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Renovação da participação política e a centralidade dos territórios

A mobilização da população nos territórios é fundamental para ativar novos processos de participação política para além das eleições. O voto nas eleições é o principal meio de participação nas democracias representativas. As eleições são momentos importantes em que a população avalia as políticas públicas e os políticos eleitos, além de ter a possibilidade de escolher novas lideranças políticas. Entretanto, é sempre bom lembrar que o direito de participação dos cidadãos não se encerra com o período eleitoral, entre um mandato e outro, os políticos tomam muitas decisões importantes que impactam diretamente as condições de vida da população e, por isso mesmo, em uma democracia forte e saudável, existem espaços institucionais que possibilitem a escuta e deliberação dos cidadãos durante o mandato dos governantes.

 

A estrutura de participação política no Brasil tem crescido desde a redemocratização, fazendo com que o país se tornasse uma referência no que se refere à inovação democrática. A partir da promulgação da Constituição de 1988, diversos espaços de participação foram formados nas três esferas governamentais federal, estadual e municipal. As principais institucionalidades participativas criadas foram conselhos gestores de políticas públicas, orçamentos participativos (OPs), Conferências Nacionais, entre outras formas de participação, com o propósito geral de aproximar os cidadãos do poder público e ampliar a voz da população no cotidiano da gestão pública.

 

Entretanto, passado mais de 30 anos da construção desses espaços de participação, vários desafios e limites têm sido apontados pelos pesquisadores e analistas políticos, dentre os quais a burocratização excessiva dos espaços participativos reproduzindo o modelo do sistema partidário, a predominância dos políticos profissionais e militantes experientes nos processos deliberativos e a baixa incorporação das demandas e propostas elaboradas pela sociedade civil pelos governos instituídos.

 

A partir dos anos 2000, nota-se um esforço tanto do poder público, quanto da sociedade civil na busca de inovar os processos participativos por meio de arranjos institucionais que considerem as dinâmicas territorializadas, a construção coletiva de diagnósticos locais e valorização das lideranças comunitárias.

 

No caso do poder público, a partir de 2003, tem ganhado destaque um conjunto de políticas públicas que prevê a participação da população atendida e organizações sociais na própria execução da política pública, desde a elaboração da agenda até a implementação das ações, por vezes mediante o repasse de recursos públicos para organizações da sociedade civil. As cientistas políticas Ana Claudia Teixeira e Luciana Tatagiba (2021)* têm denominado essas políticas de Programas Associativos que se caracterizam

 

 

  1. (i) pela ênfase dos processos participativos de base territorial,
  2. (ii) o papel das organizações da sociedade civil como mediadores do acesso às políticas públicas, e
  3. (iii) repasse de recursos públicos para entidades da sociedade civil administrar parte da política.

 

 

São exemplos de Programas Associativos o Programa Minha Casa, Minha Vida – Entidades, o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional Cultura Viva. Mais recentemente a Secretaria Nacional de Periferias do Ministério das Cidades criou o Programa Periferia Viva, uma política de reurbanização de favela e áreas de risco que concilia obras de melhoria urbana, com ativação da comunidade local visando a construção colaborativas de soluções urbanísticas, promoção da participação social na identificação de demandas e controle social da política pública e a mediação de organizações da sociedade civil na implementação das ações.

 

Diversas organizações da sociedade civil também têm proposto inovações no modelo de participação política. A construção de Planos de Bairros tem aparecido como uma aposta de organizações da sociedade civil como um caminho de renovação do processo participativo.

 

O Plano de Bairro é um instrumento de planejamento local, realizado com ampla participação dos moradores do Bairro e tem como propósito reforçar os laços comunitários, levantar as propostas de solução para desafios coletivos dos territórios e ampliar o sentimento de pertencimento ao território. As organizações de sociedade civil têm um papel importante de apoiar a realização de alguns Planos de Bairros e principalmente de sistematizar e divulgar a experiência local para um público mais ampliado.

 

O Instituto Alana participou da construção do Plano de Bairro do Jardim Pantanal e a Fundação Tide Setubal do Plano de Bairro do Jardim Lapena (mais detalhe abaixo), os dois bairros localizados na zona leste da cidade de São Paulo. A Casa Fluminense, organização da sociedade civil localizada no Rio de Janeiro, tem realizado a construção participativa de agendas de políticas públicas em várias comunidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro com o propósito de documentar as principais demandas das comunidades e monitorar junto ao poder público o desenvolvimento das políticas públicas.

