O Brasil tem uma dívida com as organizações do terceiro setor – Fundação Tide Setubal entrevista Renato Meirelles
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: Divulgação Dizer que o Brasil passa por uma crise humanitária não é exagero. Antes mesmo da pandemia de Covid-19, o país tinha índices gritantes de desigualdades, cujos marcadores estavam relacionados a fatores como raça, gênero e territórios periféricos. A tragédia sanitária, que até 21 de maio havia […]
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: Divulgação
Dizer que o Brasil passa por uma crise humanitária não é exagero. Antes mesmo da pandemia de Covid-19, o país tinha índices gritantes de desigualdades, cujos marcadores estavam relacionados a fatores como raça, gênero e territórios periféricos. A tragédia sanitária, que até 21 de maio havia resultado em mais de 444 mil vidas perdidas, as intensificou.
A gestão desastrosa durante a pandemia de governos, em especial o federal, que estabeleceu o falso dilema entre preservar a economia ou vidas, é outro fator a ser considerado. De acordo com levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o país registrou, em termos proporcionais, mais mortes pela Covid-19 do que 89% dos países e a 11ª pior queda de ocupação de pessoas em idade para trabalhar – há 14,4 milhões de desempregados no país.
Somam-se a isso dados alarmantes sobre o aumento da fome no Brasil: há 19 milhões de pessoas com insegurança alimentar grave e que dependem de campanhas de doação de alimentos para sobreviver. Um estudo do Instituto Locomotiva mostrou que 86,3 milhões de brasileiros puderam contar com algum tipo de doação durante a pandemia.
Em entrevista à Fundação Tide Setubal, Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, fala sobre essa realidade, o panorama de micro e pequenos negócios no país, a cultura de doação, a atuação da sociedade civil durante a pandemia e o papel do poder público para proteger a população.
A pesquisa A Favela e a Fome mostrou que a ampla maioria da população teve perdas substanciais de renda. Quais foram os erros cometidos pelo poder público, que podem ser apontados, para termos chegado a esse ponto nas chaves econômica e humanitária?
A pesquisa deixou claro que o vírus não era um vírus democrático. Ele pode até matar pobres e ricos, mas os anticorpos sociais de um país desigual como o nosso são bem diferentes entre os moradores da favela e os das áreas mais nobres do Brasil. Quando há uma situação de desigualdade como essa, deve-se trabalhar em duas frentes: a da saúde, o que significaria ter vacinas que até hoje não chegaram para a grande maioria da população, e trabalhar com um amplo aspecto de distribuição de renda, como as grandes economias do mundo trabalharam.
Vimos vários exemplos dos EUA, da França, da Inglaterra e da Alemanha, que distribuíram renda para a população. No Brasil, essa renda demorou para chegar – e foi de forma insuficiente. Tivemos, inclusive, o ministro da Economia falando que existiam 30 milhões de invisíveis no Brasil. Isso significa admitir que não existiam políticas públicas para falar à parcela da população mais pobre e que não existiam políticas de distribuição de renda e de redução da desigualdade para aquela parcela que mais precisava.
Renato Meirelles fala sobre o panorama econômico de pequenas e microempresas e quais medidas poderiam – e podem – ser adotadas para auxiliá-las
Ações como o Matchfunding Enfrente, cuja nova etapa é voltada ao auxílio de micro e pequenos empreendedores das periferias, foram desenvolvidas para apoiá-los. Como a sociedade civil e o ISP podem desenvolver mais ações nesse cenário?
Existem algumas formas de atuar no vácuo deixado pelo poder público. Independente delas, é preciso deixar claro que é impossível a iniciativa privada e o terceiro setor, por maiores que sejam as doações e por maior que seja o financiamento, conseguirem ocupar um espaço que deveria ser ocupado pelo poder público, cuja função primordial é garantir os direitos fundamentais da população – direitos fundamentais que faltaram durante a pandemia.
No entanto, essas parcerias da iniciativa privada com o terceiro setor podem atuar em algumas frentes: na frente emergencial, do ponto de vista de garantir com que o mínimo de financiamento, o mínimo necessário de recursos, seja para os pequenos negócios não quebrarem, seja para garantir a alimentação básica das pessoas, chegue na parcela da população que mais precisa. Mas essa é uma ação emergencial.
