Pesquisa busca fortalecer e reestruturar a Lei Rouanet no apoio às periferias – Entrevista com Allan Anjos Dantas
Allan Anjos Dantas, coordenador do Observatório Ibira 30, fala sobre a pesquisa 'Lei Rouanet e a Periferia – Um olhar estratégico para o orçamento da cultura e o investimento social privado'. Confira o diálogo.
“Queremos ampliar a Lei Rouanet e torná-la ainda mais robusta e equitativa.” Para Allan Anjos Dantas, coordenador da realização da pesquisa Lei Rouanet e a Periferia – Um olhar estratégico para o orçamento da cultura e o investimento social privado e do Observatório Ibira 30, a Lei Rouanet precisa ter alcance maior nas periferias e chegar a mais coletivos culturais atuantes nesses mesmos territórios. Logo, o que também está em jogo é o apoio a organizações e lideranças de tais espaços.
Com realização da Associação Cultural Recreativa Esportiva Bloco do Beco e do Observatório Ibira 30 – e apoio da Fundação Tide Setubal -, o estudo analisou o alcance da lei na capital paulista, a partir dos endereços dos CNPJs proponentes, a distribuição em São Paulo do valor captado por meio da Lei Rouanet entre 2014 e 2023.
Nesse sentido, quase 90% do montante oriundo dessa modalidade, durante esse mesmo período, concentrou-se, segundo o levantamento, em “ distritos centrais, de alta renda, com infraestrutura consolidada e redes de apoio empresarial bem estruturadas”. Desse modo, essa região concentrou R$ 5,25 bilhões durante esse período. E, ao contar com 17,21% da população de São Paulo, totalizou R$ 2.660 per capita. Já a área composta pelas periferias da capital paulista obteve R$ 83 milhões via captação nesse mesmo período, resultando em R$ 14 per capita – a concentração populacional é de 50,67%.
Aqui vale uma contextualização sobre o funcionamento da Lei Rouanet, conhecida também como Lei Federal de Incentivo à Cultura. Após a análise de projetos submetidos por grupos e coletivos culturais, as iniciativas aprovadas têm autorização para captação de recursos com apoiadores – pessoas Física ou Jurídica -, que poderão abater, de forma direta, o valor aportado para esses grupos do Imposto de Renda.
A entrevista com Allan Anjos Dantas passou por esses pontos referentes à pesquisa. Além disso, o diálogo retratou o papel da cultura quando se fala em garantia de direitos e estratégias para democratizar o acesso à Lei Rouanet e a demais iniciativas de fomento à cultura. Outros tópicos pelos quais a entrevista passou disseram respeito, enfim, ao papel do ISP nesse contexto e à democratização do acesso a essa lei de incentivo para, entre outras coisas, combater as recorrentes mentiras referentes a ela. Confira o diálogo a seguir.
Um ponto que vem à tona, ao ler a pesquisa, é a concentração da verba captada por meio da Lei Rouanet em uma parte específica da capital paulista. Essa dinâmica retroalimenta a percepção de que apenas uma parcela da população pode consumir e produzir cultura? Por quais motivos?
Allan Anjos Dantas: Com certeza. Por mais que a pesquisa olhe para uma ferramenta específica de incentivo à cultura – a Lei Rouanet -, a perspectiva pela qual analisamos é a de proponentes. Olhamos, então, quais são os grandes CNPJs que estão captando e onde estão inscritas as suas sedes. Não olhamos necessariamente para onde o projeto é executado. Mas olhamos, sim, aonde o recurso se concentra do ponto de vista de gestão.
Essa é uma perspectiva específica. Mas ela representa outros olhares implementados na lógica de política de distribuição do orçamento da cultura e representados na Lei Rouanet. Darei um exemplo: olhamos na pesquisa para a relação de casas e fábricas de cultura e a captação pela lei – e eram muito semelhantes. Os maiores equipamentos culturais e organizações se concentravam em grande número no Centro e no Centro expandido, e em um raio de 5 a 10 km do Centro Expandido de São Paulo. Nesse sentido, as organizações periféricas e fábricas de cultura se concentravam em menor número per capita nas margens da cidade.