 

A experiência da Fundação Tide Setubal no Jardim Lapena: participação e o compromisso com o protagonismo dos moradores e lideranças locais

A Fundação Tide Setubal tem um histórico de construção de iniciativas formativas, de intervenção territorial e mobilização social em parceria com os moradores do Jardim Lapena visando a melhoria do bairro, a promoção de espaço formativos e de acesso à conhecimento e aos direitos de cidadania e a ampliação dos canais de diálogo entre os moradores do Jardim Lapena e o poder público.

 

Com mais de uma década de atuação na zona leste de São Paulo, a Fundação aposta na ideia de que para se realizar uma política de desenvolvimento territorial das periferias e realizar ações de enfrentamento às desigualdades sociais e urbanas, é necessário considerar as diferentes dinâmicas territoriais, ou seja, “o território importa” quando se trata de atuação com a periferia e não para as periferias. Nesse contexto, um dos pilares da atuação no Jardim Lapena é o estímulo a processos participativos locais que sejam vivos do ponto de vista da mobilização e engajamento dos moradores e efetivos do ponto de vista da incidência em políticas públicas.

 

O caminho de construção de um processo participativo informado e propositivo é longo, podendo configurar diversos formatos institucionais. No caso do trabalho da Fundação no Jardim Lapena, o trabalho de diagnóstico e ativação territorial se desenvolveu em intenso diálogo com os moradores do bairro, universidades, poder público e parceiros da sociedade civil e tendo como base as seguintes premissas:

 

 

  1. i. identificação as demandas sociais dos territórios por meio de informações públicas e pesquisas produzidas junto aos moradores,
  2. ii. reconhecimento das lideranças e do histórico de luta nos territórios,
  3. iii. reconstrução do processo de constituição dos territórios,
  4. iv. criação de canais efetivos de escutas e deliberação da população e, fundamentalmente,
  5. v. compreensão de que os moradores dos territórios devem ser os protagonistas das transformações políticas ocorridas nos territórios.

 

A participação dos moradores do Jardim Lapena na construção comunitária do Plano de Bairro do Jardim Lapena, instrumento previsto no Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (PDE – Lei 13.050/14), é uma das principais iniciativas de mobilização territorial impulsionada pela Fundação Tide Setubal em parceria com a Sociedade Amigos do Jardim Lapena e demais liderança do território. O documento contempla as principais demandas de melhorias para território dos moradores do bairro, elenca ações prioritárias de políticas públicas e funciona como um documento de referência na interação entre a população e o poder público. Como bem registram Andrelissa Ruiz e Marcelo Ribeiro (2018)**, coordenadores do Galpão ZL, equipamento social administrado pela Fundação Tide Setubal e localizado no Jardim Lapena:

 

O documento com as propostas do Plano de Bairro do Jardim Lapena está pronto, a luta pela implementação das ações está acontecendo e as interfaces socioestatais tem papel preponderante nisso, ainda mais em um território no qual a fisiologia já foi a relação determinante. […] [Com o Plano de Bairro], a prática política deixa de ser o lugar para tirar vantagem e passa a ser o lugar da construção por um território de direitos.” (p. 240)

 

Outra iniciativa exitosa de participação política no território do Jardim Lapena teve início em meio a pandemia de Covid-19, em 2020, quando moradoras e lideranças comunitárias do bairro se organizaram para distribuir, com o apoio da equipe do Galpão ZL, máscaras, álcool em gel, cestas básicas, kits de limpezas, materiais escolares e, principalmente, circular informações confiáveis sobre formas de proteção e autocuidado contra os efeitos do coronavírus. Dessa mobilização inicial, organizou-se um coletivo de mais de 100 moradoras chamado de Guardiãs do Jardim Lapena que realiza ações sociais no território como encaminhamentos para os serviços sociais da região, doações de alimentos e insumos domésticos para famílias em situação de emergência, cursos diversos, dentre outras atividades.

