O que as clínicas públicas mostram sobre o acesso aos cuidados com a saúde mental?
Até em que ponto as clínicas públicas para saúde mental são estratégicas? Por outro lado, como elas podem mascarar problemas estruturais?
Um elemento que vem à tona no debate sobre o acesso aos cuidados com a saúde mental no Brasil diz respeito às clínicas públicas. Afinal, trata-se de iniciativa para promover a prática da psicanálise em territórios periféricos e adaptada à realidade das populações desses mesmos espaços.
No entanto, as clínicas públicas representam uma solução para democratizar o acesso aos cuidados com a saúde mental? De acordo com Ana Carolina Barros Silva, psicanalista e coordenadora-geral da organização Casa de Marias, espaço voltado à promoção de cuidados com saúde mental para a população negra e periférica, não é o caso. Primeiro, por tratar-se de um elemento paliativo nesse contexto. Além disso, o ideal é defender o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS).
“As clínicas públicas existem porque há falhas na gestão, de quem administra e deveria investir e promover o orçamento e destinar verba para o SUS se executar. A política em si, não se faz sozinha. Há uma série de diretrizes e normas que estabelecem como se precisa proceder para executar aquelas premissas ali estabelecidas. Quem as executará, justamente, são gestoras/es, que estão responsáveis pelas políticas de saúde no Brasil”, pondera.
Segundo Ana Carolina, tais falhas resultam em problemas no acesso para atendimento na rede pública e na própria estrutura disponível. Como resultado, surgem buracos no atendimento ao público. É nesse contexto no qual as clínicas públicas entram na história. Ainda que se trate de iniciativas válidas, são reflexos de um ponto de atenção estrutural.
“As clínicas públicas são muito louváveis, pois carregam um proposição muito importante e tão revolucionária quanto o SUS: a de saúde como direito. O que elas propõem é, justamente, olharmos o que está errado e falhando, e o que precisa ser consertado rapidamente”, reforça.
+ Leia a entrevista de Ana Carolina Barros Silva
Para além das clínicas públicas
“Seria incrível se tomássemos [como exemplos] as clínicas públicas como dispositivos que podem servir de projetos-pilotos para o SUS em termos de saúde mental.” Em entrevista concedida ao site da Fundação Tide Setubal, Ana Carolina Barros Silva destacou como o SUS pode englobar o modelo proposto pelas clínicas públicas, em especial quanto ao atendimento e experiência relativos a esse modelo. Isso vale especialmente para populações que não conseguem acessar o cuidado em saúde mental.
Nesse sentido, o debate sobre a democratização no acesso a cuidados com a saúde mental e o fortalecimento do SUS deve abranger a estrutura do sistema propriamente dito. Esse ponto abrange, inclusive, assegurar que o Sistema Único de Saúde promova as propostas básicas de quando foi desenvolvido, como a capilaridade social e a universalização no atendimento à população.
“Trata-se sempre de um processo de construção, luta e mobilização política – esse é um processo fundamental. É necessário considerá-lo como prioritário em termos de construção de políticas públicas brasileiras. O SUS é referência não à toa, porque é um sistema revolucionário: propõe o comum e a universalidade”, pondera a psicanalista e coordenadora-geral da organização Casa de Marias.
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Sobre saúde e políticas públicas
Assim sendo, falar sobre orçamento para a saúde pública é fundamental. Para se ter uma ideia, em virtude do teto de gastos até então vigente, 2017, a área da Saúde deixou de receber R$ 45,1 bilhões em verbas federais desde quando passou a vigorar, em 2017. Em contrapartida, por meio do arcabouço fiscal recém-sancionado, estima-se que o investimento na área cresça a 15% da receita líquida.
Logo, isso pode representar novos horizontes para a democratização do acesso à saúde mental. Se em 2022 o então governo federal extinguira a Coordenação de Saúde Mental, em contrapartida, a atual gestão federal repassará R$ 200 milhões para o restante de 2023, relativo ao orçamento destinado à Rede de Atenção Psicossocial (Raps).
Ou seja, para Ana Carolina, o momento atual requer a reconstrução de políticas públicas para essa área. “Isso somente é possível a partir de vontade política, destinação de verba e orçamento público específico para a execução dessas políticas públicas. Sem dúvida, isso não é algo possível para avançar sem apoio popular. Todas as iniciativas, movimentos sociais e populares de defesa do SUS, de mobilização, de articulação política que possam incidir nessa direção são fundamentais.”
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Das clínicas para os territórios clínicos
O público-alvo das clínicas públicas, enfim, é composto majoritariamente por pessoas negras e periféricas. Logo, projetos para fomento e apoio a organizações com esse perfil passam a ter papel estratégico. Esse é o caso da edição 2023 do Edital Territórios Clínicos.
A iniciativa selecionará dez organizações atuantes na circulação e na democratização do acesso à saúde mental no Estado de São Paulo. Cada uma receberá apoio de R$ 150 mil para o período de dois anos. “Quando o Territórios Clínicos faz o recorte territorial e olha para as clínicas públicas em desenvolvimento nas periferias, é para essa população que olhamos. Penso que se trata do tipo de dispositivo que, em termos utópicos, poderíamos imaginar como parte do SUS. E é isso o que as clínicas públicas desenvolvem”, pondera Ana Carolina.
Por fim, o fato de o SUS passar a realizar o trabalho desenvolvido pelas clínicas públicas não será, de acordo com Ana Carolina Barros Silva, algo que acontecerá do dia para a noite. E isso evidencia quão necessário é o trabalho realizado em tais projetos.
“As clínicas públicas em São Paulo estarem abarrotadas, sem vagas e com filas imensas de espera, nos mostra uma demanda que está apartada e não consegue se inserir em nenhum tipo de cuidado. E isso evidencia um problema que precisa ser resolvido em termos públicos e de política de Estado. As clínicas públicas, acho, são uma inspiração nessa direção e um lugar para olharmos e sabermos o que e como podemos fazer”, finaliza.
Texto: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Alex Green / Pexels