O professor atua no presente para projetar o futuro – Fundação Tide Setubal entrevista Clelia Rosa
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: arquivo pessoal Apesar de o Dia do Professor ser comemorado em 15 de outubro, o cenário atual mostra, em diversos aspectos, que docentes têm recebido reconhecimento aquém do merecido na sociedade. Antes da pandemia de Covid-19, o cotidiano de professoras e professores era marcado, entre outras […]
Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: arquivo pessoal
Apesar de o Dia do Professor ser comemorado em 15 de outubro, o cenário atual mostra, em diversos aspectos, que docentes têm recebido reconhecimento aquém do merecido na sociedade.
Antes da pandemia de Covid-19, o cotidiano de professoras e professores era marcado, entre outras coisas, por problemas de infraestrutura no ambiente escolar e pela baixa remuneração. A adoção de aulas remotas escancarou disparidades entre alunos das redes pública e privada e aprofundou o abismo sociorracial entre eles. Esses fatores, associados aos ataques feitos por setores da sociedade que acusam docentes de doutrinar estudantes, têm impacto importante na saúde mental desse grupo.
Em entrevista à Fundação Tide Setubal, a pedagoga Clelia Rosa, mestre em educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora das relações de gênero e raça na educação escolar e familiar, fala sobre tais aspectos e a importância que profissionais da área educacional têm para a sociedade civil. Confira o bate-papo a seguir.
Como os efeitos das aulas a distância potencializaram disparidades entre alunos das redes pública e privada, em especial entre alunos brancos e não brancos?
Assim como outras pessoas que trabalham na área, entendo que a pandemia não traz nada de novo sobre a questão social no Brasil. Na verdade, ela escancara uma desigualdade que já existia, como o diferencial entre alunos das redes pública e privada e o déficit entre alunos brancos e não brancos. Nesse sentido, a pandemia e a nova modalidade de ensino ressaltam uma disparidade que já existia.
Sabe-se que a internet não é de boa qualidade para boa parte da população brasileira. Uma parte sequer tem acesso e isso impactou na relação e na qualidade do ensino. Antes já havia dificuldade de ensino e aprendizagem nas aulas presenciais, sendo revelada a partir da falta de estrutura de muitas escolas públicas, da falta de material, do afastamento de professores por doenças emocionais ou físicas. Isso aumentou no momento em que nem todas as crianças e jovens têm acesso à a principal fonte de comunicação – o uso da tecnologia.
Há diferença entre fazer uma aula ao acessar materiais, ler um texto e produzir uma atividade olhando para a tela de um celular e ou na tela de um notebook. Muitas famílias têm um computador em casa e dois ou três filhos em idade escolar. Há famílias que trabalham em casa e também usam aquele aparelho de celular para o próprio trabalho, e precisam dividir com a criança esse aparelho. Uma série de implicações de ordem material foi agravada nesse período.
Houve episódios nos quais professores sofreram com atos racistas praticados por alunos e outros em que estudantes foram alvos de outros alunos. Como as particularidades do ambiente digital potencializaram tais casos?
Escondidas atrás de telas, essas pessoas sentem-se encorajadas a praticar violência de gênero, raça e homofobia. Situações racistas, que já aconteciam presencialmente, podem ter sido potencializadas com o distanciamento social.
Uma pessoa pode trocar de computador e criar um usuário que não existe – e isso poderá dar muito mais trabalho para investigar. É trabalhoso não só fazer uma denúncia, porque quando uma pessoa sofre um ato de racismo e vai até uma delegacia, o caso é colocado como injúria racial. São colocadas diversas justificativas para afirmar que houve de fato um crime de racismo, mesmo se houver testemunhas. Essa dificuldade, que já existir na vida cotidiana, ganha o “escudo” que é a internet. É um reflexo do racismo estrutural e quem comete esse tipo de crime se sente protegido por uma legislação que dá brecha para isso muitas vezes, [pois se sentem] protegidas pela facilidade para criar um perfil fake.
Como o momento atual torna ainda mais evidente a importância do trabalho do professor na sociedade?
