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A educação ambiental precisa ser direcionada à prevenção climática – Entrevista com Diosmar Filho

Comunicação

16 de março de 2023
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Na mesma proporção em que debates sobre mudanças climáticas e meio ambiente ocorrem com frequência, o pesar e a repercussão de desastres ambientais acontecem com proporção semelhante. Tragédias como as ocorridas no litoral norte de São Paulo, em fevereiro, reforçam a percepção de que o poder público precisa destinar mais recursos. A mesma coisa vale para criar planos mais consistentes para prevenir episódios como esses e salvar vidas. E se o mundo tem pressa para frear mudanças climáticas e combater os seus efeitos, as periferias têm ainda mais.

 

Na mesma proporção em que este debate se tornou perene e atemporal, ele ganha proporções ainda maiores em 16 de março (Dia Nacional da Conscientização sobre as Mudanças Climáticas). Para falar sobre o tema, a entrevista de março é com Diosmar Filho, geógrafo e pesquisador da Associação de Pesquisa Iyaleta. Diosmar é também mestre em geografia e doutorando no mesmo campo pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

Durante o diálogo, Diosmar Filho falou sobre tópicos que contemplam gestão ambiental e perspectiva comercial e individualista do meio ambiente. Além disso, ele fala sobre como essa lógica resulta na culpabilização de quem habita territórios irregularmente ocupados. Idem na abordagens diferentes quando raça e condição social vêm à tona.

 

A entrevista passou por aprendizados que podem surgir a partir da relação que populações quilombolas e indígenas têm com a terra e o meio ambiente. Outros pontos foram sobre a necessidade de haver políticas multissetoriais e o que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU), têm a ver nesse caso. Confira a entrevista a seguir.

Por que setores do poder público ainda não consideram a intersecção entre território, condição social e raça para desenvolver políticas específicas para regiões periféricas mesmo diante da ocorrência cada vez maior de desastres climáticos?

Olhar para desastres naturais e a intersecção entre territórios, condições sociais, áreas periféricas e clima é um desafio. Isso porque a gestão pública tenta acompanhar isso a partir de agenda ambiental. A agenda ambiental no Brasil está relacionada a recursos naturais, hídricos ou minerais e não tem diálogo com a vida da sociedade – ela a normatiza.

 

Digamos que haja uma gestão ambiental para normatizar a vida da sociedade. De repente, estamos diante de tragédias, pois não há como fazer gestão do clima que está em mudança. Não se gesta clima e mudança: há ações para reduzir os impactos dessas mudanças. Caso não haja nenhuma ação pensada antes para cuidar das pessoas dentro da gestão ambiental, não haverá gestão pró-clima. Nos estudos que fazemos sobre contextos urbanos, desigualdades e mudanças climáticas, temos apresentado o construto entre território, raça, gênero, olhar a população submetidas às condições econômicas, ambientais, culturais e em políticas sociais colocadas diante de um mundo no qual estamos vivendo eventos constantes.

 

Estes eventos são colocados na vida social diante de políticas públicas que não conseguiram considerar gestão de saúde, saneamento e educação, por exemplo, como gestão ambiental. Para alcançarmos a dimensão mais profunda que contempla território e condições sociais para políticas periféricas, precisaremos tirar a setorialidade criada anteriormente ao momento pelo qual passamos por grandes tragédias – resultantes do aumento dos eventos climáticos.

 

É possível ver, após desastres climáticos, discursos culpabilizando quem mora em área de risco. Quão perigosa é essa perspectiva?

Quando pensamos sobre individualismo dentro desta agenda, o perigo é a primeira agenda climática, que é a mitigação, ser individualista, pregar a individualidade e que as pessoas devem praticar formas de reduzir o impacto. Começa-se a, inclusive, pagar para as empresas: você consome e paga algo a mais para a sua pegada ambiental não permanecer. A mitigação avançou no mundo inteiro dentro disso.

 

Este é um sistema no qual a individualidade tende a inserir pessoas em dinâmica voltada ao consumo a ponto de, por exemplo, permiti-las a pagar pela pegada de carbono. O geógrafo Andrelino Campos falava de espaços criminalizados, os quais vemos nas tragédias. As encostas de beira de mar são espaços criminalizados. No caso de quem mora em um espaço de alto padrão, trata-se também de uma ocupação irregular – é a mesma área de perigo. Mas a gestão pública dará um jeito de aquele espaço não ser uma área de perigo.

 

Quem está mais acima, morando em uma área de floresta íngreme onde o solo é sedimentar e uma chuva em excesso o levará, estará sujeito a sofrer uma tragédia, pois a política pública não olhará aquela encosta como apta a ser habitada. Não haverá prevenção e ela será culpabilizada, pois, individualmente, se arriscou a morar ali. As condições criadas para se morar ali entram discursos como “as pessoas se arriscam demais”.

 

Todo o litoral brasileiro que tem residências de alto padrão e cidades, como o calçadão de Copacabana, é uma grande ocupação de área irregular – um aterro de areia em toda uma área e criou-se um grande calçadão. Como fazer este tipo de diálogo para a maioria e construir condições para a maioria viver? Não estou dizendo que as pessoas devem viver em lugares irregulares, mas que as condições criadas para se morar em casas na beira do mar permitem uma pessoa viver mais acima. Mas determinantes raciais, de gênero, território e de vida serão estabelecidos – quem tem direito e quem é ou não cidadão.

 

A Vila do Sahy, bairro de São Sebastião onde houve a maior quantidade de vítimas, é marcada por diversas vulnerabilidades e habitada por trabalhadores, na maioria, que trabalham na faixa litorânea. Há forte clivagem de raça, gênero, condição social e território, correto?

