A organização das cidades e das periferias precisa passar por transformações profundas para lidar com os efeitos das mudanças climáticas. O desastre humanitário ocorrido no Rio Grande do Sul mostra, de modo sistemático e desolador, as consequências do despejo irrefreado e em escala global de gases do efeito estufa no ambiente e o desmatamento veemente de biomas diversos, assim como a postura negacionista de atores do poder público e da iniciativa privada nesse contexto.
Outra dimensão inquestionável nesse sentido diz respeito à organização das cidades e das periferias. Os efeitos sobre a estrutura das cidades e o desenvolvimento urbano, cuja dinâmica é intrínseca às consequências observadas por meio de alterações na temperatura global, são observáveis a cada chuva, por meio de alagamentos, ou de ondas de calor – a sensação térmica torna-se maior por causa da quantidade reduzida de áreas verdes.
Um ponto que vem à tona quando se fala em encontrar caminhos para transformar a organização das cidades e das periferias passa pelo debate sobre cidades resilientes. Em linhas gerais, trata-se de locais com capacidade para resistir e recuperar-se de episódios adversos – leia-se adaptar rapidamente suas funções diante de distúrbios que possam limitar suas possibilidades. No entanto, falar sobre cidades resilientes e em resiliência urbana passa, obrigatoriamente, pelo enfrentamento das múltiplas desigualdades existentes.
“A resiliência está sempre olhando para uma minoria e é necessário haver algo que responda à maioria. Precisa-se de algo que alcance a maioria, pois a maioria está em condição de desigualdades e sofrendo perdas e sofrendo danos. É necessário haver algo mais estrutural e real”, pondera Diosmar Filho, geógrafo e pesquisador da Associação de Pesquisa Iyaleta. Diosmar é também mestre em geografia e doutorando no mesmo campo pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Mais dimensões sobre políticas públicas
Em paralelo ao debate sobre resiliência urbana, a criação de novos modelos de organização das cidades e das periferias passa por desenvolver estratégias de prevenção, como intervenções e planos de mitigação a partir da análise de dados de mapeamento climático e de cheias.
“Por muito tempo a educação ambiental esteve voltada à preservação ambiental, mas agora precisará ser, daqui em diante, direcionada à prevenção climática. Como mudar indicadores educacionais se as crianças podem, devido às mudanças climáticas, ficar mais tempo sem ir à escola ou por longas estiagens, ou por enchentes? Esse é um dos pontos”, reflete Diosmar Filho. “Temos trabalhado com estudos de renda, condições de saúde, de moradia e de saneamento para planejar a prevenção climática. Não é sobre cuidar do ambiente natural em nosso favor, mas sim sobre prevenção e como trataremos da coletividade e pensaremos em humanidade”
Nesse contexto, outro tópico que vem à tona diz respeito ao debate sobre racismo ambiental. Um tópico de destaque, assim sendo, diz respeito à reprodução de discursos que culpabilizam vítimas de episódios ambientais extremos por ocuparem espaços com risco elevado nesse cenário.
“Em muitas vezes, essas pessoas têm apenas uma escolha: se render ou sobreviver. A forma como encontram para sobreviver é por meio dessas práticas e atitudes, em posição de sobrevivência”, reforça Amanda Costa, diretora-executiva do Instituto Perifa Sustentável e jovem embaixadora da Organização das Nações Unidas (ONU).
Ainda segundo Amanda Costa, fala-se sobre racismo ambiental pelo racismo ser estrutural. “Ou seja, ele transborda para todas as áreas da sociedade – clima, área ambiental, social e econômica. Quando analisamos o racismo ambiental, percebemos que, primeiro, quando os escravos foram libertos, não houve um plano de reinserção na sociedade. Houve um plano de ‘purificação’ da sociedade no sentido de afastar essas pessoas do centro, fazendo-as ocupar a margem.”
Novos caminhos
Ainda quando se fala em organização das cidades e das periferias, qualquer projeto com esse propósito deve ter a pluralidade de vozes como um ponto central. Logo, isso contempla o protagonismo da população de territórios periféricos.
“A partir do momento no qual as pessoas principalmente impactadas têm espaço para diálogo, é possível propor soluções inovadoras. Ou seja, foge-se da ótica já colocada, pois são soluções à margem”, descreve Amanda Costa. “Não dá mais para deixarmos outras pessoas, que não têm as nossas vivências e conhecimento comunitário, continuarem um discurso elitista, privilegiado e branco. A galera de quebrada está tendo acesso à universidade e consumindo conhecimento técnico.”
Por fim, outra dimensão intrínseca à proposta de novas formas de organização das cidades e das periferias compreende a esfera institucional. Alguns exemplos didáticos compreendem a aprovação do novo Código Ambiental no Rio Grande do Sul, em 2019, que alterou quase 500 pontos da legislação anterior e flexibilizou regras ambientais para a realização de atividades empreendedoras; e a votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado para reduzir áreas de reserva legal na Amazônia. A atividade tinha previsão para acontecer em 8 de maio.
Marcelo Rocha, fundador e diretor executivo do Instituto Ayika, chama a atenção para a responsabilidade dos poderes legislativo e executivo, nas esferas municipal, estadual e federal, para mudar paradigmas.
“Isso deve estar na responsabilidade dos governos dos estados, da Assembleia Legislativa e do Congresso Nacional. Caso contrário, haverá cada vez mais políticas de retrocesso sobre a área ambiental. Parte do papel do legislativo é fiscalizar, tem sido conivente. Como construir expectativas concretas de futuro? Dá para permanecermos no lugar em que estamos? Sim, mas se continuarmos a caminhar do modo como fazemos, não teremos futuro nenhum”, finaliza.
Texto: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Gary Bembridge / Flickr