Essa foi uma regra na pesquisa sobre a Lei Rouanet, mas é também para outros equipamentos culturais e outras lógicas de distribuição de orçamento dentro da cultura – mas não somente. Quando olhamos também para Saúde e Educação, esses gráficos e mapas se reproduzem e se replicam em uma lógica quase controversa do ponto de vista de necessidade de política pública e, realmente, de implementação e distribuição equitativa dos recursos.
A baixa quantidade de espaços culturais nas periferias, o que é identificado também no Mapa da Desigualdade, é um fator quando se fala no acesso a editais?
Allan Anjos Dantas: Não é que a cultura não esteja presente nas periferias paulistanas. Ela está extremamente pulsante e vibrante a cada esquina. A cada esquina, beco e viela há, literalmente, uma roda de samba e algum equipamento cultural que resiste daquela forma meio sem recurso ou organização institucional. Há as organizações periféricas, coletivos, grupos de slam e de batalha de rima, enfim, que estão presentes e pulsantes nas periferias a todo momento.
Entretanto, a capacidade institucional e a possibilidade de captação de recursos dessas organizações são infinitamente menores do que as de organizações presentes no Centro. Quando trazemos esses mapas e comparações desiguais da distribuição do recurso, não falamos que a periferia não tem organizações culturais ou que representem toda essa potência de cultura. Isso é sobre elas não serem reconhecidas como deveriam pelas instituições estatais e empresariais. Essa lógica reverbera nas leis de incentivo, mas também nos equipamentos culturais. O que gera tudo isso, na nossa perspectiva, é um distanciamento da população e dos territórios periféricos à cultura de diversas formas.
Há formas de resistência de cultura. Mas infelizmente há dificuldades de organização, sem, sob o ponto de vista de economia criativa, pessoas trabalhando e com boas remunerações para desenvolver seus trabalhos nas periferias. Tem-se um distanciamento institucional de todo esse processo e esquecimento proposital das periferias e de suas formas de fazer cultura. Ou seja, há uma não-valorização, mas não necessariamente uma não existência.
Outro elemento que surgiu, por meio da pesquisa, diz respeito a desafios para a escrita de projetos, assim como códigos específicos de editais, que representam barreiras simbólicas para agentes culturais das periferias. Como essa lógica se relaciona com a concentração de projetos em uma determinada faixa sociorracial e regional?
Allan Anjos Dantas: Há três grandes achados na pesquisa. O primeiro – e principal – relaciona-se ao distanciamento, que é geográfico, mas antes de qualquer coisa é político e econômico. Quando falo de distanciamento, é sobre leis de incentivo das organizações comunitárias com grandes empresas e fundações que destinam recursos por meio da Lei Rouanet, por exemplo. Hoje, pensando na estrutura da lei, há um processo de aprovação do projeto, que tem problemas do ponto de vista das organizações periféricas, mas acontece. Aos trancos e barrancos, mas acontece. Agora, quando chega na fase de captação de recursos, há um distanciamento muito grande entre essas empresas que farão o aporte e as organizações periféricas – de comunicação, político e geográfico, sobre onde é interessante para essas empresas fazerem os aportes. Esse foi o principal empecilho encontrado na pesquisa.
O segundo empecilho é a dificuldade institucional. Há ainda algumas barreiras de acesso sob o ponto de vista de escrita de edital e prestação de contas. Trata-se de barreiras técnicas dessas organizações com os editais. Isso gera quase um mercado de editais, que tem captadores de recursos, empresas e as organizações periféricas tentando sobreviver no meio disso tudo. Mas, ainda assim, há um distanciamento no processo de escrita de projetos e prestações de contas. O terceiro problema é: mesmo pensando em cenário de encurtamento de distância entre empresas e organizações periféricas e melhoria no processo de escrita dos editais e prestação de contas, ainda assim há poucas organizações periféricas, pensando na quantidade de potência existente no território, mandando projeto. Ou seja, poucas se inscrevem na Rouanet e se colocam no processo de escrita de editais e de financiamentos.