A valorização do profissional da educação é uma questão extremamente urgente, mas é muito frágil ao mesmo tempo no nosso país. Todos falam e acreditam na importância da educação, no quanto é capaz de mudar a estrutura social e as relações interpessoais e profissionais. Existe o discurso do poder da educação e da importância da escola, mas isso não é traduzido em valorização para o profissional. Mesmo antes da pandemia, dados traziam ao conhecimento público o número alto de docentes que estavam em afastamento médico por causa da saúde mental e emocional e do estresse; professores agredidos por alunos ou famílias dos estudantes; ou que precisavam trabalhar em duas ou três escolas para completar o orçamento. Tudo isso impacta a saúde e o desenvolvimento profissional dessas pessoas.
Isso foi agravado porque a pandemia vem demonstrando o quanto a escola é fundamental para a sociedade, uma vez que as crianças precisaram ficar em casa e o quanto isso desestruturou as famílias, no sentido de não saber o que fazer e como acompanhar. O professor atua no presente, mas a função dele é projetar o futuro no sentido da formação de pessoas que serão boas profissionais. O processo de aprendizado de leitura e escrita de uma criança no presente será, sem dúvida nenhuma, revertido para o tipo de profissional que ela será no futuro. Ele é um elemento fundamental dentro da sociedade, para construção, manutenção e renovação da cultura. A educação antirracista precisa passar pela escola e por outras instituições: as empresas precisam fazer o seu papel – e o setor público também.
Quais são os desafios para mostrar que o ensino de conteúdos pautados pela pluralidade é importante?
O desafio da escola é imenso: é apropriar-se cada vez mais do seu fazer pedagógico e do seu papel social. É um lugar de construção de conhecimento e de ampliação de conhecimento, pois ninguém chega vazio à escola – a pessoa vem com o seu conhecimento e uma cultura adquirida, e chega à escola para ampliá-lo e construir outros, de todas as áreas, como ciências e da história. A escola precisa apropriar-se do lugar de instituição de construção do conhecimento e fortalecer-se para responder que cabe a ela definir o que será ensinado.
A escola vive um momento muito frágil no qual todas as instituições dizem o que ela deve fazer. Quem deve dizer são especialistas em educação, educadores, pessoas que estudaram e se dedicaram, e que estão dentro da escola, na relação direta com os alunos e crianças. São elas que desenham, projetam e cumprem a legislação educacional. Não é uma organização religiosa ou uma entidade econômica que deve dizer qual lei a escola precisa cumprir.
É um desafio extremamente necessário para a escola apropriar-se do seu fazer pedagógico e delimitar espaços, no sentido de mostrar que quem resolve são os profissionais da educação. Não é fácil, mas é extremamente urgente instituições escolares, sejam públicas ou privadas, apropriarem-se do que sabem fazer.
O que pode ser dito sobre os cuidados com a saúde mental? O que os professores e as instituições de ensino podem fazer para auxiliá-los nesse cenário?
O que você traz é extremamente delicado, pois não temos apoio das autoridades de governo nesse sentido. Não dá para uma escola decidir sozinha o que deve ser feito: ela precisa ter respaldo legal. Não se trata da escola escolher se trabalhará ou não – idem para os professores. Falta maior respaldo dos governantes para entender a importância da educação e que ela é feita na relação presencial.
Os professores precisaram criar, em um curto espaço de tempo, novas metodologias e didáticas. A aula precisou passar para uma tela de computador ou celular, e a estrutura do conteúdo foi modificada – estar quatro horas dentro de uma escola não é a mesma coisa de estar quatro horas dentro da sua casa em frente a um computador.
Por outro lado, muitas escolas privadas mantiveram a carga horária e além da pressão pedagógica, eles passam por pressão também para manter o aluno na escola, com a família pagando as mensalidades. Se já existiam pressão, desvalorização e sobrecarga, isso ficou mais evidente no contexto de pandemia. Infelizmente, os professores não foram considerados linha de frente no início da pandemia: eles formam, também, uma categoria de serviço essencial nesse contexto.