Há outras duas ações bastante importantes para isso: modelos de financiamento com retorno de longo prazo – que, na prática, garantem o capital de giro e preservam empregos – e modelos de qualificação profissional para essa parcela de micro e pequenos empresários, que não têm o conhecimento muitas vezes necessário para fazer o negócio durar mais.
Renato Meirelles fala sobre a importância de dados, pesquisas e estudos para o desenvolvimento de políticas públicas e iniciativas em favor da população
Como o iminente risco de apagões de dados pode impactar de modo brutal, em termos de construção de políticas públicas e de atuação de atores do terceiro setor, no auxílio de populações vulnerabilizadas e para fomentar a potência das periferias urbanas?
O que vemos nos últimos anos é uma clara política de desmonte a tudo o que possa representar a verdade factual, pelo simples fato de ela desmontar a tese das versões, das fake news e das interpretações. Quando não se tem a verdade factual como ponto de partida, abre-se margem para usos políticos e ideológicos de verbas públicas, desmontam-se as funções do Estado – que deveriam ser permanentes, independentemente do governo de plantão. Abre-se margem para negociações obscuras com o Congresso Nacional, que não permitem a distribuição de renda chegar de forma eficiente nos municípios.
O Censo é a base para a distribuição de verbas da Educação e da Saúde. A contagem populacional é fundamental para saber a proporção dos recursos necessários para cada município. Quando se abre mão desses dados, abre-se mão de uma distribuição justa desses recursos e espaço para que eles sigam interesses ideológicos e não ao interesse da população.
O que pode ser dito sobre campanhas para mitigação da vulnerabilidade social, que foi acirrada pela pandemia? Quais lições ficam quanto à cultura de doação no Brasil?
Se não vivemos uma realidade de convulsão social, isso se deve à parceria da iniciativa privada, das fundações, com organizações como a Gerando Falcões, Central Única das Favelas, Frente Nacional Antirracista ou a própria Coalizão. Enquanto o governo procurava 30 milhões [de invisíveis] porque não existiam segundo ele, essas pessoas estavam distribuindo cestas básicas. A Cufa estava nas periferias cadastrando mães das favelas, que são as mais vulneráveis entre as mais vulneráveis, distribuindo cartões alimentação para elas.
Essas ações garantiram que milhões de brasileiros não morressem de fome. O Brasil tem uma dívida com essas organizações do terceiro setor. Pessoas deixaram de morrer e só estão vivendo com as suas famílias graças a ações como essas. Fizemos pesquisas que mostraram que 80% dos beneficiários dessas ações só conseguiram alimentar as suas famílias graças às doações. Por outro lado, vimos também que essas doações, muitas vezes, viravam outras doações dentro da própria comunidade. Cansei de ver casos de mães que dividiam o benefício com o vizinho que não tinha conseguido nenhuma espécie de auxílio.
Uma frase que ouvimos na favela, bastante presente, era que se o vizinho tem comida, ninguém passa fome. Isso reforça que o Brasil tem muito a aprender com os moradores de favelas. Se o país foi solidário, os moradores de favelas foram ainda mais, mesmo tendo pouco e recebendo doações, parte considerável delas era repassada para pessoas que tinham ainda menos do que aquelas mães que receberam o auxílio nesse momento de fragilidade.
Renato Meirelles fala sobre o panorama da cultura de doação, filantropia e iniciativas em âmbito coletivo no Brasil
Uma das lições do nosso momento atual no país é de que para a sociedade evoluir, todos temos de evoluir juntos e um ajudar mutuamente o outro?
Não há saída que não seja coletiva. A ilusão de saídas individuais, que muitas vezes usam a exceção para comprovar a sua eficácia, não é sustentável em um país tão desigual como o nosso. Todos os grandes avanços que o nosso país deu foram por meio de mobilizações nacionais e da construção de consensos – que estão voltando neste momento da pandemia.
Está cada vez mais claro que aqueles que acreditam que a função do Estado é promover igualdade de oportunidades – isso não tem a ver com o tamanho do Estado, mas com a sua eficiência -, em um sistema único e público de saúde e na democratização e na universalização da educação, voltaram a formar uma maioria na opinião pública brasileira. A pandemia fez esse grande freio de arrumação, que reuniu uma parcela da população que se mostra hoje majoritária, é aquela que defende a civilização e não a barbárie.
Renato Meirelles fala sobre o aumento da desigualdade no Brasil em decorrência da pandemia da Covid-19 e a importância da adoção de medidas para combatê-la e promover justiça social