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Corrida contra a precarização

Esta é a terceira reportagem de uma série sobre dinâmicas diversas de discriminação sofridas por cidadãs/ãos motivadas pelos territórios onde moram. Confira também as matérias produzidas sobre discriminação no mercado de trabalho e pessoas que não conseguem contratar serviços por meio de aplicativos de mobilidade urbana e de entregas

 

Por Amauri Eugênio Jr.

 

 

“Como passageiro, quando passei pela situação de descer do carro, fiquei bravo na hora e inconformado com o fato, mas passei a entender um pouco depois. Os motoristas sentem um pouco de medo dependendo da região onde entram por causa de assaltos. Hoje, trabalhando por aplicativos, consigo entender um pouco o motorista quando agiu assim comigo.” É deste como o motorista de aplicativos de transportes Matheus Rezende, 21, descreve a experiência pela qual passou quando usou o serviço de transportes como passageiro.

 

Morador do Jardim Lapena, bairro da zona leste de São Paulo, o jovem compreende as perspectivas usadas por quem trabalha por meio de aplicativos de transporte e de quem usa os serviços dessas mesmas plataformas. “Por mais que eu entendesse o lado dele, eu não pediria para descer antes da viagem ser finalizada. Já entrei em lugares onde eu não me sentia confortável, terminei a viagem e, em seguida, desliguei o aplicativo e fui para outro canto.”

 

Além desse aspecto, as experiências pelas quais Matheus passou têm diversas semelhanças com as de outros profissionais que recorrem ao aplicativo para conseguirem renda. Se a queda na quantidade de corridas registrada no início da pandemia de Covid-19 impactou a rotina e a geração de renda como consequência, as sucessivas altas nos preços dos combustíveis intensificaram a onda de problemas.

 

O relato feito por Matheus Rezende mostra diversas camadas do cotidiano vivido por parcela significativa de profissionais que trabalham por meio de aplicativos de transporte. Essa realidade, que foi intensificada pelas consequências da pandemia de Covid-19, como a queda brusca na quantidade de corridas no início da pandemia, a “retomada” – entre aspas mesmo – marcada pelo fato de ser necessário trabalhar mais horas para atingir patamares de renda semelhantes aos de antes da pandemia e os sucessivos aumentos no preço dos combustíveis, mostra que o cotidiano desses profissionais passou, sim, por precarização.

 

Fabiana Tock, coordenadora do Programa Cidades e Desenvolvimento Urbano da Fundação Tide Setubal, considera que a lógica segundo a qual moradores de áreas periféricas são considerados aptos para determinadas atividades, mas são privados de aproveitá-las, pode ser transportada para uma série de bens e serviços, para além do consumo por meio de aplicativos. “Trata-se de uma irracionalidade que perpassa o campo simbólico, da associação generalizada da periferia a um espaço de privações e violência. Essa ideia generalizada e negativa das periferias acaba por criar barreiras efetivas para essa população usufruir das riquezas – bens e serviços – que a cidade produz.”

 

Outro ponto que tem peso significativo nesse cenário é a crescente crise econômica pela qual o Brasil passa, intensificada pelo aumento nos índices de desemprego, e que foi acentuada também pela pandemia global. De acordo com dados da Pesquisa Nacional de Empregados e Desempregados (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que havia mais de 1 milhão de motoristas de aplicativos no fim de 2019 – esse número havia aumentado quase 140% em comparação com o início de 2012.

 

Nesse cenário, algumas das consequências do aumento do desemprego são a insegurança social e a precarização das condições de trabalho, às quais, de acordo com Egeu Esteves, professor associado do Instituto das Cidades, do Campus Zona Leste da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), os profissionais não aceitariam ser submetidos em contextos com pleno emprego ou de suporte por meio da solidariedade social – como nos casos de programas de renda mínima e da implementação do auxílio emergencial.

 

“No contexto de crise política, sanitária e econômica em que vivemos, os donos das plataformas que reúnem demanda e oferta sob o mesmo aplicativo, o que é caso dos aplicativos de entrega, alimentação, transporte, entre outros., se aproveitam do desemprego e da insegurança social para tornar os ‘bicos’ oferecidos pelos aplicativos atraentes aos trabalhadores, estabelecendo uma ‘economia do bico’”, explica Esteves.

 

 

 

 

 

Desigualdade dinâmica

 

O economista Cleberson da Silva Pereira, 38, pesquisador do Centro de Estudos Periféricos, vinculado ao Instituto das Cidades, do Campus Zona Leste da Unifesp, trabalhou por dois anos como motorista de aplicativos.

 

Morador de Parelheiros, bairro da zona sul de São Paulo, e especializando em Cidades, Planejamento Urbano e Participação Popular, Pereira tinha à época rotina de trabalho com duração de 12 a 14 horas, com pausa no dia do rodízio veicular. Além de ter observado um aspecto sintomático enquanto trabalhou nesse ramo – “eu via pessoas que estavam fora do mercado de trabalho e já estavam desalentadas, e aquela era a única opção” -, ele identificou uma correlação entre as condições deficitárias de formação e preparação às quais os trabalhadores com origem periférica são submetidos e o fato de eles serem preteridos no mercado de trabalho.

 

“Se você não conseguir ter alguma experiência de trabalho interessante até os 30 anos, você terá dificuldades no mercado de trabalho ou se empregará nos subempregos. Aí, o aplicativo se torna atraente, porque embora você ganhe menos, pensando em todas as verbas, você está fora da pressão por resultado das empresas que não garantem retorno financeiro. Com os desmontes do colchão social que a CLT previa, esses tipos de ocupações irão parecer mais interessantes, embora não sejam”, explica.

 

A questão relacionada à CLT, com destaque para as alterações promovidas por meio da Lei 13.467/2017, conhecida como reforma trabalhista, é refletida na relação entre os motoristas e as empresas que operam os aplicativos no país. Apesar de haver casos levados à Justiça do Trabalho nos quais os pareceres são favoráveis aos trabalhadores, o padrão é pensar-se que os motoristas são considerados por elas como parceiros, sem haver vínculo empregatício entre as partes envolvidas.

 

“Não havendo este vínculo, há o de trabalho, somente, e não é previsto nenhum benefício ou garantia ao motorista. De acordo com a legislação brasileira, a ‘contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado’ prevista no artigo 3º desta Consolidação’, de acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho”, pontua o arquiteto e urbanista Rafael Siqueira, mestrando em gestão do território pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e cofundador da consultoria Compasso Mobilidade. O artigo da CLT citado por ele foi um dos alterados pela Lei 13.467/2017, conhecida como reforma trabalhista

 

Tais fatores, que estão atrelados à precarização nas condições trabalhistas, retroalimenta a subalternidade à qual os profissionais com origem periférica são submetidos no acesso a vagas de trabalho. Para Fabiana Tock, a discriminação sofrida por eles nesse contexto é mais uma manifestação resultante dos estigmas criados sobre eles.

 

“Isso cria um abismo no acesso às oportunidades produzidas nas cidades. Associações como essas criam verdadeiras barreiras para a democratização de nossas cidades. A reivindicação do conceito de periferia pela própria periferia, o reconhecimento de que esses espaços não são unicamente de privações e ausência, é um grande passo para romper com esses estereótipos. É um processo de mudança gradual, mas singular, potente e necessário”, completa.

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