Darei um exemplo sobre o estudo. Em 2024 encontramos 68 organizações da área 3 – periferias de São Paulo – que fizeram um processo de escrita de projeto e foram aprovadas. Pegando toda a pluralidade das organizações de dentro do território, esse número poderia dobrar, no mínimo, para 2025. Mas tanto o distanciamento quanto a falta de crença desincentivam as organizações periféricas até a enviar um projeto. Entendo que há o primeiro passo, que é a captação de recursos, e o segundo, que é a melhoria de escrita de projetos. Mas há o terceiro passo, que é importante também: eles enviarem projetos. Idem conseguirem criar realmente uma coalizão, uma crença. E, com isso, sonhar em conjunto de que haverá, ao escreverem projetos para a Lei Rouanet, a possibilidade de captar recursos. E, com isso, de que não seria algo tão distante a ponto de sequer haver tentativa.
Allan Anjos Dantas fala sobre seleção de projetos, vieses durante o processo e como tais aspectos se conectam com justiça territorial
Quando se fala em leis de incentivo à produção artística, em particular a Lei Rouanet, a desinformação sobre a sua finalidade e dinâmica se sobressaem. A concentração de recursos em um determinado perfil e região pode ser considerada como um fator para a desinformação? Por quais motivos?
Allan Anjos Dantas: Há dois pontos importantes quando se olha para a Lei Rouanet de forma mais ampla e fugindo de processos de fake news que existem, infelizmente, em relação a ela. O primeiro está na sua importância sob o ponto de vista de orçamento para a cultura. Há movimentos que brigam pelo orçamento da cultura. O maior deles existente é de que pelo menos 1% de todo o recurso federal seja destinado a políticas culturais.
A Rouanet é uma possibilidade de destinar o recurso para organizações culturais dos seus respectivos territórios sem, necessariamente, haver transferência direta desses recursos. O mais importante: ela funciona e, a cada ano, ela bate recordes do ponto de vista de captação de recursos através dos seus proponentes. Trata-se de uma lei que, antes de qualquer coisa, é a principal ferramenta de incentivo à cultura no Brasil do ponto de vista orçamentário.
A segunda coisa que quero trazer: a Lei Rouanet é tão legal, importante e grande para o nosso país que as organizações periféricas também querem fazer parte. É justamente isso: entendemos a importância dela. Não há um movimento para diminuição da lei. Pelo contrário: queremos ampliá-la e torná-la ainda mais robusta e equitativa. Queremos fazer parte desse meio e pegar o pedaço que nos cabe, entendendo quão importante é esse mecanismo e quão robusto ele vem se desenvolvendo.
Allan Anjos Dantas comenta sobre pontos eclipsados no debate sobre investimento em projetos culturais quanto a reflexos positivos em demais áreas da sociedade
Como o campo da filantropia e a sociedade civil podem, seja por meio de advocacy para o poder público ou apoio no desenvolvimento de editais, apoiá-lo para focalizar mais em projetos das periferias e demais regiões do país?
Allan Anjos Dantas: Estamos construindo uma frente em três caminhos. O primeiro caminho é a relação com o Estado e fazer advocacy para criar mecanismos nessa lei. Um exemplo é olhar para o Ministério da Cultura. Outro passa por fazer propostas técnicas para conseguirmos olhar para cada um dos artigos da lei e repensá-los. Mas isso acontece, principalmente, do ponto de vista de equidade cultural.
O segundo e terceiro caminhos possíveis ligam-se muito mais ao grupo empresarial e ao fortalecimento das instituições periféricas. É importante criar um movimento de sensibilização das empresas para elas terem a perspectiva da importância da justiça de distribuição de recursos culturais. E, ao mesmo tempo, fortalecer as organizações comunitárias para mandarem projetos e terem um processo de prestação de contos correto, para também diminuir esses caminhos e encurtar os processos de captação de recursos. São esses os três caminhos nos quais estamos pensando em conjunto com outras organizações pensando no fortalecimento e na reestruturação da Lei Rouanet.
Vemos hoje as grandes fundações e autarquias como um caminho possível também de aporte financeiro. Há um terceiro setor ali, que é mais de base comunitária e está ainda lutando para acessar o recurso. Mas há outro terceiro setor que não apenas pensa nos aportes desse recurso, mas também os recebe. E como podemos, enfim, trabalhar em conjunto para tornar esse recurso mais democrático.
Allan Anjos Dantas fala sobre a importância de se repensar os instrumentos de fomento à cultura
Entrevista: Amauri Eugênio Jr.
