo segmentos do Ensino Fundamental (do 1º ao 5º ano e do 6º ao 9º ano).
Os dados públicos da Prova Brasil de 2007 a 2015 permitiram chegar a duas medidas que compõem o indicador: a medida de excelência da aprendizagem, isso é, do nível de aprendizagem do conjunto dos estudantes do município observado, definida pela distância entre a distribuição da aprendizagem desses estudantes e a distribuição adotada como referência; e a medida de equidade, dada pela distância entre as distribuições de desempenho de grupos de estudantes definidos por características sociais de nível socioeconômico, raça e gênero.
(leia mais aqui sobre o IDeA em matéria exclusiva sobre o assunto).
Desigualdades educacionais: desafios históricos
A segunda mesa do dia trouxe ao centro do debate uma formulação científico-social acerca do problema das desigualdades educacionais.
Naércio Menezes Filho, professor do Insper (Cátedra Ruth Cardoso) e da Universidade de São Paulo (USP), apresentou aos participantes um panorama da educação na história do Brasil, que revela o desafio das desigualdades associadas a raça/etnia e pobreza. Para ele, a educação é uma das variáveis mais importantes para uma sociedade se desenvolver com justiça social, pois aumenta a produtividade e a cidadania e diminui a desigualdade e a pobreza.
“Nosso país é extremamente desigual em todos os aspectos da sociedade, mas, recentemente, a educação melhorou e reduziu um pouco essa desigualdade. No entanto, a qualidade da educação ainda é muito baixa e temos também um problema de habilidades socioemocionais não desenvolvidas. A loteria da vida é bem clara no país: não há igualdade de oportunidades. O foco para melhorar a qualidade e diminuir a desigualdade, ao meu ver, tem de ser no desenvolvimento infantil, na gestão educacional e na distribuição de recursos para os mais pobres.”
Para Néstor López, do Instituto Internacional de Planejamento Educacional (IIEP), da UNESCO, em Buenos Aires (Argentina), o principal mecanismo gerador de desigualdades é a diretriz de igualdade no tratamento dos alunos.
“Cada professor tem uma imagem ideal do estudante. Entender quem são os alunos reais é a base para pensar uma nova política educativa. A inclusão nos chama a repensar a escola de modo que trate cada um por quem é e não a todos igualmente. E nos chama também a repensar o conceito de diversidade sob a premissa de que todos somos diferentes.”
Políticas públicas e experimentações pedagógicas
O debate da mesa “Políticas públicas e experimentações pedagógicas voltadas à redução das desigualdades educacionais” debruçou-se sobre 15 experiências de gestão da educação pública que enfrentaram a desigualdade escolar, sendo cinco nacionais – Acre, Ceará, Sobral (CE), Marília (SP) e Serra (ES) – e dez internacionais – Uruguai, Argentina, Colômbia, Chile, México, EUA, Canadá, França e Coreia do Sul. Tais experiências revelam em comum contextos políticos específicos, uso de saberes profissionais e da comunidade escolar, variação entre flexibilização e fortalecimento do modelo escolar tradicional, entre outros pontos. Todas elas serão disponibilizadas no portal do IDeA.
Para Carolina da Costa, vice-presidente da Graduação do Insper, apesar de a educação ser um sistema complexo formado por muitas frentes, é possível trabalhar a redução de desigualdades a partir da sala de aula. “De acordo com uma meta-análise realizada por John Hattie, 30% da aprendizagem dos alunos dependem dos professores. Isso significa que apesar de uma boa gestão ser fundamental, ela não dá conta do que acontece dentro da sala de aula, principalmente nos anos finais do Ensino Fundamental e Médio.”
A apresentação mostrou também algumas das desigualdades presentes nas salas de aula brasileiras, com questões de gênero (meninos com melhor desempenho em Ciências e Matemática), raça (alunos brancos com melhor desempenho) e classe social (melhor desempenho entre alunos com alto nível socioeconômico). O tema mostrou também o que a literatura aponta como fatores que acentuam as diferenças entre esses grupos, como o desempenho em Matemática ser um ‘marcador de inteligência’ e meninas sentirem-se em desvantagem em ambiente de maior risco e competição, desenvolvendo a chamada ansiedade matemática.
Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos Pela Educação, reafirmou a necessidade de investir em formação inicial e continuada de docentes, assim como em suas carreiras, além de uma visão sistêmica da educação.
“Fazer a implementação de políticas educacionais dentro de ‘caixinhas’ leva também a desigualdades. É preciso reconhecer que parte dela começa fora da escola, no sistema de saúde, no atendimento durante a primeira infância e no atendimento às famílias. O advocacy da educação impulsionou muito o setor no Brasil. Mas, eu acredito que precisaríamos de um advocacy para juntar representantes dessas diversas áreas.”
Para Kleber Montezuma, secretário municipal de Educação em Teresina (PI), o bom desempenho da cidade – que tem sido destacada como referência nacional nos últimos anos – no enfrentamento das desigualdades educacionais se deve a políticas específicas.
“Temos o menor Produto Interno Bruto (PIB) per capita e o maior índice de pobreza entre todas as capitais do país e, ainda assim, conseguimos fazer com que nossos alunos aprendam porque temos políticas voltadas a atender não somente àqueles estudantes que já sabem, mas também àqueles que não sabem e precisam saber, e isso eleva o aprendizado da rede com um todo. São políticas que têm continuidade ao longo do tempo: uma secretaria com perfil técnico, escolha dos gestores das escolas feita por meio de eleições com a participação da comunidade escolar, planejamento, definição de objetivos e metas claras, programa de ensino estruturado, monitoramento do que se faz em sala de aula, avaliação da aprendizagem dos alunos e um programa de formação dos professores em função dos resultados da avaliação de aprendizagem”, destacou.
Evidências em educação
Para fechar os debates do primeiro dia do seminário, foram ainda promovidas duas rodas de conversa pautadas em estudos científicos apoiados pela Fundação Tide Setubal.
A pesquisa Educação, pobreza e desigualdades, realizada por Maria Alice Nogueira, Tânia Resende e Viviane Coelho Ramos, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), dedicou-se ao levantamento bibliográfico da literatura científica em três idiomas (inglês, francês e português) sobre as relações entre educação, pobreza e desigualdades. A confirmação da origem social como principal fator explicativo para o desempenho escolar foi um dos achados da iniciativa.
Maria Alice observou que há um grande contraste entre a produção brasileira e a produção internacional sobre o tema. “No Brasil predominam estudos mais descritivos do que interpretativos, enquanto os internacionais promovem grandes teorizações. Isso significa que o Brasil prima mais por descrever situações de desigualdades do que explicá-las ou ligá-las às especificidades do país.”
O Terceiro Estudo Regional Comparativo e Explicativo (TERCE), produzido pela UNESCO, aponta a qualidade e desigualdade da aprendizagem na América Latina. A pesquisa avalia o desempenho dos estudantes nas áreas de Matemática, Ciências e Linguagens dos terceiros e sextos anos do Ensino Fundamental de escolas de 15 países, além de aplicar questionários junto a famílias, diretores e professores dos alunos. A partir da combinação, é possível analisar os fatores que mais interferem na aprendizagem.
Atílio Pizarro, membro do Escritório Regional de Educação para América Latina e Caribe (OREALC) e coordenador geral do Laboratório Latinoamericano de Evolução da Qualidade da Educação (LLECE), ambos da UNESCO, apontou a necessidade de olhar para fatores externos à educação que têm influência direta na aprendizagem, como a infraestrutura das escolas.
“Há uma série de fatores que precisam ser trabalhados para aprimorar os resultados. O tema da melhoria da educação é muito profundo. Experiências como o Bolsa Família no Brasil e outras no México têm bastante impacto na melhoria educacional dos estudantes. Mas, insisto na necessidade de políticas integrais de longo prazo, que conversem com diferentes aspectos da vida dos alunos.”
Confira aqui as discussões que foram levantadas ao longo do segundo dia do seminário.