É o espaço criminalizado. Provavelmente, essa mesma vila passará por obras e contará com melhor infraestrutura. Mas por que esperar a tragédia se há villages ali? Se é um local que sustenta o turismo de consumo de uma população de São Paulo e de outros estados, por ser um lugar bom e turístico, por que colocar a população que trabalha para sustentar esse turismo em condições de risco? É desumano ver esta tragédia e ouvir que havia gente em condições de pagar R$ 15 mil para sair de helicóptero daquela situação. Essa é a individualidade colocada dentro do consumo climático.

 

Houve um processo de expulsão nestes territórios, que tirou as condições de trabalho e sobrevivência de ribeirinhos, pescadores, marisqueiros – idem de viver da pesca. Quem estava ali até então tinha condição de viver em equilíbrio e que tinha conhecimento sobre quando a chuva viria – ou quando chegaria. Os filhos e netos voltaram a esses espaços como trabalhadores desse turismo e são eles quem irão sofrer a tragédia. Não há política pública para isso, pois a política pública é essa [voltada ao turismo].

 

É possível considerar que a relação que populações quilombolas e povos indígenas têm com o meio ambiente é capaz de influenciar a perspectiva que o poder público e OSCs têm para construir políticas públicas e projetos voltados à preservação ambiental?

Os territórios quilombolas representam a alternativa mais real neste caso. Isso consiste em criar uma ação climática para reduzir a emissão de gases de efeito estufa. Idem reivindicar a territorialidade a partir de uma lógica coletiva. O território quilombola consegue ser estabelecido como área de preservação ambiental, inclusive por meio de maneiras para fazê-lo. Já na dimensão racial, ele visa proporcionar uma forma digna de vida na coletividade e no acesso comum à terra. Quando se pensa no meio ambiente a partir destes espaços, a organização territorial permite responder aos desafios atuais do clima. Mas a legislação ambiental e do clima não está preparada para absorver isso.

 

Mapear evidências e de dados científicos sobre racismo ambiental e climático pode ser relevante para o poder público desenvolver políticas para mudar a perspectiva, absorver novos paradigmas e promover a preservação socioambiental?

Quando se começou a discutir racismo ambiental no Brasil, em 2005, e entrei nessa agenda e comecei a escrever sobre o tema, a pauta se referia a licenciamento ambiental e outorga para mineração, saneamento, recursos hídricos, pontes, drenar rios. Todas elas são criminosas, sob o ponto de vista em que se vê a população não branca. Além disso, são direcionadas aos espaços de maioria populacional negra ou indígena, na forma da negação do direito à cidadania.

 

A negação do direito à cidadania consiste em ignorar uma política de saneamento básico por meio da qual, por exemplo, se conceda uma outorga a um hospital para captar água de um rio e despejar o esgoto onde há uma comunidade quilombola, ribeirinha ou periférica. Fala-se em tratamento de esgoto no Brasil e sobre privatizar ou não empresas públicas de saneamento. A discussão não deve ser essa. Contudo, deveria ser sobre sobre não haver um tratamento de esgoto de classificação 3 no Brasil, que possibilite o uso de água, após tratada, para atividades como regar plantas em uma via pública.

 

 

 

Diosmar Filho aborda a dinâmica do racismo ambiental no contexto relativo às mudanças climáticas

 

 

Por mais que nos humanizemos, estamos em um país de processo histórico racial. As políticas públicas e os mapeamentos não serão sobre racismo ambiental. Elas não darão conta também de mapear qual impacta de verdade, pois os atos são poucos para responder aos desafios. A maioria, que é não branca, estará sempre impactada por algum crime racial. A legislação ambiental e climática tende a ir para esse caminho se não atuarmos pela humanidade.

 

 

 

Diosmar Filho retrata como os ODS podem ser aliados na busca por soluções na esfera climática e ambiental

 

É possível pensar no desenvolvimento de políticas públicas multissetoriais, saindo da chave da preservação ambiental para a mudança de paradigmas na nossa relação com o meio ambiente?

Acredito que haja caminhos. Se os dados de alerta sobre chuva se transformarem em política pública, isso já muda o paradigma. Transformá-los em política pública não diz respeito à informação em um telejornal sobre a previsão do tempo. Isso tem a ver com vida e educação, para as dimensões de viver em um tempo que mudou e onde o aquecimento global se tornou realidade – os fenômenos La Niña e o El Niño existem e o oceano está 1,5°C mais quente. Se conseguirmos analisar os ODS e olhar os dados de mapeamento climático e de cheias, e usá-los em favor da prevenção, a Terra passará também a estar em outra dimensão também. Os ODS constituem um caminho para garantir qualidade de vida para as pessoas. Eles são meio utópicos, assim como o Acordo de Paris.

 

Por muito tempo voltou-se a educação ambiental para a preservação ambiental, mas agora ela precisará ser, daqui em diante, direcionada à prevenção climática. Como mudar os indicadores educacionais se as crianças podem, devido às mudanças climáticas, ficar mais tempo sem ir à escola ou por longas estiagens, ou por enchentes? Esse é um dos pontos.  Temos trabalhado com estudos de renda, condições de saúde, de moradia e de saneamento – eles servem para ser possível planejar a prevenção climática. Não é sobre cuidar do  ambiente natural em nosso favor, mas sim sobre prevenção e como trataremos da coletividade e pensaremos em humanidade. Esse é o ponto de virada.

 

 

 

Diosmar Filho fala sobre medidas para proteção e reparação de populações vulnerabilizadas e afetadas por eventos climáticos extremos

 

 

Entrevista: Amauri Eugênio Jr. / Foto: Juliana Dias


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