 

As Guardiãs do Jardim Lapena se tornaram referências importantes no bairro e atuam como mediadoras de diversas questões e conflitos, com destaque para os casos de violência doméstica. A experiência das Guardiãs enfatiza a centralidade da questão de gênero para se pensar a participação política dos territórios periferias. O ativismo construído por essas lideranças traz para o centro do debate a dimensão do cuidado e dos desafios da vida cotidiana como pautas organizadoras da luta política e a identificação com o território e a solidariedade entre mulheres como fontes mobilizadoras. O depoimento da guardiã Marcia Silva ilustra esse processo de construção de uma subjetividade política desse coletivo:

 

Elas fizeram de mim uma mulher forte e sábia, pois convivo com mulheres que se tornaram inspirações para mim. São pessoas periféricas e lutadoras, que me mostraram como a vida pode ter um novo sentido. Hoje, eu não ando abaixo de ninguém: eu nasci para andar ao lado.”***

 

No ano de 2023, as Guardiãs do Território inauguraram um espaço de atendimento no coração do Jardim Lapena, denominado Espaço Cuidar Guardiãs, ali elas oferecem aulas de crochê, alfabetização e letramento, assessoria jurídica, orientação sobre os serviços público da região, além de um espaço seguro de escuta e acolhimento aos moradores do bairro.

 

Mais uma estratégia de mobilização territorial e de participação política em curso no Jardim Lapena é a articulação entre lideranças do bairro e os profissionais do Galpão ZL por meio da constituição de Grupos de Trabalho (GTs) temáticos para incidência específicas no território. A proposta é constituir e manter ativo espaços compartilhados de plane

jamento e incidência onde as lideranças locais atuantes em diferentes frentes e a equipe do Galpão ZL possam construir um plano de trabalho anual em que as lideranças tenham capacidade de decisão e orçamento para realizações de ações pontuais no território tendo como base as áreas de influência estratégicas definidas pelo Plano de Bairro e pela Teoria da Mudança do Jardim Lapena (realizada pelo Insper, Fundação Tide Setubal e Itaú Social).

 

O Galpão ZL funciona como um ponto de referência para a organização dos GTs, organizando reuniões mensais de compartilhamento das ações, fomentando com recurso financeiro as ações de cada grupo , promovendo em colaborações atividades e oferecendo a infraestrutura do Galpão para as lideranças se organizarem. Atualmente existem sete GTs, com três membros cada grupo: Meio Ambiente e Sustentabilidade, Cultura, Economia Solidária, Infraestrutura Urbana, Imigrantes, Juventude e Reurbanização do Baixo Lapena.

 

Contra o argumento de que vivemos na era da apatia política, de que a população tem ojeriza ao campo político, percebemos, a partir da atuação no Jardim Lapena, que um olhar mais sensível para a dinâmica dos territórios, o reconhecimento das lideranças locais, a construção de espaços formativos de novas lideranças, principalmente a partir de ações para juventude, o reconhecimento das desigualdade de gênero e raça como dispositivos de silenciamentos e apagamento de lideranças políticas e, principalmente, o compromisso genuíno em favorecer o protagonismo político dos moradores dos territórios, tudo isso pode ser um caminho para fomentar uma participação política cada vez mais intensa e qualificada e que impacte diretamente na melhoria das condições de vida dos moradores do bairro. A população quer participar, os moradores são os maiores conhecedores sobre as principais demandas e carências do bairro, os coletivos e lideranças periféricas tem historicamente construído soluções políticas a partir da realidade local, o que falta são espaços apropriados de participação, mecanismos de encaminhamento das demandas dos territórios para o poder público e, por fim, governos sensíveis às demandas dos territórios periféricos.

 

Referências bibliográficas

*Luciana Tatagiba e Ana Claudia Teixeira. Movimentos Sociais e Política Pública. São Paulo: Editora Unesp. 2021.

 

**Andrelissa Ruiz e Marcelo Almeida. Políticas Públicas e Participação Social: o Caso do Plano de Bairro do Jardim Lapenna como um Caminho da Democracia para um Território de Direitos. In: Diamantino Alves Correia Pereira. (Org.). Mudança Social e Participação Política. São Paulo: Annablume, 2018.

 

***Amauri Eugenio Jr. Mais do que guardiãs: lideres e fontes de inspiração para o bairro.

 

 

Por Uvanderson Vitor da Silva, coordenador do Programa Democracia e Cidadania Ativa da Fundação Tide Setubal / Foto: Mikael Blomkvist/ Pexels

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